O nosso 1º de Maio costuma ser bastante pacífico, embora conte com inflamadas palavras de ordem. Este ano, devido à enorme onda de desemprego que aflige o país, havia razão para que os protestos no Dia do Trabalhador atingissem um nível mais elevado.
Ocorreu apenas um incidente com o deputado cabeça-de-lista pelo PS às próximas eleições para o Parlamento Europeu. O incidente em si não terá tido grandes consequências, mas creio que dá azo a uma breve reflexão.
É bem sabido que Vital Moreira foi um militante do Partido Comunista Português. À semelhança de outros membros do PCP, a dada altura ingressou no Partido Socialista. Os insultos – nomeadamente o apodo de "traidor" - que ele recebeu neste 1º de Maio da parte de alguns apoiantes do PCP mostram bem o que é o fundamentalismo de que tanto se fala.
O fundamentalista baseia-se no conceito de uma verdade inabalável que só uns tantos como ele, pretensamente iluminados, possuem. Nos meus tempos de liceu, brincávamos com a ideia dizendo "Quem não está connosco, está contra nosco!" De facto, parece que, maniqueisticamente, só existem dois campos: o nosso e o do inimigo, como se de Deus e do Diabo se tratasse. Os mesmos que vitoriam ou exigem a existência de liberdade cerceiam totalmente a uma pessoa do seu grupo a liberdade de escolher uma outra via. É um estranho conceito de liberdade. Ora, mudar de ideias ou de opinião é não só um acto perfeitamente normal como geralmente sintomático de uma sempre desejável evolução. Ressalvo a mudança por puro oportunismo, a qual é altamente criticável, como não poderia deixar de ser. Esses são os vira-casacas.
É o conhecimento de novas realidades ou a percepção de um facto até então ignorado que leva todos os dias muitas pessoas a adoptarem um novo posicionamento mental. Em face do que vieram a constatar na política da Administração Bush, muitos dos tradicionais apoiantes dos republicanos nos Estados Unidos votaram de forma diferente nas últimas eleições, colocando o democrata Obama no poder. Não foram vira-casacas. Aqui o que esteve em questão foi o reconhecimento de factos objectivos.
Ora, o fundamentalista não admite essa viragem. Para ele, quem está com um partido tem de se manter fiel e incondicional até à morte. Daí que tantos comunistas ocidentais tenham fechado os olhos a factos gravíssimos ocorridos nos países da antiga Cortina de Ferro. Ou da China. Ou que republicanos dos EUA continuem a considerar que Bush foi um bom presidente. Ou...
A tomada de conhecimento de factos graves que desconhecíamos poderá, logicamente, ser condição necessária e suficiente para uma brusca mudança de opinião. Se uma mulher que adora o seu marido, com o qual está casada há quinze anos, vier a saber que ele a tem atraiçoado nos últimos três anos, não é natural que passe a vê-lo com olhos completamente diferentes? Não será lógico que encare a possibilidade de se separar dele e dar outro rumo à sua vida? É esse o princípio da liberdade.
Quando Humberto Delgado, que chegou a ser o principal chefe militar da Legião Portuguesa, descobriu nos Estados Unidos outra realidade bem mais agradável do que a do seu país, será que não deveria ter tido a liberdade de negar o seu apoio a Oliveira Salazar? Idem Freitas do Amaral relativamente ao CDS, quando regressou da sua missão de Presidente da Assembleia-Geral das Nações Unidas. "Evoluiu", dirão os mais objectivos. "Traiu", dirão os fundamentalistas. Quando o escritor Jorge de Sena, como tantos outros intelectuais que viveram no regime salazarista, tentou voltar a trabalhar em Portugal e só encontrou dificuldades, não é natural que tenha afirmado aquilo que disse ("A questão não é salvar Portugal, mas sim salvarmo-nos de Portugal.")?
É a não-admissão de evoluções que, afinal, são tão naturais como a sucessão das estações do ano, que torna os fundamentalistas inapelavelmente intolerantes. E cassetes falantes! É, no fundo, a mesma paixão cega que leva a que um jogador do Benfica que se transfira para o F.C. Porto seja vaiado quando toca na bola, sempre que vem jogar no seu antigo estádio. Será que o jogador não era livre de escolher o Porto, como anteriormente foi livre de escolher o Benfica? Quem não concede aos outros a liberdade de opção tem sempre dentro de si a mente de um ditadorzinho. Maior ou menor. A liberdade de que gozamos é um bem extraordinário. Não o reconhecer é um sinal de enorme mediocridade.
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