5/27/2009

O sapato de Montaigne


Aquando de uma recente estadia em Paris, calhei a ficar num pequeno hotel da rue des Écoles, perto do Boulevard St. Michel. Na rue des Écoles fica também o edifício principal da Sorbonne.É em frente deste edifício que se encontra a estátua de Montaigne (1533-1592) que a foto mostra. Montaigne, que foi aluno do português André de Gouveia, então director do Collège de Guyenne em Bordéus, foi um notável ensaísta. Os seus três volumes de ensaios continuam hoje a ser lidos e estudados, até porque são modernos em muitos aspectos. Neles, o autor revela a enorme virtude de não ser doutoral ao dirigir-se ao leitor, perguntando mais do que respondendo e levantando dúvidas pertinentes. O seu lema é o famoso “Que sais-je?”, o qual deu aliás origem a uma bem conhecida colecção de livros francesa.
"É mais importante encher a panela ou atear o lume?", pergunta Montaigne numa das suas muitas questões no domínio da educação. Por uma vez, neste caso avança com uma resposta, aliás perfeitamente de acordo com o pensar dos nossos dias: "A criança não é um recipiente que devemos encher, mas sim um fogo que é preciso atear."
Os seus ensaios, escritos na remansa quietude do seu château de Montaigne nos arredores de Bordéus, cedo lhe grangearam celebridade no mundo académico. Foi portanto acertadamente que o município de Paris colocou a estátua de Montaigne em frente à Universidade. Note-se, entretanto, que o sapato do pé direito – entrar primeiro com esse pé é importante, lá como cá - está muito mais brilhante do que o outro. Os estudantes acreditam que lhes dá sorte passar ali com a mão e o resultado está à vista. É uma superstição que não traz nenhum mal ao mundo. Quem julgar que se trata de graxa ao mestre está redondamente enganado. Ele não encaixaria coisas desse género.

5/24/2009

Telemóveis na sala de aula

O caso Watergate, ocorrido em Washington em 1972 acabou por pôr fim à carreira presidencial de Richard Nixon dois anos depois. Ficou provado, entre outros factos, que o Governo tinha disponibilizado à oposição instalações oficiais nas quais tinham sido previamente escondidos microfones que permitiam ao Governo gravar todas as reuniões dos seus adversários, com as vantagens inerentes.
Na minha vida profissional tive dois casos ligados a gravações. Num deles, o Presidente do Conselho Científico de que eu era membro anunciou que iria gravar todas as reuniões a fim de impor maior produtividade de trabalho. A realidade era, contudo, outra e, dado que na altura havia na instituição vários processos disciplinares contra professores, a presença do gravador amedrontou muitos membros, que preferiam ficar calados a dizerem de sua justiça. O Presidente teve de desistir da sua medida.
Num outro caso, na mesma instituição e no mesmo órgão mas em ocasião diferente, foi utilizado de novo um gravador, desta feita sob a alegação de ajudar na feitura das actas. Também nesta ocasião o ambiente que se vivia na instituição apresentava problemas graves. Mais tarde, verificou-se através da audição das gravações que tinha havido manipulação dos projectos de actas, os quais omitiam factos importantes e davam realce a outros que comprometiam determinadas pessoas.
Esta é, em resumo, a minha experiência profissional com gravadores. Devo dizer que se por acaso algum aluno meu me pedisse para gravar uma aula – o que nunca sucedeu – eu poderia consentir se considerasse que havia razões plausíveis para a gravação. A forma como eu daria a aula, porém, estaria longe de ser a habitual. Uma gravação condiciona as pessoas – certamente umas mais do que outras. Esta é uma das razões por que muitas das gravações acabam por ser feitas sem o conhecimento e concomitante consentimento de quem vai ser gravado.
Este arrazoado vem, naturalmente, a propósito do que se passou numa escola portuguesa muito recentemente. Uma professora que, segundo a informação que possuo, teria frequentemente um comportamento que desagradava a alguns estudantes, colocando perguntas algo insólitas e fazendo comentários menos correctos, viu uma parte de uma aula sua ser gravada por uma aluna. Presentemente, a professora está a ser alvo de um processo disciplinar.
Pergunta-se: a aluna que efectuou a gravação vai ser punida? A gravação tem valor legal? Este facto não pode levar a que, noutros estabelecimentos de ensino, alunos passem a gravar aulas dos professores sem o consentimento destes? Que efeito terá este facto sobre o ensino e sobre as relações humanas na escola? Ou deverá proibir-se os alunos, tout court, de usarem gravadores (incorporados nos telemóveis) durante as aulas?
Ser bufo é muito feio. Lembra tempos pouco democráticos e situações inadmissíveis numa sociedade sã. Mas protestar justificadamente não é ser bufo. Imaginemos que os alunos de uma determinada turma se consideram ofendidos pela forma como são tratados numa disciplina pelo seu professor. Que deverão fazer? Falar com o professor? Expor as suas razões ao órgão directivo e participar o caso? Suponhamos agora que esse órgão não quer actuar e, de facto, nada faz. Passará a ser eticamente legítimo que um dos estudantes efectue uma ou mais gravações exemplificativas do que se passa? Ou, em alternativa, deverá o Director pedir ele próprio a um aluno para fazer essas gravações, com isso dando-lhe tacitamente autorização mas quebrando o pacto de lealdade de relacionamento com os professores?
Todas estas questões vêm mostrar uma necessidade evidente: a de haver uma avaliação regular da escola, incluindo obviamente os professores. Nessa avaliação os alunos deverão participar, ao contrário do que tem sido sugerido até agora. Situações como esta, em questionário aberto, são imediatamente detectadas através de um número suficientemente grande de comentários de estudantes, dando assim total credibilidade aos seus depoimentos. A utilização de telemóveis bem pode a partir desse instante ser taxativamente proibida nas aulas, com punição especificada para os eventuais infractores.

