5/11/2009

Abbé Faria


Moro em Lisboa, no Bairro dos Actores. O nome do bairro sugere que a toponímia local inclui nomes de actores que foram populares no seu tempo. Como tudo é efémero, porém, hoje será já difícil encontrar pessoas que se lembrem dos referidos actores e actrizes, até porque muitos actuaram apenas no teatro e não ficaram gravados em película de cinema. Se as suas peças foram esquecidas, os seus nomes seguiram naturalmente o mesmo rumo. A minha rua recebeu a designação de Actor Vale. Só assim. Sem nome próprio. Apenas o apelido. O resultado é que uma percentagem significativa de pessoas endereça a sua correspondência para a Rua Actor do Vale sem que a conotação geográfica tenha algum significado. Da Actriz Virgínia haverá também certamente pouca lembrança, assim como do Actor Isidoro. Joaquim de Almeida e outros enfileiram o rol dos esquecidos. No meio, algo surpreendentemente, surge nestas ruas o nome do Abade Faria. Terá o Abade sido actor?
A primeira vez que ouvi uma referência ao nome do abade foi por parte de uma amiga que, já há muitos anos, me falou de um excelente médico de clínica geral que tinha o seu consultório na rua. Confirmei a excelência do médico em questão e nunca mais esqueci o nome.
Para minha surpresa, o ano passado aquando de uma viagem à Índia, a figura do abade surgiu-me de novo, desta vez em Goa. A foto acima mostra uma estátua no meio de uma praça de Pangim. A estátua é algo parodiada na cidade devido à gestualidade do abade relativamente à mulher a seus pés. O que estará ele a fazer-lhe ou a tentar fazer? E porque se encontra a estátua ali em Goa? E por que razão, localmente, lhe chamam Abbé e não Abade?
De seu nome completo José Custódio de Faria, ele nasceu em Goa em 1746, onde fez os seus primeiros estudos. Com 25 anos veio para Lisboa, mas passados uns meses rumou a Roma, onde se formou em teologia e foi ordenado sacerdote. Por se ter envolvido numa abortada conspiração contra o regime português em Goa, refugiou-se em Paris em 1788, um ano antes da Revolução Francesa. Em 1795 foi um dos líderes dos movimentos revolucionários. Frequentava a casa do escritor Chateaubriand e o salão da Marquesa de Custine. Em 1811, foi nomeado professor de Filosofia em Marselha e Nîmes. De regresso a Paris dois anos mais tarde, desenvolveu uma doutrina inovadora sobre o hipnotismo, afirmando que o sono hipnótico dependia não do hipnotizador mas sim do hipnotizado. Como seria de esperar, foi considerado charlatão por uns tantos e acusado pelas autoridades religiosas de ter ligações com o diabo. Gradualmente, porém, a sua postura impôs-se. Conforme informações que retiro de um interessante livro que foi muito recentemente publicado – Les Portugais à Paris, da autoria de Agnès Pellerin – o general Noget conta o seguinte nos escritos que nos legou: "Em 1815, havia em Paris um indivíduo que fazia sessões públicas de hipnotismo. Reunia todos os dias no seu consultório cerca de sessenta pessoas e era raro que, entre elas, não surgissem cinco ou seis que eram susceptíveis de entrar em hipnose. O indivíduo em questão declarava abertamente que não possuía qualquer segredo ou poderes sobrenaturais: tudo o que alcançava não dependia senão da vontade das pessoas sobre as quais agia."
Em 1819, o Abade, que tinha entretanto sido nomeado capelão de um convento de religiosas, publicou um ensaio polémico e depressa se tornou uma verdadeira coqueluche em Paris. Infelizmente, faleceu nesse mesmo ano de apoplexia. Contava 73 anos. A sua figura veio a inspirar vários escritores, nomeadamente Alexandre Dumas, que fez dele um personagem-chave no seu Conde de Monte-Cristo, e Chateaubriand, que o evocou nas suas Memórias do Além-Túmulo
Em 1884, Hipólito Bernheim reconheceu que "Faria possui o mérito incontestável de ter sido o primeiro a estabelecer a doutrina do método da hipnose pela sugestão, rejeitando Mesmer e Puységur." (Faria tinha iniciado os seus estudos sobre o hipnotismo com o marquês de Puységur.) Foi a reabilitação total do "abbé".
Posto isto, deixo à consideração dos leitores a questão da justeza ou não da sua inclusão na toponímia do Bairro dos Actores.

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