3/13/2009

Negativo-Positivo

Em tempos, tive como colega uma inteligente socióloga que, na opinião de vários amigos, só enfermava de um problemazito: adorava apontar os defeitos das coisas, as inenarráveis incompetências dos ministérios, a falta de sensibilidade das pessoas duma maneira geral e, em particular, de quem estava à frente da gestão autárquica. Não elogiava nada.
Um dia, antes de ela ir fazer uma conferência, da qual me leu e a uma outra pessoa que estava connosco – um engenheiro seu amigo de infância - alguns excertos, o engenheiro deu-lhe um conselho: "O.K., Antónia, pisa e repisa se quiseres as ervas daninhas todas, mas depois aproveita para fazer com elas um monte que te permita avistar também os malmequeres, as maravilhas e as margaridas. Se os teus olhos não estiverem igualmente postos em flores, o público a certa altura deixa de te ouvir. Hoje em dia as pessoas estão fartas de ouvir dizer mal, estão cansadas de entender que lhes destroem pouco a pouco a esperança. Sê agradável para com elas. Enche-lhes os ouvidos de papoilas e de amores-perfeitos. Elas vão-te retribuir com atenção e aplausos."
Reparei que a Antónia o ouviu atentamente. Cerca de uma quinzena mais tarde, ela voltou a estar connosco. Disse-nos que tinha seguido o conselho e cortado algumas partes do seu bilíaco discurso. Lembrara-se de que cem gramas de mel são melhores do que uma tonelada de fel. Contou-nos que não só o público tinha gostado muito, mas também que ela própria se tinha sentido francamente melhor.
Chegado aqui, pergunto-me a mim próprio: porque será que há tantos jornais que vêm continuamente com toneladas de fel? Dos desastres fazem parangonas, de medidas governamentais elaboram manchetes que são críticas à nascença, enquanto boas notícias são via de regra ignoradas - pelo menos em primeira página? Existe uma excepção notável: quando a selecção nacional de futebol ganha, ou o Cristiano Ronaldo conquista mais um troféu para a sua colecção ou qualquer atleta nacional ganha uma medalha de ouro numa competição é quase garantido que surge um grande título e uma fotografia a cores na primeira página. Justificadamente. Faz erguer o orgulho nacional. Satisfaz as pessoas. Afinal, os leitores são como a plateia que qualquer conferencista como a Antónia enfrenta.
Será Portugal um país que gosta de saber e de falar de coisas negativas? Será Portugal um país masoquista, como o próprio fado o é ao partilhar as mágoas de alguém com os ouvintes? Não sei responder concretamente a esta pergunta, mas creio que é o segmento mais idoso da população que tende a ser mais negativo e a esperar o pior. Conjuntamente com o segmento menos educado e viajado. Alguém que é jovem, ou pelo menos intelectualmente jovem, não liga tanto a esses aspectos. Quando há pouco mais de um ano aqui escrevi sobre a Índia, lembro-me de ter realçado o optimismo da esmagadora maioria das respostas dos indianos à minha pergunta sobre se estavam contentes com a vida. Notei que respondiam espontaneamente. Revelavam apreciáveis índices de felicidade. Falavam confiantemente na sua situação e esperavam uma melhoria substancial para si e para o seu país. Faziam-no em tom positivo. Já agora: setenta e cinco por cento da população tinha menos de 35 anos. Em Portugal, uma pergunta idêntica levaria pelo menos a algumas respostas bem diferentes: "A situação está preta." "Nunca vi isto tão mal como agora!" "Por este andar, não sei onde vamos parar." Ou, ligeiramente melhor: "Por enquanto não me posso queixar!" "Ora, cá vamos andando! Seja o que Deus quiser!"
Quer queiramos quer não, o tom negativo gera negatividade. A nossa produtividade desce. A nossa felicidade também. É por isso que urge inverter a situação.