5/22/2009

Verdade e hipocrisia


Tem sido recorrente. Os relatórios que finalmente têm vindo a público sobre comportamentos menos próprios de adultos com crianças em instituições tuteladas pela Igreja católica revelam algo de que há muito existem rumores, agora plenamente confirmados. O último dos casos abarca um país – a Irlanda - onde o aborto legal ainda provoca debates apaixonados e revela opiniões profundamente arreigadas e pouco discutidas. Um pouco como em Portugal.
Este relatório irlandês, com umas fartas 2500 páginas, concluiu que, comprovadamente, mais de 2000 crianças – hoje adultos, alguns já com idade avançada - foram alvo de abusos sexuais, sobretudo nas instituições destinadas a rapazes. Outra das conclusões, possivelmente ainda mais escandalosa, é que as autoridades religiosas tinham conhecimento da existência desses abusos sexuais como invariável problema das instituições masculinas irlandesas e calaram os casos em vez de os reprimir e revelar.
Esta é, afinal, apenas a mais recente notícia de abusos desta ordem em comunidades ou países católicos. Nos Estados Unidos, a Igreja Católica sofreu já este século um forte abalo com revelações semelhantes, as quais conduziram a um pedido de desculpas do actual Papa aquando da sua visita à América do Norte em 2008. Na terra do grande capital, foram entregues avultadas somas às vítimas como compensação pelos abusos registados. Como se algo do género fosse passível de ser olvidado e perdoado através de meras ofertas monetárias...
Outros países maioritariamente católicos, como a Áustria, a França, Espanha e, naturalmente, Portugal, têm, de tempos a tempos, sido abalados por revelações comprometedoras de factos semelhantes.
É por demais evidente que não existe um remédio único e eficaz para acabar de vez com casos desta ordem, mas convirá reflectir um pouco sobre o assunto e não comentar a notícia como um simples fait divers. Quem vive já há bastantes anos em países católicos possui plena consciência do descrédito que tem assaltado a instituição Igreja. Com altos e baixos, é verdade, porque existem também acções muito meritórias que a Igreja tem levado a cabo. Sente-se que não pode existir uma confiança total na instituição. Prevalece, infelizmente, uma dose larguíssima de hipocrisia, como estas revelações irlandesas manifestam.
Ainda há dias (vd. Já pedi desculpa, não pedi?!), eu discorria neste blog sobre o posicionamento de muitas pessoas que vão à confissão ao fim-de-semana para a limpeza do seu cadastro religioso, não totalmente convictos porém de que deixarão de continuar a pecar. Deste modo a coisa é fácil. Tão fácil como dizer, numa das principais orações católicas, "assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido", acto que, em razão da natureza humana, não deixará possivelmente de ser utilizado pelo ofensor para continuar a ofender, certo de que a sua ofensa será perdoada.
Na base da situação de abusos sexuais por parte de elementos do clero está em grande parte, creio eu, a abstrusa regra do celibato obrigatório de todos aqueles que querem ser ministros de Deus. Inversamente, outras religiões menos fundamentalistas neste aspecto concordam com uma verdade que se aproxima do senso comum: que as relações sexuais contribuem para um desenvolvimento equilibrado e saudável das pessoas. A repressão do desejo sexual conduz frequentemente a posicionamentos desajustados da realidade e até a uma doentia perversidade mental de que temos exemplos às centenas nas fogueiras da Inquisição: no prazer orgásmico de ver pessoas a serem queimadas pelo seu pretenso pecado de não comungarem das "nossas" ideias.
Não sei se é apócrifa a prece a Deus que se conta sobre Santo Agostinho quando jovem: "Senhor, dai-me a virtude da castidade e da continência. Mas ainda não!" É algo que me faz sorrir mas que entendo perfeitamente. Aldous Huxley, o homem do Admirável Mundo Novo foi claríssimo: "A castidade é a mais aberrante das perversões sexuais."
Há muitos padres que são homossexuais, o que, naturalmente, não é doença nenhuma. Num número indeterminado de casos, terá sido esta uma das facetas que fizeram com que eles seguissem a carreira eclesiástica - para ficarem protegidos dos olhares críticos do mundo e deixarem de se preocupar com a clássica pergunta "Então quando é que te casas?". Note-se, de resto, que à claramente maior abertura e compreensão da sociedade ao mundo homossexual corresponde uma diminuição significativa do número de jovens que pretendem abraçar o sacerdócio. Não digo, entretanto, que esta é a razão. Será, mesmo assim, uma das razões para a quebra notória que se nota nesse domínio. É natural e lógico. Contra-natura e ilógica é a persistência da Igreja no celibato obrigatório.
A abolição deste celibato compulsivo não significaria, obviamente, que se estivesse a instituir o casamento obrigatório. Este é um acto optativo, no qual a personalidade de cada um e a existência de uma outra pessoa concordante têm a última palavra. Mas essa seria uma opção. Dava-se liberdade à pessoa. Agora é uma obrigação. Obrigação que, ao longo de séculos tem inegavelmente sido mais perniciosa do que benéfica.
Uma última palavra sobre este assunto, que daria pano para mangas: quando abades, bispos, arcebispos e cónegos mostram aos 60 ou 70 anos o seu arrependimento quer pelo encobrimento, quer pela prática de actos sexuais menos dignos, eles estão já numa fase da vida em que a química do desejo sexual é francamente menor. O seu arrependimento acaba por significar muito pouco quando, afinal, logo a seguir defendem ou pelo menos não se opõem à continuidade do sistema para os novos padres que são ordenados. Até parece que a hipocrisia tem mais valor do que a verdade.

