5/27/2010

Emigração/Migração

Mote: (Do comentário de AJMS a um texto deste blogue): O dono de um restaurante exótico, imigrante pleno de iniciativa, dizia-me que Portugal proporciona poucas oportunidades de investimento, não cria perspectivas, tem uma população escassa, que definha e desaproveita capacidades! Como solução, aconselhava um programa de imigração a sério. Achei a ideia óptima e lembrei-me logo dos níveis de crescimento que outros países, noutras épocas, conseguiram à custa de intensos e bem planeados programas de imigração, dinamizando a economia e a comunidade em geral.

Glosa (ma non troppo): Há cerca de 40 anos, uma funcionária da instituição de ensino onde eu então trabalhava, pediu-me ajuda. O marido e ela estavam a pensar em emigrar para a Austrália. A ajuda que me era pedida consistia na tradução dos requisitos necessários para a emigração e também, em certa medida, algum aconselhamento. Falámos mais do que uma vez sobre o assunto, conheci o marido dela, que era serralheiro mecânico e me pareceu um bom profissional. Ajudei com uma carta de recomendação pessoal, outra do director da escola e, como não poderia deixar de ser, no preenchimento do formulário em inglês. Ao ler as várias alíneas deste último, constatei que existia toda uma série de especificações. Estas especificações só podiam resultar de um plano bem elaborado pelas autoridades australianas. O plano era real – e realista. A especialidade de serralharia do indivíduo português era uma das carências que o país tinha. O casal, com a sua filha ainda pequena, foi aceite. Quando chegaram à Austrália, foram encaminhados para uma determinada povoação. A miúda foi integrada no ensino básico, o homem arranjou trabalho, a mulher ficou mais a zelar pela casa. Cerca de dez anos depois, vieram a Portugal e visitaram a instituição onde eu continuava a trabalhar. Contaram-me maravilhas do seu novo país. Gostavam da sua vida, sentiam-se felizes e, o que é mais, tinham a sensação concreta de que em Portugal nunca poderiam ter atingido o nível de vida de que lá desfrutavam.
Sei de várias histórias semelhantes relativas ao Canadá, onde conheço um número razoável de indivíduos portugueses.
Chegado aqui, o leitor dir-se-á: "mas o que estamos a tratar é de emigração e não de imigração." Pois, é tudo uma questão de prefixos: ex-, para sair, em "emigração" e in-, para entrar, em "imigração". Emigra-se para um país, mas do ponto de vista desse país é-se imigrante.
Nos Estados Unidos a situação é bastante semelhante à mencionada acima. Para obter um documento I-20 (suponho que ainda se mantém) que autoriza a imigração, é necessário responder a uma boa série de perguntas e preencher formulários específicos. E isto não é burocracia por amor da burocracia: é planeamento puro e duro.
Note-se que até aqui falei de três países de língua inglesa, que possuem na sua génese um background cultural semelhante. São países que gostam de regras, embora sejam democráticos na sua atitude. São nações que possuem uma estratégia de Estado, a qual mantêm e prosseguem, com ligeiras alterações consoante os tempos e um tanto independentemente dos governos. O que esses países procuram é qualidade que ajude o país a melhorar. Pense-se nisto: mais de 50 por cento dos doutoramentos que se realizam nos Estados Unidos são de estudantes ou profissionais não-americanos. Vêm de todo o mundo, desde a Arábia Saudita à China, de Portugal à Alemanha e Nigéria. Muitos dos doutorados (PhDs) acabam por ficar nos EUA e constituem uma óbvia mais-valia. Deram provas do seu valor intelectual, estão integrados. O Estado americano só os conheceu já adultos, pelo que não teve que custear a sua educação básica e secundária, nem o primeiro degrau do ensino superior. Os EUA não despenderam quaisquer subsídios com eles. Quando os acolheu, recebeu-os prontos a produzir. Isso é como ter logo desde o primeiro ano pereiras a dar peras e sobreiros a dar cortiça. É só ganho. Líquido.