Em Portugal há óptima comida; por outro lado, os portugueses ainda são, de acordo com estatísticas internacionais, os que, na União Europeia, mais comem fora de casa. Porém, o que se vai geralmente buscar é que há muitos portugueses com deficiências alimentares - o que não deixa de ser verdade mas, por amor de Deus, não batam todos na mesma tecla!
O rendimento mínimo de inserção (RMI) existe em Portugal, ao contrário do que sucede em muitos outros países. Devo dizer que a reação mais comum que ouço ao RMI é a afirmação de que é irrisório e não dá para nada; ou então que deseduca as pessoas de trabalhar e as faz viver encostadas à sombra da bananeira, enquanto "nós" estamos a pagar para esses mandriões, que ainda assaltam carros e roubam casas.
No que diz respeito à segurança, é notório para todos aqueles que conhecem razoavelmente países estrangeiros que se nota calma nas nossas ruas e estamos longe de ser um país perigoso. Contudo, é evidente que há alguns carteiristas e há assaltos a bancos e a lojas de vez em quando. Mas será só aqui? Será que a desigualdade social que entre nós existe, bem patente nos números estatísticos, não poderia causar ainda muitos danos mais? É evidente que se tomarmos a situação de zero-problemas como a ideal, quedar-nos-emos sempre àquem desse ideal. Mas será que quem faz esses comentários é, ele próprio, um bom cidadão cem por cento cumpridor e que não explora ninguém nem o próprio Estado (outra forma de roubar)?
Portugal é um país de juventude bonita. Este início de primavera mostra-o à evidência. Mas é claro que também há muito gordinho e gordinha que deveria fazer dieta e resistir mais à publicidade de doces e quejandos. Será que é só cá? Demos uma saltada até aos Estados Unidos e ficaremos arrepiados.
Temos zonas muito bonitas do país, como suponho que muitos conhecem. Por vezes com belos monumentos. Infelizmente, não há dinheiro para restaurar todo e qualquer monumento. Fazer uma listagem desses monumentos em grande decadência pode ser óptimo para artigos de jornal, mas será que os restaura? Dir-se-á: sem essa chamada de atenção, será ainda pior. Possivelmente. Mas que dêem uma visão equilibrada dos monumentos restaurados e dos que estão em estado de degradação. Todavia, não insistam primordialmente nos negativos! Seremos, por natureza, do contra?
Às vezes páro a olhar para a beleza das estações do Metro em Lisboa. O metropolitano possui azulejos lindíssimos. Houve na decoração das estações um visível planeamento – algo que os portugueses são constantemente acusados de não fazerem. Temos como autores dessas composições artistas portugueses notáveis, como Bartolomeu Cid dos Santos, Menez, Querubim Lapa, Helena Vieira da Silva, Noronha da Costa, e alguns estrangeiros de nomeada, como Hundertwasser. Muitos desconhecem-nos.
O Parque das Nações, nas instalações da antiga EXPO-98, é um óptimo local para quem está cansado do bulício da cidade. Impecavelmente seguro, sossegado e limpo! Compare-se o que sucedeu a este parque pós-exposição universal com a área similar de Sevilha 92, que ficou uma lixeira! Entretanto, é possível e natural que no futuro a volumetria dos edifícios a construir aumente e que as áreas de relvados diminuam. Mas, enquanto a situação está como está, que seja usufruída e elogiada. Não se lastime por antecipação aquilo que eventualmente se pode perder, a não ser que seja necessária luta para que se mantenha.
Os portugueses auto-flagelam-se tanto que chegam a pedir desculpa aos estrangeiros se, num determinado dia, em vez de fazer sol estiver a chover: como se estivessem a pedir desculpa pelo facto de o Pai Deus, de que eles são filhos, não estar nesse dia tão bem-disposto como é hábito.
Em Portugal há hoje rapazes e raparigas, homens e mulheres jovens, a brilhar no domínio da ciência e da investigação. São muitos os novos doutorados que temos. E são novos doutorados que estão à vontade no mundo internacional, que falam inglês suficientemente bem para se expressarem fluentemente. Era assim no passado? Porque não reconhecer este progresso?