5/19/2009

A propósito de uma conferência

Na terça-feira passada, o conhecido médico Fernando Nobre foi convidado da INATEL para falar sobre Solidariedade. Fui ouvi-lo. Valeu a pena. O que abaixo deixo escrito não se pode considerar uma reprodução da conferência e tem vários aditamentos meus, mas o essencial do que foi dito creio que está registado. Entretanto, permito-me fazer notar que não se tratou de uma sessão de bota-abaixo. O médico em questão não é um político de carreira, conquanto a sua análise tenha muito de político, como se poderia esperar de um homem bem informado.
Pessoalmente, e sei que não estou sozinho na minha opinião, sinto que Fernando Nobre é um homem bom. Tem dado provas evidentes de se preocupar profundamente com os outros. Nascido em Angola em 1951, foi aos 12 anos com a família para o ex-Congo Belga. Posteriormente, cursou medicina na Bélgica, onde viveu durante cerca de 20 anos. Entre 1977 e 1983 participou na Associação de Médicos Sem Fronteiras. Em 1984 fundou ele próprio a AMI (Assistência Médica Internacional). Incansável, Fernando Nobre já participou em missões humanitárias em cerca de 100 países.
Como orador, Fernando Nobre (FN) não tem qualquer semelhança com os deputados-tipo do parlamento português e, embora seja mais um fazedor, comunica bem e faz passar a sua mensagem.
Neste caso, falou concretamente sobre a solidariedade possível na nossa sociedade e apontou diversos caminhos, todos exequíveis e alguns a necessitarem apenas de ser aprofundados. Desassombradamente, abordou questões actuais e não se incomodou de ser politicamente menos correcto ao chamar os bois pelos nomes. Acordaram em mim as recentes palavras fortíssimas que D. Manuel, bispo emérito de Setúbal, pôs na boca dos mais desfavorecidos: "Sem pão, ou mato ou me mato." Na palavra desespero (quando nada esperamos na nossa desesperança), a esperança está ausente.
FN considerou o desemprego como a principal causa da pobreza e uma perigosa bomba social ao retardador. Recordou a grave disparidade social existente no nosso país, que causa escândalo perante outras sociedades europeias em que o desnível que se regista entre os 20 por cento mais ricos e os 20 por cento mais pobres é francamente menos notório.
Sobre os políticos e a política em geral, não hesitou em referir aquilo que quase todos vemos: uma enorme desconfiança e um evidente descrédito. Censurou os casos em que os administradores aumentam as suas remunerações ao mesmo tempo que despedem empregados. Afirmou que ser líder é ter obrigatoriamente que dar o exemplo, o que implica um número muito maior de deveres do que de direitos. O contrário, que tem sido prática corrente, revela uma sociedade inquinada e uma solidariedade inexistente.
Henri Bartoli, famoso economista francês falecido o ano passado, disse que "a economia não tem como seu primeiro objectivo produzir bens e serviços, acumular capitais, realizar lucros, mas sim servir a vida e a conquista pela espécie humana do seu estatuto de humanidade. A economia é das pessoas e não das coisas." É isso que vemos?
Por seu lado, Carlos Fuentes lembra que hoje em dia "o que se mundializa não é a riqueza, mas sim a pobreza."
Segundo FN, a continuada construção de condomínios fechados em Portugal é mais um sintoma de uma sociedade desequilibrada e doente. Actualmente, há crianças em Portugal a comerem apenas uma refeição decente por dia: a que lhes é servida na escola. Este é, infelizmente, o resultado de pensões de reforma muito baixas e de situações de grande aflição. O negócio das casas de penhores floresce, as marcas brancas dos supermercados vêem a procura aumentar.
Se virmos bem, a diferença relativamente à crise de 1929 não é tão grande como se propala. Ora, convém lembrar que essa crise desembocou em ditaduras, a começar na Alemanha de Hitler, na Espanha após a Guerra Civil, na Itália, em Portugal, etc. Se prestarmos atenção, veremos que, entretanto, os orçamentos militares de diversos países não têm presentemente vindo a diminuir. Pelo contrário.
Continua a ser cada vez mais preciso lutar por melhor justiça (a justiça é, em si, solidariedade). É essencial combater escandalosas injustiças fiscais, como as que são praticadas através das sociedades offshore, vulgo "paraísos fiscais".
Por seu lado, os mais educados possuem deveres vários para com o seu país, tais como fornecer alguma educação financeira às populações e instruir as pessoas quanto a questões de consumo. Pouco ou nada disso se faz. Sofia de Mello Breyner afirmava que "nada é mais triste do que um homem acomodado". Precisamos de falar, de escrever, de dar voz às injustiças. Hoje as pessoas estão a falar caladas.
O que parece incrível é verificar que em Portugal, ao contrário do que sucede noutros países, não existem causas nacionais transversais que sejam defendidas pelos principais partidos. Não existe uma definição concreta de eixos estratégicos nacionais nos domínios da educação, justiça e saúde, aspectos que não tenham que mudar todos os anos ou de governo para governo. Falta claramente uma visão apropriada de Estado. Entretanto, se os políticos actuais não são capazes de definir eixos estratégicos e unir-se em torno de causas estruturais da nação, a melhor solução parece ser a de recusar estes e eleger outros. Trata-se de um gesto de solidariedade para com o país.