Pensemos nalguns nomes de famosos emigrantes/imigrantes nos Estados Unidos (entre parênteses os respectivos países de origem): Amarthya Sen (Índia), Billy Wilder (Áustria), Bertolt Brecht (Alemanha), Einstein (Alemanha), Fareed Zakaria (Índia), Hayek (Áustria), Alfred Hitchcock (Inglaterra), Aldous Huxley (Inglaterra), António Damásio (Portugal), John Woo (China), Ernst Lubitsch (Alemanha), Anthony Quinn (México), Zsa Zsa Gabor (Hungria), Otto Preminger (Áustria), Roman Polanski (França), Sean Connery (Escócia), Schumpeter (Checoeslováquia), V. S. Naipaul (Caraíbas), Werner von Braun (Alemanha).
A imigração de cada um destes indivíduos representou uma mais-valia para os Estados Unidos. Em contrapartida, a imigração de um indivíduo que é transportado, juntamente com outros, numa carrinha conduzida por um mafioso que ganha com o seu negócio de vidas humanas, pode ser uma mais qualquer coisa, mas com pouca valia. Num caso, estamos a falar de qualidade, no outro de quantidade.
Pessoalmente, considero que o primeiro sistema é melhor, mas não digo que o segundo não tenha também as suas vantagens. Um exemplo sempre interessante diz respeito à diferente colonização que foi feita em territórios da América Latina e da América do Norte. Tomemos o exemplo do contraste num detalhe que é so aparentemente menor entre (1) os portugueses e o Brasil e (2) os ingleses e o actual território dos Estados Unidos. Para além das condições de trabalho para os escravos negros, existiram normas respeitantes a música na América do Norte. Já no Brasil essas normas foram inexistentes. Enquanto que o jeito puritano dos americanos autorizou os negros a tocarem música desde que usassem instrumentos “brancos” (saxofone, piano, trompete, etc.), os escravos do Brasil tinham carta branca para usar os instrumentos que quisessem (tambores, reco-reco & Cª). Daqui resultou a significativa diferença entre o jazz americano e a música brasileira.
Ora, existe algo de semelhante entre este exemplo e as práticas de imigração. Em Portugal, tanto quanto sei, aquilo que basicamente se discute é qual o número-limite de imigrantes por ano. Não se fala em seccionamento por qualidade. E isto porque não é verdadeiramente o Estado que planeia. As pessoas entram e vão-se desenvencilhando como podem. Com esta atitude, por vezes alguns imigrantes acabam por ser mais perniciosos do que úteis, na medida em que os ilegais não só prejudicam o emprego dos nacionais como não representam grande valor acrescentado para o Estado. Milhares de imigrantes em Portugal que não estão legalizados não pagam impostos porque os patrões não querem pagar a sua parte à Segurança Social. Esses patrões refugiam-se no facto de os seus trabalhadores estarem ilegais. Por seu lado, os imigrantes muitas vezes não se queixam para não perderem o seu emprego e ficarem, depois, "marcados" e com dificuldade de arranjar um outro local onde possam trabalhar.
Perguntar-se-á: e a fiscalização? Os fiscais do trabalho queixam-se de que o seu departamento tem poucos elementos e de que não têm mãos a medir. Para piorar as coisas, vários deles ficam desmotivados quando levantam autos e depois constatam que esses autos não receberam o seguimento devido com uma multa forte ao empregador. Não é muito de estranhar que haja alguns agentes que prefiram receber algum dinheiro por fora vindo do empresário - e fechar os olhos. Ora, isto não sucede nem no Canadá nem na Austrália, nem nos Estados Unidos. Existe uma disciplina mais rigorosa – tanto na admissão como eventualmente na punição.
O Estado português é grande, mas está longe de ser organizado e, principalmente, de ser disciplinado, justo e pouco corrupto. Já nos longínquos tempos da Índia, muitos dos particulares faziam os seus próprios negócios à sombra do Estado. A justiça ou não veio ou foi tardia. O parágrafo da carta que o infante D. Pedro escreveu a seu irmão e rei, D. Duarte, na primeira metade do século XV, é bem elucidativo: "A Justiça, senhor, que é outra grande virtude, me parece que não reina no coração daqueles que têm o encargo de julgarem a vossa terra. Parece-me, senhor, que a Justiça tem duas partes, uma de dar a cada um o que é seu, e a outra dar-lho sem delonga. Aqueles que tarde vencem, ficam vencidos."
O assunto teria muitíssimo mais para dizer, mas a costumeira extensão de um texto no blogue já foi excedida. Fico-me por aqui, acreditando ter tocado nalguns pontos que me parecem essenciais.

