3/03/2009

A desglobalização


A história do mundo regista já a existência de várias globalizações, de que a actual terá sido apenas a mais completa. Pode falar-se de globalizações pelo menos desde as grandes viagens de exploração e comércio de portugueses e espanhóis há mais de cinco séculos. Por diversas razões, nas quais as guerras desempenham um papel relevante, as sucessivas globalizações têm sido interrompidas por períodos mais ou menos longos.
Fundamentalmente, aquilo que leva à globalização é o espírito das trocas comerciais e a possibilidade de exploração de oportunidades lucrativas noutros locais que sejam acessíveis por meios de transporte. Se no século XVI tínhamos que nos confinar basicamente a embarcações, hoje em dia dispomos também de aviões, caminhos-de-ferro, estradas e, além disso, de comunicações electrónicas ultra-rápidas. Olhando um pouco retrospectivamente, numa perspectiva de curto prazo mas já com interesse histórico, chegar-se-á à conclusão de que, com tal panóplia de meios, seria difícil há uns anos atrás às nações mais poderosas resistirem a encetar uma nova globalização. Irreversível, diziam muitos. Talvez, mas atenuável, dir-se-á hoje com maior propriedade. Presentemente é notório um fortíssimo abrandamento da globalização. Vamos tentar entender melhor porquê.
Da gama de possível exploração de oportunidades comerciais em larga escala escolho duas formas fundamentais: ou, como agora se tentou, através da exportação de capital e know-how para países de mão-de-obra barata, ou, como sempre se fez, através da importação de mão-de-obra barata para países com riqueza por explorar.
Nesta perspectiva, não hesito em considerar o movimento da escravatura até ao século XIX como uma parte significativa de um movimento globalizador. A mão-de-obra africana que foi encaminhada tanto para a América do Norte como para a América Latina constituiu um aproveitamento que apresenta algumas semelhanças, por parte do explorador, com a actual utilização da mão-de-obra chinesa, indonésia e indiana. A escravatura foi um movimento que se prolongou durante séculos e que terá levado à emigração forçada de vários milhões de africanos para países como o Brasil e os actuais Estados Unidos, além da Grã-Bretanha, que foi a grande potência colonial desde o séc. XVII até ao século passado. Para tal dispunha, como se sabe, de uma poderosa armada e de uma marinha mercante de elevada importância no comércio mundial.
Aqui chegados, convirá formular a seguinte pergunta: se a exploração da mão-de-obra barata que vinha das terras de África permitia a formação de grandes fortunas através das plantações de algodão e tabaco (nos EUA), da exploração de minas de ouro e diamantes (no Brasil), etc., por que motivo foi a escravatura abolida? A resposta parece mais importante ainda quando pensamos que, de entre todas as nações europeias, a Grã-Bretanha foi o primeiro país a aboli-la, em 1834.
Como todos sabemos, não existe geralmente uma explicação única para a ocorrência de um determinado fenómeno. Para diversos autores, em opinião que perfilho, a razão primordial da abolição da escravatura foi o surgimento na Grã-Bretanha da dupla revolução agrícola e industrial. Este facto levou ao emparcelamento de terras e à construção de inúmeras fábricas. Ora, tanto nas terras como nas fábricas, havia necessidade de trabalhadores, mas agora já em número que dispensava a vinda de escravos africanos. Além disso, a principal colónia da Grã-Bretanha - o território da América do Norte - tornara-se independente em 1776. Os escravos continuavam a ser importantes nas plantações do sul dos Estados Unidos, mas na Inglaterra já se mostravam excedentários. Pelos motivos acima expostos e não tanto por alegadas razões humanitárias que entram em clara contradição com a chacina de negros que se manteve por parte do exército colonial britânico em terras de África, a escravatura foi abolida. Causava problemas aos nacionais. Apesar de o vastíssimo império colonial inglês constituir uma forma de emprego para muitos britânicos, da Índia à Birmânia, da África do Sul à menos desejada Nigéria, era urgente arranjar emprego para os ingleses na sua própria terra.
Entretanto, o que aconteceu a Portugal, aliado da Inglaterra e grande transportador de escravos nos seus navios negreiros? É evidente que sendo os ingleses "uma nação de comerciantes", como Napoleão gostava de lhes chamar, eles não iam consentir que Portugal continuasse com o comércio da escravatura, o que daria ao nosso país uma importante vantagem comparativa nalguns produtos (o romance Equador, de Sousa Tavares, e agora a série televisiva com o mesmo nome abordam este assunto da concorrência entre o preço do cacau obtido graças à condição de escravos dos trabalhadores das roças de S. Tomé e o preço que na altura era conseguido pela fábrica de chocolates Cadbury inglesa). Em consequência da situação, Portugal foi obrigado a ceder e declarou oficialmente a abolição da escravatura em 1869. ("Fica abolido o estado de escravidão em todos os territórios da monarquia portuguesa, desde o dia da publicação do presente decreto." D. Luís, Diário do Governo, 27 de Fevereiro de 1869.)