5/15/2009

Já pedi desculpa, não pedi?!

Contrariamente a muitas outras pessoas, considero que os portugueses pedem desculpa vezes de mais. Quando eu era pequeno e fazia um ruído menos correcto com a boca depois de comer, sem pedir desculpa a seguir, a minha mãe apressava-se a corrigir o meu silêncio, "Com licença!" E eu repetia "Com licença!" Devo dizer que, uns anos mais tarde, quando pensava no "Com licença!" não entendia muito bem a expressão, porque licença eu não tinha pedido a ninguém nem ninguém ma tinha dado, mas enfim... era assim.
Não estou bem certo de que esta seja uma expressão ainda em uso nos dias de hoje a não ser, por exemplo, quando chegamos a um espectáculo e precisamos de entrar para um lugar no meio da fila já parcialmente ocupada. Dizer "Com licença" neste caso é de bom-tom, mas, repito, "Com licença de quem?" Ora, "Dá licença?" não será melhor? Já quando se pisa alguém ao entrar na dita fila, o correcto será "peço desculpa!" ou "perdão!", expressões que serão quase de certeza correspondidas por um reprimido esgar de dor da vítima.
Seja como for, a verdade é que o grande princípio a respeitar é o de não ter necessidade de pedir desculpa. Num exemplo característico: quem chega atrasado, acaba por ter de pedir desculpa por não ter chegado a horas. Ora, desculpar-se com qualquer motivo não fica bem, porque possivelmente uma reunião não começou ainda por causa do retardatário. Ou um almoço de negócios. Note-se que, em várias culturas, quem pede desculpa não recebe automaticamente deferimento ao seu pedido. Em Portugal admite-se que sim. "Já pedi desculpa, não pedi?!"
Estou em crer que a nossa cultura é, neste caso, profundamente influenciada pela religião católica. Imagine-se que eu, solteiro, cometo adultério com uma amiga minha, casada. Num confessionário, admito o facto ao padre e mostro o meu arrependimento. Ele, como representante de Deus, concede-me o perdão. Se repararmos bem, a única pessoa que me poderia perdoar o acto era o marido da senhora em questão. O padre, porém, não presta grande importância a esse facto e, para ele, o meu arrependimento é suficiente. Peço desculpa, e pronto. O dito marido, que em princípio não me perdoaria, fica de fora, alheio a toda a questão e, o que é mais, a todo o perdão. A pergunta impõe-se: como é que um padre pode perdoar, seja em nome de quem for, um acto que o principal visado provavelmente não perdoaria? Mas é um facto que ele, o sacerdote, perdoa.
Daqui resulta que pedir desculpa e automatizar o perdão se tornam actos perfeitamente comuns. Alguns protestantes com quem tenho falado não entendem como é que um católico pode confessar-se ao fim-de-semana, obter o perdão e voltar a pecar de forma semelhante na semana seguinte. A mim também me custa a entender. Mas já entendo perfeitamente que este facilitismo das coisas possa conduzir a outros facilitismos, a frases ofensivas que saem dos lábios e pelas quais se pede imediatamente desculpa, a gestos perfeitamente evitáveis, a atrasos, à falta da muito propalada accountability, etc. No reino da carência de disciplina-a-sério, vale tudo.