5/24/2010

Águas pantanosas

Quando passo na A5 junto ao Estádio Nacional ocorrem-me por vezes os tempos em que pratiquei atletismo naquela zona, geralmente nas tardes de 4ª feira e nas manhãs de sábado. Eu tinha na altura 15 ou 16 anos. O atletismo era não só uma prática desportiva que me agradava, como também representava uma forma gratificante e pragmática de escapar à bafienta Mocidade Portuguesa, que de outra forma me obrigaria a sessões de ordem unida e de prelecções, algo que se assemelhava dolorosamente a um pré-serviço militar. Ora, fazer atletismo nos campos de treino do Estádio e nas áreas circundantes junto ao rio Jamor era óptimo. O local tinha imensa vegetação, sabia bem correr ao ar livre e ginasticar o corpo, os treinadores eram competentes e excelente o convívio com os amigos e colegas. No Inverno e na Primavera, fortes bátegas de água não eram raras, mas também isso servia para enrijar o corpo.
Um dos mais frequentes percalços dos atletas são as distensões musculares. O esforço de um salto, de um arranque súbito ou de um sprint mais longo quando os músculos ainda não estão suficientemente quentes pode causar uma forte dor, geralmente na barriga da perna, e… já está! A partir daí não se consegue correr. O "estaleiro" aguarda-nos durante um mínimo de três semanas. Precisamente para evitar que isso ocorresse, os nossos treinadores levavam-nos para uns terrenos pantanosos ou pelo menos muito encharcados, nas proximidades do rio Jamor e na baixa de Linda-a-Velha. As sapatilhas com que corríamos ficavam literalmente cobertas de barro, mas a sensação geral era boa. Tínhamos que correr no meio da água e do lodo. Não víamos o fundo, mas sentíamo-lo perfeitamente quando nos enterrávamos até ao joelho. Esse enterranço, naturalmente primeiro com uma perna, fazia com que nos víssemos obrigados a fazer bastante força para sair dali... apenas para enterrar a outra perna da mesma forma. Mais esforço, mais afundamento de uma das pernas, mais levantamento, etc. faziam com que os nossos músculos se tornassem muito mais imunes às distensões musculares. Aliás, durante o tempo em que lá estive nunca sofri nenhuma. Muito mais tarde, sim.
E qual é a imagem que presentemente me evoca esta cena do passado de correr para a frente e para trás nas águas pantanosas? Sem dúvida que é o atolar em dívida do nosso Estado e Governo para honrar os compromissos tomados com a Nação e o seu esforço para sair do atoleiro, o qual leva a novo enterranço da dívida, o qual, infelizmente, não tem a consolação de servir de prevenção para problemas que poderão ocorrer no futuro. A subida dos juros da dívida é um problema enorme para Portugal, como para qualquer outro país, mas não se pode dizer que foi uma questão de puro azar. Já andamos a caminhar neste tipo de águas lodosas há muito tempo, embora geralmente fora do alcance das câmaras fotográficas oficiais que dão conta das acções governamentais.
É interessante, neste aspecto, compararmos o que foi feito entre nós com o comportamento governamental de um outro país europeu, a Noruega. A Noruega possui petróleo. Ora, poderia ter considerado isso uma benesse dos céus e dos mares, tipo jogo de roleta de Casino que nos corre bem. Assim, poderia ter usado esse dinheiro para baixar impostos, construir auto-estradas e coisas do género. Não fez nada disso. Continuou praticamente como se essa riqueza não existisse, limitando-se a assegurar a manutenção do bom nível de vida e a assistência social dos cidadãos noruegueses e a precaver-se contra eventuais problemas económicos e financeiros a que qualquer país está sujeito neste mundo globalizado. O fundo soberano que a Nortuega constituiu é notável e um garante de sustentabilidade do país. Na presente crise, a Noruega não entrou em recessão.
Em Portugal, não existe petróleo, como sabemos. Mas mesmo sem ele, preferiu-se outra via. Somos aquilo a que alguém chamou "um país de pobres com mentalidade de ricos". Sendo que os verdadeiros ricos, como Eduardo Lourenço um dia escreveu, se habituaram de há muito, na senda dos nobres senhores feudais, a não trabalhar. Após a Idade Média, com o advento dos Descobrimentos, descobriu-se a fórmula mágica para que tudo continuasse igual: a colonização. Não trabalhavam os ricos, trabalhavam os pretos. Durante séculos foi o que se fez. Agora que esses pretos colonizados acabaram, continua a colonizar-se o povo: aqui nascido ou vindo de outras partes. E tentou-se colonizar a União Europeia, chupando fundos e mais fundos, trocando barcos de pesca e plantações agrícolas por dinheiro. Só que negociar com brancos não é o mesmo que negociar com povos colonizados.
Presentemente, com Portugal a pagar juros altíssimos quando tem de pedir dinheiro emprestado – se compararmos os nossos os juros com aqueles que os alemães, por exemplo, terão de pagar por empréstimos similares -, esta corrida por terrenos pantanosos não augura nada de bom. E o governo, diga-se em abono da verdade, não se portou como devia. Escondeu esta realidade durante tempo de mais. Terá eventualmente sido um problema de democracia mais afirmada do que praticada, de gestão deficiente dos dinheiros públicos, ou de promessas feitas que ficaram demasiado longe da sua efectiva concretização. O facto, indesmentível, é que águas lodosas nunca foram transparentes.