Se virmos bem, o nosso sistema de Segurança Social não é tão mau como alguns pretendem. Há, por exemplo, muitos meios auxiliares de diagnóstico que são grátis ou quase, enquanto nalguns países estrangeiros os médicos não têm sequer a oportunidade de os prescrever dado o seu custo. Entretanto, o que está sempre a dar é atacar o serviço público!
No campo cultural, temos melhorado imenso. Ainda há dias ouvi no programa "Câmara Clara" da RTP2 António Tabucchi tecer um enorme elogio à expansão que se nota no meio cultural português. Perfilho a mesma opinião. Umas semanas antes, Mário Soares falou sobre Novas Políticas numa sessão do INATEL no Teatro Trindade. No final, houve a habital sessão de perguntas-e-respostas. A primeira pergunta que alguém lhe fez foi sobre "a confrangedora pobreza do nosso país no domínio das artes e da cultura". A resposta de Mário Soares, viajado e conhecedor de meio-mundo, foi simples: "Nunca como hoje em dia vi tão grande desenvolvimento cultural no nosso país, seja nas grandes cidades, seja em centros mais pequenos!" Pensemos na programação da Casa da Música, no Porto, e do CCB em Lisboa. Música e ópera no S. Carlos. Clubes de Leitores. Tertúlias. Conferências, exposições, festivais e teatro em montes de sítios. Será pouco? Dantes havia mais?
E que dizer do êxito de obras de arte moderna de colecções portuguesas que são exibidas no estrangeiro? E dos arquitectos portugueses que são convidados para projectos em todo o mundo - e só o muito distraído é que pensará, ao ler esta linha, apenas no Siza Vieira!
Se olharmos bem, repararemos que o êxito de vários escritores portugueses tem sido notável. Hoje, temos escritores traduzidos no estrangeiro muito mais do que anteriormente. Consideremos, por exemplo, Gonçalo M. Tavares, A. Lobo Antunes, Saramago, Lídia Jorge. Mas há muitos mais.
Da distribuição de milhares de unidades do pequeno computador Magalhães nas escolas procura-se retirar basicamente o elemento de escárnio e gozo. Ao resto não se liga. Enfatiza-se aquilo que toda a gente sabe: que, na realidade, não é um computador que ensina a pensar. Mas de que ensina muitas outras coisas não pode haver dúvidas.

Voltando aos nossos jornais e telejornais. Parecem apostados em dar ao povo aquilo que julgam que o povo tem gosto em comer. Tricas e mais tricas, má-língua, disputas entre políticos, bota-abaixo, questões ditas de lana caprina.
Com isto não estou de forma nenhuma a falar de governos, sociais-democratas, socialistas ou seja lá o que forem. Isso não é o principal, a não ser que cometam erros sobre erros. Olhemos as grandes linhas, sejamos exigentes para com os governantes mas principalmente no que respeita a uma melhor distribuição dos rendimentos (maior justiça social), a um combate a sério à corrupção, a uma administração célere de justiça, a uma educação rigorosa e não facilitista, a comportamentos éticos e não falsamente éticos, apenas encobridores de grandes maroscas, por parte das elites. Exijamos responsabilização e punição dos culpados. Estes não são temas menores.
Seria bom e mostraria um maior conhecimento do mundo se deixássemos de ouvir dizer coisas como "Só no nosso país é que se vê uma coisa assim!". Pense-se. Se o nosso país fosse tão mau como muitos portugueses e os media parecem gostar de apregoar, será que haveria entre nós tantos estrangeiros que, voluntariamente, se deixaram "tribalizar" pelo nosso clima e pelas nossas gentes? Pessoalmente, conheço umas duas dúzias deles. Por alguma razão cá se mantêm há tantos anos!
Desculpem o longo arrazoado. Não pretendo ter razão em tudo, mas parece-me que o assunto merece alguma reflexão.

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