P.S. Os pecados dos políticos também são perdoados, claro está. Não será algo muito "católico", mas...

5/11/2009

Abbé Faria


Moro em Lisboa, no Bairro dos Actores. O nome do bairro sugere que a toponímia local inclui nomes de actores que foram populares no seu tempo. Como tudo é efémero, porém, hoje será já difícil encontrar pessoas que se lembrem dos referidos actores e actrizes, até porque muitos actuaram apenas no teatro e não ficaram gravados em película de cinema. Se as suas peças foram esquecidas, os seus nomes seguiram naturalmente o mesmo rumo. A minha rua recebeu a designação de Actor Vale. Só assim. Sem nome próprio. Apenas o apelido. O resultado é que uma percentagem significativa de pessoas endereça a sua correspondência para a Rua Actor do Vale sem que a conotação geográfica tenha algum significado. Da Actriz Virgínia haverá também certamente pouca lembrança, assim como do Actor Isidoro. Joaquim de Almeida e outros enfileiram o rol dos esquecidos. No meio, algo surpreendentemente, surge nestas ruas o nome do Abade Faria. Terá o Abade sido actor?
A primeira vez que ouvi uma referência ao nome do abade foi por parte de uma amiga que, já há muitos anos, me falou de um excelente médico de clínica geral que tinha o seu consultório na rua. Confirmei a excelência do médico em questão e nunca mais esqueci o nome.
Para minha surpresa, o ano passado aquando de uma viagem à Índia, a figura do abade surgiu-me de novo, desta vez em Goa. A foto acima mostra uma estátua no meio de uma praça de Pangim. A estátua é algo parodiada na cidade devido à gestualidade do abade relativamente à mulher a seus pés. O que estará ele a fazer-lhe ou a tentar fazer? E porque se encontra a estátua ali em Goa? E por que razão, localmente, lhe chamam Abbé e não Abade?
De seu nome completo José Custódio de Faria, ele nasceu em Goa em 1746, onde fez os seus primeiros estudos. Com 25 anos veio para Lisboa, mas passados uns meses rumou a Roma, onde se formou em teologia e foi ordenado sacerdote. Por se ter envolvido numa abortada conspiração contra o regime português em Goa, refugiou-se em Paris em 1788, um ano antes da Revolução Francesa. Em 1795 foi um dos líderes dos movimentos revolucionários. Frequentava a casa do escritor Chateaubriand e o salão da Marquesa de Custine. Em 1811, foi nomeado professor de Filosofia em Marselha e Nîmes. De regresso a Paris dois anos mais tarde, desenvolveu uma doutrina inovadora sobre o hipnotismo, afirmando que o sono hipnótico dependia não do hipnotizador mas sim do hipnotizado. Como seria de esperar, foi considerado charlatão por uns tantos e acusado pelas autoridades religiosas de ter ligações com o diabo. Gradualmente, porém, a sua postura impôs-se. Conforme informações que retiro de um interessante livro que foi muito recentemente publicado – Les Portugais à Paris, da autoria de Agnès Pellerin – o general Noget conta o seguinte nos escritos que nos legou: "Em 1815, havia em Paris um indivíduo que fazia sessões públicas de hipnotismo. Reunia todos os dias no seu consultório cerca de sessenta pessoas e era raro que, entre elas, não surgissem cinco ou seis que eram susceptíveis de entrar em hipnose. O indivíduo em questão declarava abertamente que não possuía qualquer segredo ou poderes sobrenaturais: tudo o que alcançava não dependia senão da vontade das pessoas sobre as quais agia."
Em 1819, o Abade, que tinha entretanto sido nomeado capelão de um convento de religiosas, publicou um ensaio polémico e depressa se tornou uma verdadeira coqueluche em Paris. Infelizmente, faleceu nesse mesmo ano de apoplexia. Contava 73 anos. A sua figura veio a inspirar vários escritores, nomeadamente Alexandre Dumas, que fez dele um personagem-chave no seu Conde de Monte-Cristo, e Chateaubriand, que o evocou nas suas Memórias do Além-Túmulo
Em 1884, Hipólito Bernheim reconheceu que "Faria possui o mérito incontestável de ter sido o primeiro a estabelecer a doutrina do método da hipnose pela sugestão, rejeitando Mesmer e Puységur." (Faria tinha iniciado os seus estudos sobre o hipnotismo com o marquês de Puységur.) Foi a reabilitação total do "abbé".
Posto isto, deixo à consideração dos leitores a questão da justeza ou não da sua inclusão na toponímia do Bairro dos Actores.