Foi em 1807 que os Estados Unidos, pela mão de Thomas Jefferson, assinaram a lei que passou a proibir a importação de escravos, a qual se registava desde o século XVII. Nesse ano de 1807 havia mais de quatro milhões de escravos nos EUA, que mantiveram a sua condição, trabalhando especialmente nas plantações do Sul. Como no Norte do país, mais industrializado e, portanto, menos dependente da agricultura, os escravos não faziam falta, a escravidão não era bem aceite. Digamos que esse foi um dos factores que conduziram à Guerra Civil americana de 1861-65, a qual terminou com a vitória dos yankees sobre os dixies. Só em 1865 o Presidente Lincoln pôde aprovar a 13ª emenda constitucional, que aboliu a escravatura em todas as suas dimensões.
Deste breve apanhado de coisas passadas saliento o facto de os governos pretenderem, com alguma lógica - que se aceita ou reprova -, guardar os empregos para os seus concidadãos. Foi em certa medida neste sentido que há cerca de dois anos Sarkozy se insurgiu contra uma medida da União Europeia: os subsídios que a UE estava a conceder a países como a Hungria e a Polónia para a instalação de fábricas multinacionais que assim abandonavam outros países da União, incluindo a própria França. Argumentava Sarkozy que o conjunto de subsídios da União Europeia, acrescido de uma forte redução fiscal, levava as empresas multinacionais a deslocalizar-se e a causar um indesejado desemprego nos países onde estavam previamente a laborar. Por outras vias, a União Europeia estava a fazer funcionar as hungrias e as roménias como um Oriente Próximo.
O mundo estava a funcionar sobre rodas, pode dizer-se. Só que os pneus das rodas, de tão cheios que estavam, podiam explodir a qualquer instante. Aquele ar a mais estava a causar grandes bolhas. Acabaram por rebentar. A partir daí, tocou o sino de alarme em muitos países. E tocou mais em países, cada um prioritariamente a olhar mais por si do que olhando globalmente para o mundo. Afinal, os problemas internos é que têm de ser resolvidos pelos políticos, alguns com eleições à porta.
No caso concreto da União Europeia, seria de esperar uma acção concertada que envolvesse quase trinta países? Só um inveterado optimista o esperaria. Porquê? Por um lado, porque a União ainda é demasiado jovem. Nem o Tratado de Lisboa recebeu ainda a ratificação de todos os países. Fazem-se reuniões ditas informais das nações mais representativas, deixando de fora as mais pequenas. Nada disso deve verdadeiramente surpreender em períodos de crise, mas é um facto que as diferenças são demasiado notórias para que uma união possa funcionar bem e em consonância logo de início. As línguas são muitas e quase todas diferentes. E não se diga que a língua não é um factor de união, também cultural: veja-se o caso belga como prova categórica da antítese dessa união. Por outro lado, as culturas individuais de cada país, que datam de há vários séculos, encontram frequentemente mais pontos de fricção bélica do que de alianças amigáveis. A religião, que também esteve na origem de múltiplos conflitos, está muito longe de ser comum a todos os países. As economias são diversas, o que pode constituir uma enorme vantagem, mas a capacidade organizativa e de trabalho das pessoas, também diverge bastante. O sistema educativo apresenta igualmente diferenças notórias. Tudo isto provoca uma união algo difícil. Como se poderia esperar que todos pensassem primeiro no todo europeu e só depois na sua própria nação? Daqui advém um lógico nacionalismo, que aliás é bem nítido quando existem competições desportivas entre equipas ou selecções de países diversos mas pertencentes à mesma União.
O nacionalismo tende a provocar algum proteccionismo, o qual só as nações maiores se podem dar ao luxo de implementar. O proteccionismo contraria o comércio livre e, numa primeira instância, beneficia os Golias e afecta os Davids. À la longue, afecta todos.
O desemprego que grassa por todo o lado nas sociedades ocidentais – a Espanha já tem cerca de 3 milhões e meio de desempregados – deveria ser a má-consciência dos homens do capital globalizado. Porém, isso só sucederia se eles tivessem verdadeira consciência. Esta é, porém, abafada pela química do lucro, pelo que os homens do capital arranjarão sempre pretextos para se defenderem. A verdade é que nas últimas décadas os capitalistas afortunados apostaram no risco e ganharam fortunas à custa da exploração humana. Puseram indiscutivelmente sempre o capital à frente das pessoas, as quais eles habitualmente rotulam de recursos (humanos, para que se distingam de todos os outros recursos que surgem nas rubricas contabilísticas). Agora que vêem evaporar-se muito do seu dinheiro através das quedas das bolsas, esperam que seja o Estado a socorrer e a empregar as pessoas. Moldam-se à situação que mais lhes convém. Tal como não interessa a cor do gato desde que cace ratos, também para eles a ideologia é de somenos importância.
De tudo resulta que a globalização já perdeu o forte ritmo que a animou durante vários anos e está presentemente a ceder. O movimento de exportações e importações declinou substancialmente. Quando e como tudo terminará, ninguém verdadeiramente sabe. Mas há duas coisas que foram aprendidas. Uma delas é que a grande regra da economia e da finança que se manteve, ao contrário de múltiplas outras que soçobraram, foi a de que é altamente conveniente que as pessoas não coloquem todos os ovos no mesmo cesto. Trata-se de uma verdade consagrada.
A outra grande verdade, em minha opinião, é a de que a noção de que o progresso é graficamente representado por uma linha recta em constante ascensão é tão perigosa como a ideia de que o mercado se auto-regula através da celebrada "mão invisível". Mãos invisíveis existem, de facto, mas com outras finalidades bem diferentes.

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