3/07/2009

A Índia revisitada, a propósito do Slumdog Millionaire




O êxito do filme que em Portugal está a ser exibido com o título "Quem quer ser bilionário?" trouxe de novo a Índia à ribalta. Justificadamente. Escreveram-se nos últimos anos muitas páginas elogiando o extraordinário desenvolvimento da Índia. Por outro lado, circulam na Net numerosos ficheiros em PowerPoint mostrando o que de mais belo existe no país e, em quantidade ínfima, também o que de mais sórdido o país apresenta. A minha estadia de um pouco menos de um mês na Índia durante o ano passado não me permite, logicamente, emitir opiniões categóricas e, portanto, não é de maneira nenhuma isso que farei. Por outro lado, sei que dois estrangeiros podem visitar os mesmos locais de um país ao mesmo tempo e, no final, possuírem opiniões bem diversas sobre o que viram, aprenderam e apreenderam. De onde resulta que este pequeno arrazoado não é mais do que um parecer, sincero mas indubitavelmente contestável.
O "Quem quer ser bilionário?" não foi bem acolhido na generalidade da Índia, muito embora os protagonistas do filme tivessem sido apoteoticamente recebidos em Mumbai (antiga Bombaim) aquando do seu regresso da América, onde estiveram presentes na entrega dos Óscares. Qual a razão por que o filme em si não agradou ao governo indiano e à comunidade mais rica da Índia? Obviamente, por mostrar a parte dos slums (bairros de lata), que abundam em Mumbai. E abundam também em Delhi, em Calcutá, em Varanasi, etc. Após desenvolver durante largos anos uma campanha promocional do país sob o signo "Incredible India", campanha que aliás tem sido tão bem sucedida como dispendiosa, o Slumdog Millionaire (com o seu título de marketing, chocante e pouco respeitador) vem mostrar a outra face - não pequena - da realidade indiana. Todo o visitante da Índia se depara com aspectos lindíssimos do país, com monumentos impressionantes - o Taj Mahal, de Agra, tornou-se o símbolo de todos, mas há muitos outros extremamente interessantes - , com hotéis de luxo, com boas praias por exemplo na zona de Goa, mas, por outro lado, não pode ficar cego perante uma realidade bem diferente, de pobreza, sujidade e indigência. O facto de a Índia possuir um mar de gente - com 1,1 bilião de habitantes, é o segundo país mais populoso do mundo - e cidades com 10, 12, 15, 18 milhões de habitantes, a que se junta uma gama de religiões diferentes, com larga predominância do hinduismo mas também com uma enganadora percentagem de muçulmanos (12 por cento de muçulmanos significa qualquer coisa como 130 milhões de pessoas!), tudo faz com que o país se debata com problemas de grande vastidão.
A independência da Índia tem pouco mais de 60 anos. Antes da independência, que ocorreu em 1948, a Índia fez parte do império colonial britânico. A verdade é que os ingleses, que entraram na Índia como todos sabemos pela mão dos portugueses e exactamente em Bombaim (a Indian Gate da cidade lá está para o assinalar), nunca se interessaram por corrigir verdadeiramente o que lhes parecia estar mal na Índia, desde o regime de castas até às flagrantes diferenças entre a classe privilegiada dos ricos e as grandes manchas de pobreza do país. Não me atrevo a considerar que os ingleses, como colonialistas que eram, não tiveram razão. Se metessem mãos à obra para transformar radicalmente a Índia, teriam tido enormíssimos dissabores e provavelmente não se aguentariam. Mesmo assim, criaram boas estruturas administrativas e tiveram o grande mérito de unificar um país que estava por demais dividido entre diferentes estratos sociais, religiões e etnias. Além disso, o império inglês deu à Índia um importante elemento aglutinador: uma segunda língua, que a população pobre hoje não fala, mas que todos os mais abastados dominam e que se estuda com grande empenho nas escolas. Os indianos só têm vantagem em fazê-lo. Alguns dos melhores jornais - e que qualidade eles têm! - são escritos em inglês, com excelentes artigos de opinião e uma ampla variedade de temas.
Entretanto, o governo tem estado interessado, como acima digo, em apresentar ao mundo - e aos próprios indianos - um retrato francamente em ascensão da sua "Incrível Índia". E, como já referi noutros textos, este retrato não é totalmente falso. O que lá se mostra existe. O que se oculta é que é muito. O Slumdog Millionaire terá enfermado do grande pecado de ter apresentado a faceta menos "mostrável". Por este motivo, o filme foi encarado na Índia como parte da propaganda negativa ocidental - filme realizado por um inglês e produzido igualmente por um inglês - cidadãos do país dos antigos colonizadores. O filme seria, de acordo com determinadas fontes alinhadas com o ponto de vista governamental, um caso típico de voyeurismo pornográfico da pobreza. Infelizmente para este argumento, "Quem quer ser bilionário?" baseia-se num romance escrito por um diplomata indiano - Vikas Swarup. Por outro lado, é um filme optimista, na medida em que dá a ideia de que é possível sair do labirinto da miséria, nem que seja através de um concurso televisivo.
Ainda irá demorar muito tempo até que a Índia consiga proporcionar um nível de vida aceitável à maioria da sua população. Aliás, não é tarefa fácil. Mais fácil é seguir a política inglesa de não atormentar os "marajás", usando-os até como instrumento de controlo das massas. Esta política traduz-se no apoio a grandes fortunas, a dinâmicos empresários, a bairros de luxo com belas residências - como a zona alta de Hollywood, como lhe chamam em Mumbai, não muito longe de locais que são verdadeiros contínuos de bairros de lata ao longo de quilómetros bem dentro do perímetro da cidade. O filme não inventa nada. O contraste é flagrante. Mas, afinal, esse é também um motivo de interesse para o visitante ocidental e ajuda-o sobremaneira a entender com maior verdade a realidade indiana, que é, confessemo-lo, a um tempo incrível e fascinante.


P.S. Junto duas fotografias. Uma é de um lavadouro público em Mumbai, aliás incluído no filme. A outra foto, também minha, mostra uma parede com um emaranhado louco de fios no Mercado Crawford, no centro de Mumbai. Constitui, em minha opinião, um retrato simbólico do labirinto cultural e civilizacional da Índia de hoje. Como nos poderemos admirar que, de quando em quando, ocorra um curto-circuito?

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