5/10/2009

Desrumo

Como sabemos, está a aproximar-se a galope o início do período de três eleições, para o Parlamento Europeu, para as autarquias e a Assembleia da República. Talvez por ter três objectivos diferentes em vista, o Governo está a trocar os olhos aos cidadãos. No mês passado, quando saiu uma notícia relativa a multas fiscais que atingiriam 45 mil reformados, o PM garantiu que não anularia as coimas. Terá dito na altura que este não é "o momento para, por demagogia e eleitoralismo, sermos mais simpáticos". Este posicionamento foi entretanto alterado e agora já foi anunciado que as coimas em questão seriam anuladas. Como é? Será por eleitoralismo e demagogia, para utilizar as palavras do PM? Quarenta e cinco mil são muitos votos. Mas será que o PM não sabe que ordem + contra-ordem = desordem? Claro que ele, como político, sabe. Os políticos sabem tudo.
Porém, às vezes parece que não. A lei do financiamento dos partidos, mencionada neste blog a semana passada (vd. As instituições não se auto-reformam) foi aprovada por consenso na Assembleia da República pelas partes particularmente interessadas: os partidos. Tratou-se de uma típica acção corporativista do tipo "venha-a-nós". Pois bem. Em face do escândalo que entretanto se gerou, os partidos já se propõem rever tudo aquilo que ainda há pouco aprovaram. Estamos a brincar aos meninos crescidos?
A revisão do sigilo bancário proposta pelo governo, que detém maioria absoluta no Parlamento, afinal pariu uma formiga. As promessas foram às malvas. Qualquer semelhança com a lei em vigor em Espanha – país em que se mata o touro – é pura coincidência. Que orientação é esta que mais parece desorientação total? Tudo é mais pontual que estratégico. Porque é que não se tomam verdadeiras medidas para impedir o alastramento da corrupção que grassa por aí e se fica por mezinhas que só lembram o clássico siciliano "é preciso mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma"?
É um lugar-comum dizer-se que os partidos no poder governam mais para as eleições do que para as gerações. Os poucos itens acima mencionados, que são uma pequeníssima amostra do que para aí vai de promete-uma-coisa-para-ver-o-que-dá-e-arrepia-caminho-se-der-para-o-torto, são esclarecedores. E quanto a desenrascanços de obras à pressa em estradas e coisas similares de forma a permitirem que governo e autarcas apresentem obra feita, estamos conversados. Ora se neste país o grande rumo que se conhece tem como destino as eleições, é porque embarcámos sem dúvida num autêntico desrumo. Infelizmente a política continua a ser poluítica.

5/07/2009

As Pequenas Memórias

Acabo de ler um pequeno grande livro de José Saramago chamado “As Pequenas Memórias”, que (estranhamente, porque sou há muito fã de Saramago) não me recordo de ter sido lançado. Foi-o em 2006.

Trata-se, efectivamente, de um repositório das memórias de infância e de adolescência de um menino pobre, dividido entre a vida dura na capital e as férias passadas na ribatejana Azinhaga da sua infância.

Poderia parecer, à partida, uma exposição fastidiosa de factos e historietas que mais interesse teriam para memória futura da família, sem grande interesse para o público em geral; não é essa a minha modesta opinião.

Desde logo porque José Saramago está a escrever melhor do que nunca!

A cadência que dá à sua escrita é feita à medida do respirar do leitor: o seu ritmo não seria mais “anatómico” se tivesse a tal pontuação que o acusam de não usar!

É gratificante verificar que aos 86 anos tem um sentido de humor e um sarcasmo que não são cáusticos, antes adoçados pela sua mundividência.

É um prazer ver como ele encadeia ideias de forma tão intrincada, sem jamais se perder nelas nem nos fazer perder a nós, leitores.

