5/17/2010

O outro lado da estrada


Há por vezes imagens que nos ficam na memória. Durante os tempos que passei em Angola, já há muitos anos, recordo-me da ocasião em que, numa recta que parecia não ter fim, uns dez corpulentos antílopes (localmente chamavam-lhes "cefos" ou "gungas") foram acompanhando o jipe em que eu seguia ao longo da picada. Os bichos procuravam desesperadamente uma curva algures que lhes permitisse saltar para o outro lado da estrada. Decidiram a certa altura saltar um pouco antes da curva, pelo que tivemos que parar o nosso jipe. Uma vez do lado de lá, o seu passo abrandou radicalmente. Pareceu-nos que o outro lado da estrada era para aqueles animais simultaneamente a salvação, a paz e o sossego do seu mundo selvagem que nós, intrusos, vínhamos perturbar.
Muito mais tarde vim a ligar esse "outro lado de paz e sossego" ao conceito de reforma das muitas pessoas que ouvia, na escola onde eu trabalhava, clamarem "Já só faltam mais dois anos!" ou "Logo que puder, reformo-me! Vou deixar esta vida, que já satura.", ou "Mais seis mesitos e já está!" Funcionários e professores davam assim expressão ao cansaço que sentiam, à fadiga mental que a rotina e a idade lhes causavam. Hoje em dia constato que esta corrida à reforma se mantém e é até mais acentuada, nomeadamente na função pública. Leio que desde Janeiro já deram entrada mais de 18 mil pedidos dos 22 mil que o Governo espera(va) para todo o ano de 2010. As pessoas querem saltar para o outro lado da estrada. A pergunta que coloco é simples: haverá razão para sentirem que vão ter a calma e a paz que os antílopes de Angola aparentavam?
Tendo posto a questão a várias pessoas, encontrei respostas díspares, mas algo que notei foi a frequente existência da noção de que a pensão de reforma que iriam receber provinha dos descontos que tinham mensalmente feito ao longo de anos e anos. Ora, embora essas pessoas estivessem correctas ao estabelecerem uma correlação entre aquilo que descontaram e o que iriam receber, denotavam um evidente mal-entendido: o de que o dinheiro dos seus descontos tinha servido para abrir uma espécie de conta bancária inviolável, gerida pelo Estado. Não é, obviamente, isto que se passa. Se assim fosse, quando os juros do capital subissem, a pensão aumentava, da mesma maneira que ela diminuiria quando os juros baixassem. Na realidade, são os actuais trabalhadores que estão no activo que pagam as pensões dos que já se reformaram. Depois, aqueles trabalhadores esperam que quando chegar a sua vez, haja outros "colegas" a pagarem para si. Assim vistas as coisas, se não houver trabalhadores suficientes para descontarem os montantes que foram previamente determinados pelo Estado para os pensionistas, estes deixarão de poder receber os seus cheques habituais ou recebê-los-ão com uma fatia a menos.
O processo de os-que-vêm-atrás-pagam-para-nós não é, afinal, muito diferente do utilizado por Madoff ou pela D. Branca. Se a não-entrega de dinheiro para depósito por parte dos investidores conduziu a D. Branca e Madoff à falência, este processo com o Estado, apesar de absolutamente legal, não é sem risco. Porquê? Presentemente, porque existem três factores coligados: 1. Baixa taxa de natalidade em Portugal (o número actual de filhos por mulher ronda 1,4; em 1960 era de 3,2!) 2. Elevadíssima taxa de desemprego, o que implica uma forte diminuição dos contributos expectáveis para os cofres da Segurança Social. 3. A Segurança Social deixa não só de contar com as contribuições dos trabalhadores desempregados como tem, dentro do justo e previsto na lei, de lhes pagar os respectivos subsídios pela sua condição de desempregados.
Com esta situação explosiva, que possivelmente ainda é tão ou mais explosiva em Espanha e decerto na Grécia, não é impossível que mais tarde ou mais cedo se crie um mal-estar social que poderá descambar em revolta, primeiro dos cidadãos contra os governos que malbarataram a gestão da coisa pública e, depois, entre os trabalhadores que, vendo as suas expectativas de reforma muito diminuídas relativamente às pensões recebidas por cidadãos entretanto já aposentados, se virarão contra estes. A situação tem toda a lógica.
Para alguém que já esteja reformado e que, a título de exemplo, aufira uma pensão de 1500 euros – sensivelmente de acordo com o ordenado que auferia enquanto trabalhava – será interessante calcular quanto é que deveria ter presentemente na sua suposta conta bancária para poder auferir, em juros, 1500 euros líquidos mensais 14 vezes no ano. Aplique-se a actual taxa de depósitos a prazo dos bancos ou a taxa dos certificados de aforro. Depois, cada um pergunte a si mesmo se descontou tanto dinheiro ao longo da sua vida.
A juntar a isto, note que cada pensionista tem ainda direito a recorrer praticamente grátis a consultas estatais de saúde e a receber uma comparticipação significativa nos medicamentos que eventualmente precisará de mandar aviar.
Postas as coisas assim preto-no-branco, haverá boas razões para se pensar que do outro lado da estrada se vai encontrar a segurança e a paz que tanto se deseja e que, de facto, tem sido prometida?

P. S. Nem sempre me agrada ser tão claro e soar como um impertinente pessimista – que continuo a não achar que seja -, mas é bom que se chamem as coisas pelos nomes. Creio – e está muito longe de ser esta a primeira vez que o faço – que o país está a viver acima das suas posses e, apesar disso, não se dando conta do facto, se mantém a lastimar a sua sorte. Calimericamente. Inconscientemente. Há remédio? Certamente! Mais trabalho, mais poupança e maior consciência da realidade. Para todos.

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