Quando passo na A5 junto ao Estádio Nacional ocorrem-me por vezes os tempos em que pratiquei atletismo naquela zona, geralmente nas tardes de 4ª feira e nas manhãs de sábado. Eu tinha na altura 15 ou 16 anos. O atletismo era não só uma prática desportiva que me agradava, como também representava uma forma gratificante e pragmática de escapar à bafienta Mocidade Portuguesa, que de outra forma me obrigaria a sessões de ordem unida e de prelecções, algo que se assemelhava dolorosamente a um pré-serviço militar. Ora, fazer atletismo nos campos de treino do Estádio e nas áreas circundantes junto ao rio Jamor era óptimo. O local tinha imensa vegetação, sabia bem correr ao ar livre e ginasticar o corpo, os treinadores eram competentes e excelente o convívio com os amigos e colegas. No Inverno e na Primavera, fortes bátegas de água não eram raras, mas também isso servia para enrijar o corpo.
Um dos mais frequentes percalços dos atletas são as distensões musculares. O esforço de um salto, de um arranque súbito ou de um sprint mais longo quando os músculos ainda não estão suficientemente quentes pode causar uma forte dor, geralmente na barriga da perna, e… já está! A partir daí não se consegue correr. O "estaleiro" aguarda-nos durante um mínimo de três semanas. Precisamente para evitar que isso ocorresse, os nossos treinadores levavam-nos para uns terrenos pantanosos ou pelo menos muito encharcados, nas proximidades do rio Jamor e na baixa de Linda-a-Velha. As sapatilhas com que corríamos ficavam literalmente cobertas de barro, mas a sensação geral era boa. Tínhamos que correr no meio da água e do lodo. Não víamos o fundo, mas sentíamo-lo perfeitamente quando nos enterrávamos até ao joelho. Esse enterranço, naturalmente primeiro com uma perna, fazia com que nos víssemos obrigados a fazer bastante força para sair dali... apenas para enterrar a outra perna da mesma forma. Mais esforço, mais afundamento de uma das pernas, mais levantamento, etc. faziam com que os nossos músculos se tornassem muito mais imunes às distensões musculares. Aliás, durante o tempo em que lá estive nunca sofri nenhuma. Muito mais tarde, sim.
E qual é a imagem que presentemente me evoca esta cena do passado de correr para a frente e para trás nas águas pantanosas? Sem dúvida que é o atolar em dívida do nosso Estado e Governo para honrar os compromissos tomados com a Nação e o seu esforço para sair do atoleiro, o qual leva a novo enterranço da dívida, o qual, infelizmente, não tem a consolação de servir de prevenção para problemas que poderão ocorrer no futuro. A subida dos juros da dívida é um problema enorme para Portugal, como para qualquer outro país, mas não se pode dizer que foi uma questão de puro azar. Já andamos a caminhar neste tipo de águas lodosas há muito tempo, embora geralmente fora do alcance das câmaras fotográficas oficiais que dão conta das acções governamentais.
É interessante, neste aspecto, compararmos o que foi feito entre nós com o comportamento governamental de um outro país europeu, a Noruega. A Noruega possui petróleo. Ora, poderia ter considerado isso uma benesse dos céus e dos mares, tipo jogo de roleta de Casino que nos corre bem. Assim, poderia ter usado esse dinheiro para baixar impostos, construir auto-estradas e coisas do género. Não fez nada disso. Continuou praticamente como se essa riqueza não existisse, limitando-se a assegurar a manutenção do bom nível de vida e a assistência social dos cidadãos noruegueses e a precaver-se contra eventuais problemas económicos e financeiros a que qualquer país está sujeito neste mundo globalizado. O fundo soberano que a Nortuega constituiu é notável e um garante de sustentabilidade do país. Na presente crise, a Noruega não entrou em recessão.
Em Portugal, não existe petróleo, como sabemos. Mas mesmo sem ele, preferiu-se outra via. Somos aquilo a que alguém chamou "um país de pobres com mentalidade de ricos". Sendo que os verdadeiros ricos, como Eduardo Lourenço um dia escreveu, se habituaram de há muito, na senda dos nobres senhores feudais, a não trabalhar. Após a Idade Média, com o advento dos Descobrimentos, descobriu-se a fórmula mágica para que tudo continuasse igual: a colonização. Não trabalhavam os ricos, trabalhavam os pretos. Durante séculos foi o que se fez. Agora que esses pretos colonizados acabaram, continua a colonizar-se o povo: aqui nascido ou vindo de outras partes. E tentou-se colonizar a União Europeia, chupando fundos e mais fundos, trocando barcos de pesca e plantações agrícolas por dinheiro. Só que negociar com brancos não é o mesmo que negociar com povos colonizados.
Presentemente, com Portugal a pagar juros altíssimos quando tem de pedir dinheiro emprestado – se compararmos os nossos os juros com aqueles que os alemães, por exemplo, terão de pagar por empréstimos similares -, esta corrida por terrenos pantanosos não augura nada de bom. E o governo, diga-se em abono da verdade, não se portou como devia. Escondeu esta realidade durante tempo de mais. Terá eventualmente sido um problema de democracia mais afirmada do que praticada, de gestão deficiente dos dinheiros públicos, ou de promessas feitas que ficaram demasiado longe da sua efectiva concretização. O facto, indesmentível, é que águas lodosas nunca foram transparentes.
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