Igualmente um prazer apreciar a sua linguagem, o seu vocabulário, misto de vernaculidade e de sabedoria popular, usando os termos regionais do seu Ribatejo natal com a mesma oportunidade com que aplica o léxico mais erudito.

Notável como, do alto da sabedoria da sua velhice, analisa o que sentiu, sofreu, gozou o menino que ele próprio foi e como se confronta com o que sentiu e pensou o então menino.

As passagens da sua vida que o autor revela terem sido inspiradoras das personagens que mais tarde fez habitar nalguns dos seus livros, são meras curiosidades a que os seus leitores fiéis, como eu, por certo acharão alguma graça.

5/05/2009

As instituições não se auto-reformam

Creio que foi pouco antes do 25 de Abril de 1974 que Miller Guerra, distinto professor da Faculdade de Medicina de Lisboa e membro da chamada Ala Liberal do Parlamento português, afirmou, com a sua habitual simplicidade e clareza, que "a universidade não se auto-reforma". Quem possui alguma experiência das nossas instituições reconhece que sempre que elas são alvo de reformas substanciais, essas mesmas reformas provêm de um agente externo e não de uma mão forte existente dentro delas.
As instituições não se auto-reformam por vários motivos, entre os quais está a pesada estrutura do Estado, alguma falta de autonomia mas, acima de tudo, porque as grandes alterações poderiam fazer mudar os seus próprios directores, que dirigem o processo e, com eles, os seus principais apoiantes. O princípio da segurança prevalece sobre o da produtividade, embora muitas vezes se intua que a produtividade poderia crescer substancialmente com a mudança. O não-mexer nas águas ou modificações apenas superficiais – "tem que se mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma" – recebe a concordância tácita dos que trabalham nas instituições. Daí que, também, a entrada de elementos novos, estranhos, seja vista com desconfiança. De todo este conjunto de factores resulta a atitude conhecida por in-breeding, ou endogamia, que consiste no convite a pessoas "da cor" por parte dos órgãos dirigentes das instituições. Serão elementos que, em princípio, não vêm para causar problemas e que até agradecem a oportunidade de emprego e segurança.
Isto vem a propósito da já referida necessidade de elementos externos para choques que, a certa altura, se tornam inevitáveis. A presente crise financeira global deu já, internacionalmente, azo a mudanças substanciais, como a semi-abertura do sigilo bancário suíço, um bastião que, assim, vai finalmente sofrendo alguma alteração. Em Portugal, uma maior abertura do mesmo sigilo bancário tem sido sucessivamente adiada. Num país de grandes desigualdades sociais em termos de riqueza, entende-se porquê. Espera-se agora que, com a pressão internacional e a existência de escândalos de falta de controlo governamental, como os do BPN e do BCP, o posicionamento relativo ao sigilo bancário se inverta e se torne, finalmente, mais transparente.
Porque, se as instituições puderem continuar a falar apenas consigo próprias, como é o caso da Assembleia da República, não há muito a esperar. A auto-reforma não só não surgirá nunca, como também decisões semelhantes à recentemente tomada – à pressa mas consensualmente - pelo parlamento português relativamente a uma nova lei do financiamento dos partidos agravarão o panorama e levarão a um acréscimo do corporativismo – um dos grandes cancros da democracia – que tenderá a alastrar gravosamente por outras instituições, a bem dos próprios e para mal do país e da transparência do sistema democrático.

5/04/2009

Será?

A história passa-se em ambiente laboral e foi-me contada há dias.

Alguém dizia a um seu subordinado que o saber técnico que este havia acumulado ao longo de anos ao serviço da empresa, esse saber não era seu: era propriedade da empresa, pelo que o trabalhador era estritamente obrigado a reparti-lo com os outros e passá-lo aos colegas mais novos.

Este curto episódio deu-me que pensar. Deixou-me cheia de perplexidade.

Não há dúvida de que o património intelectual de uma empresa é o “know-how” adquirido pelos seus trabalhadores. Não será só isso, mas também é isso. É desejável e natural que haja da parte do empregado uma disponibilidade para colocar esse conhecimento técnico-científico ao serviço da empresa, como é salutar e desejável que goste de o passar aos colegas mais novos. Até aqui, nada a opor.
Mas…poder-se-á falar de obrigação de dádiva? Onde acabam os direitos da empresa e começa a liberdade individual? O direito de propriedade de cada um sobre a sua própria mente, a liberdade de opção entre o manter determinado conhecimento só seu, ou partilhá-lo? O direito de exclusividade do raciocínio sobre determinado assunto? A privacidade da elaboração mental?

Quando comecei a trabalhar fui generosamente acompanhada por pessoas já experientes; trinta anos depois, ainda me sinto grata por isso. Daí que tenha um especial carinho pelos colegas mais novos que me entram pelo gabinete em busca da minha opinião. Não obstante, levantam-se-me muitas dúvidas sobre a legitimidade do que me foi contado, e sobretudo muitas inquietações.

