5/22/2009
Verdade e hipocrisia
Tem sido recorrente. Os relatórios que finalmente têm vindo a público sobre comportamentos menos próprios de adultos com crianças em instituições tuteladas pela Igreja católica revelam algo de que há muito existem rumores, agora plenamente confirmados. O último dos casos abarca um país – a Irlanda - onde o aborto legal ainda provoca debates apaixonados e revela opiniões profundamente arreigadas e pouco discutidas. Um pouco como em Portugal.
Este relatório irlandês, com umas fartas 2500 páginas, concluiu que, comprovadamente, mais de 2000 crianças – hoje adultos, alguns já com idade avançada - foram alvo de abusos sexuais, sobretudo nas instituições destinadas a rapazes. Outra das conclusões, possivelmente ainda mais escandalosa, é que as autoridades religiosas tinham conhecimento da existência desses abusos sexuais como invariável problema das instituições masculinas irlandesas e calaram os casos em vez de os reprimir e revelar.
Esta é, afinal, apenas a mais recente notícia de abusos desta ordem em comunidades ou países católicos. Nos Estados Unidos, a Igreja Católica sofreu já este século um forte abalo com revelações semelhantes, as quais conduziram a um pedido de desculpas do actual Papa aquando da sua visita à América do Norte em 2008. Na terra do grande capital, foram entregues avultadas somas às vítimas como compensação pelos abusos registados. Como se algo do género fosse passível de ser olvidado e perdoado através de meras ofertas monetárias...
Outros países maioritariamente católicos, como a Áustria, a França, Espanha e, naturalmente, Portugal, têm, de tempos a tempos, sido abalados por revelações comprometedoras de factos semelhantes.
É por demais evidente que não existe um remédio único e eficaz para acabar de vez com casos desta ordem, mas convirá reflectir um pouco sobre o assunto e não comentar a notícia como um simples fait divers. Quem vive já há bastantes anos em países católicos possui plena consciência do descrédito que tem assaltado a instituição Igreja. Com altos e baixos, é verdade, porque existem também acções muito meritórias que a Igreja tem levado a cabo. Sente-se que não pode existir uma confiança total na instituição. Prevalece, infelizmente, uma dose larguíssima de hipocrisia, como estas revelações irlandesas manifestam.
Ainda há dias (vd. Já pedi desculpa, não pedi?!), eu discorria neste blog sobre o posicionamento de muitas pessoas que vão à confissão ao fim-de-semana para a limpeza do seu cadastro religioso, não totalmente convictos porém de que deixarão de continuar a pecar. Deste modo a coisa é fácil. Tão fácil como dizer, numa das principais orações católicas, "assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido", acto que, em razão da natureza humana, não deixará possivelmente de ser utilizado pelo ofensor para continuar a ofender, certo de que a sua ofensa será perdoada.
Na base da situação de abusos sexuais por parte de elementos do clero está em grande parte, creio eu, a abstrusa regra do celibato obrigatório de todos aqueles que querem ser ministros de Deus. Inversamente, outras religiões menos fundamentalistas neste aspecto concordam com uma verdade que se aproxima do senso comum: que as relações sexuais contribuem para um desenvolvimento equilibrado e saudável das pessoas. A repressão do desejo sexual conduz frequentemente a posicionamentos desajustados da realidade e até a uma doentia perversidade mental de que temos exemplos às centenas nas fogueiras da Inquisição: no prazer orgásmico de ver pessoas a serem queimadas pelo seu pretenso pecado de não comungarem das "nossas" ideias.
Não sei se é apócrifa a prece a Deus que se conta sobre Santo Agostinho quando jovem: "Senhor, dai-me a virtude da castidade e da continência. Mas ainda não!" É algo que me faz sorrir mas que entendo perfeitamente. Aldous Huxley, o homem do Admirável Mundo Novo foi claríssimo: "A castidade é a mais aberrante das perversões sexuais."
Há muitos padres que são homossexuais, o que, naturalmente, não é doença nenhuma. Num número indeterminado de casos, terá sido esta uma das facetas que fizeram com que eles seguissem a carreira eclesiástica - para ficarem protegidos dos olhares críticos do mundo e deixarem de se preocupar com a clássica pergunta "Então quando é que te casas?". Note-se, de resto, que à claramente maior abertura e compreensão da sociedade ao mundo homossexual corresponde uma diminuição significativa do número de jovens que pretendem abraçar o sacerdócio. Não digo, entretanto, que esta é a razão. Será, mesmo assim, uma das razões para a quebra notória que se nota nesse domínio. É natural e lógico. Contra-natura e ilógica é a persistência da Igreja no celibato obrigatório.
A abolição deste celibato compulsivo não significaria, obviamente, que se estivesse a instituir o casamento obrigatório. Este é um acto optativo, no qual a personalidade de cada um e a existência de uma outra pessoa concordante têm a última palavra. Mas essa seria uma opção. Dava-se liberdade à pessoa. Agora é uma obrigação. Obrigação que, ao longo de séculos tem inegavelmente sido mais perniciosa do que benéfica.
Uma última palavra sobre este assunto, que daria pano para mangas: quando abades, bispos, arcebispos e cónegos mostram aos 60 ou 70 anos o seu arrependimento quer pelo encobrimento, quer pela prática de actos sexuais menos dignos, eles estão já numa fase da vida em que a química do desejo sexual é francamente menor. O seu arrependimento acaba por significar muito pouco quando, afinal, logo a seguir defendem ou pelo menos não se opõem à continuidade do sistema para os novos padres que são ordenados. Até parece que a hipocrisia tem mais valor do que a verdade.
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