Onde fica a fronteira da ética neste assunto?

5/02/2009

A agressão fundamentalista

O nosso 1º de Maio costuma ser bastante pacífico, embora conte com inflamadas palavras de ordem. Este ano, devido à enorme onda de desemprego que aflige o país, havia razão para que os protestos no Dia do Trabalhador atingissem um nível mais elevado.
Ocorreu apenas um incidente com o deputado cabeça-de-lista pelo PS às próximas eleições para o Parlamento Europeu. O incidente em si não terá tido grandes consequências, mas creio que dá azo a uma breve reflexão.
É bem sabido que Vital Moreira foi um militante do Partido Comunista Português. À semelhança de outros membros do PCP, a dada altura ingressou no Partido Socialista. Os insultos – nomeadamente o apodo de "traidor" - que ele recebeu neste 1º de Maio da parte de alguns apoiantes do PCP mostram bem o que é o fundamentalismo de que tanto se fala.
O fundamentalista baseia-se no conceito de uma verdade inabalável que só uns tantos como ele, pretensamente iluminados, possuem. Nos meus tempos de liceu, brincávamos com a ideia dizendo "Quem não está connosco, está contra nosco!" De facto, parece que, maniqueisticamente, só existem dois campos: o nosso e o do inimigo, como se de Deus e do Diabo se tratasse. Os mesmos que vitoriam ou exigem a existência de liberdade cerceiam totalmente a uma pessoa do seu grupo a liberdade de escolher uma outra via. É um estranho conceito de liberdade. Ora, mudar de ideias ou de opinião é não só um acto perfeitamente normal como geralmente sintomático de uma sempre desejável evolução. Ressalvo a mudança por puro oportunismo, a qual é altamente criticável, como não poderia deixar de ser. Esses são os vira-casacas.
É o conhecimento de novas realidades ou a percepção de um facto até então ignorado que leva todos os dias muitas pessoas a adoptarem um novo posicionamento mental. Em face do que vieram a constatar na política da Administração Bush, muitos dos tradicionais apoiantes dos republicanos nos Estados Unidos votaram de forma diferente nas últimas eleições, colocando o democrata Obama no poder. Não foram vira-casacas. Aqui o que esteve em questão foi o reconhecimento de factos objectivos.
Ora, o fundamentalista não admite essa viragem. Para ele, quem está com um partido tem de se manter fiel e incondicional até à morte. Daí que tantos comunistas ocidentais tenham fechado os olhos a factos gravíssimos ocorridos nos países da antiga Cortina de Ferro. Ou da China. Ou que republicanos dos EUA continuem a considerar que Bush foi um bom presidente. Ou...
A tomada de conhecimento de factos graves que desconhecíamos poderá, logicamente, ser condição necessária e suficiente para uma brusca mudança de opinião. Se uma mulher que adora o seu marido, com o qual está casada há quinze anos, vier a saber que ele a tem atraiçoado nos últimos três anos, não é natural que passe a vê-lo com olhos completamente diferentes? Não será lógico que encare a possibilidade de se separar dele e dar outro rumo à sua vida? É esse o princípio da liberdade.
Quando Humberto Delgado, que chegou a ser o principal chefe militar da Legião Portuguesa, descobriu nos Estados Unidos outra realidade bem mais agradável do que a do seu país, será que não deveria ter tido a liberdade de negar o seu apoio a Oliveira Salazar? Idem Freitas do Amaral relativamente ao CDS, quando regressou da sua missão de Presidente da Assembleia-Geral das Nações Unidas. "Evoluiu", dirão os mais objectivos. "Traiu", dirão os fundamentalistas. Quando o escritor Jorge de Sena, como tantos outros intelectuais que viveram no regime salazarista, tentou voltar a trabalhar em Portugal e só encontrou dificuldades, não é natural que tenha afirmado aquilo que disse ("A questão não é salvar Portugal, mas sim salvarmo-nos de Portugal.")?
É a não-admissão de evoluções que, afinal, são tão naturais como a sucessão das estações do ano, que torna os fundamentalistas inapelavelmente intolerantes. E cassetes falantes! É, no fundo, a mesma paixão cega que leva a que um jogador do Benfica que se transfira para o F.C. Porto seja vaiado quando toca na bola, sempre que vem jogar no seu antigo estádio. Será que o jogador não era livre de escolher o Porto, como anteriormente foi livre de escolher o Benfica? Quem não concede aos outros a liberdade de opção tem sempre dentro de si a mente de um ditadorzinho. Maior ou menor. A liberdade de que gozamos é um bem extraordinário. Não o reconhecer é um sinal de enorme mediocridade.