5/22/2010

Ave, Obama! Europa te salutat!


Não respondo muito pelo meu barbaríssimo latim, mas todos entenderão o que quero dizer. Fui, como a esmagadora maioria dos portugueses, um inquestionável apoiante de Obama antes da sua eleição. Posteriormente, tive dúvidas, que manifestei, aquando do Prémio Nobel que lhe foi atribuído ainda sem grandes realizações conseguidas. Saúdo-o agora, e toda a Administração americana, por ter finalmente dado o passo em frente que era necessário em termos de finanças especulativas.
Entre outros posts, o azweblog questionou-se o ano passado em 7 de Fevereiro e em 27 de Julho sobre a regulação a impor aos poderosíssimos hedge funds, que continuam a varrer as bolsas de valores em praticamente todo o mundo. A grande notícia de ontem é que, finalmente, os hedge funds vão passar a ter algum controlo. A despeito de uma tremenda contra-campanha promovida por lobbies financiados por especuladores que nisso têm interesse directo ou indirecto, Obama conseguiu fazer passar no Senado uma série de medidas que, segundo os analistas, só é comparável às mudanças do New Deal, de FD Roosevelt.As medidas tomadas dizem apenas respeito aos Estados Unidos, mas espera-se que venham a contaminar positivamente a Europa. Nesta, o conservador David Cameron, recém-eleito primeiro-ministro do Reino Unido, é um natural defensor dos hedge funds, que têm 80 por cento do seu movimento na bolsa londrina.
As agências de rating, que tão mal se portaram antes do deflagrar da crise que se iniciou em 2008 e que está possivelmente ainda longe do seu fim, passam a ter um intermediário entre si e quem elas avaliam. Mais: os clientes passam a poder processar as agências.
Os derivados, que circulavam na sombra ou mesmo na escuridão e que tiveram igualmente papel preponderante na formação e desencadear da crise, passam a ter vigilância e regulação próprias. Por sua vez, os bancos deixam de poder investir directamente nos derivados e, significativamente, passam a não poder usar o dinheiro dos depósitos para aplicar em negócios como os dos hedge funds.
Na Europa, houve há poucos dias uma medida tomada isoladamente pela Alemanha que é igualmente de louvar: foi proibido o short selling (vendas a descoberto de títulos de dívida).
Ainda fica muita coisa de fora, nomeadamente a existência dos centros offshore que tanto prejudicam os Estados sob o ponto de vista fiscal, mas este novo passo dado é muito importante. Vai trazer alguma acalmia às bolsas financeiras, conquanto os Credit Default Swaps (CDS) continuem a deixar em aberto a possibilidade de se especular contra uma entidade ou um país.

5/17/2010

O outro lado da estrada


Há por vezes imagens que nos ficam na memória. Durante os tempos que passei em Angola, já há muitos anos, recordo-me da ocasião em que, numa recta que parecia não ter fim, uns dez corpulentos antílopes (localmente chamavam-lhes "cefos" ou "gungas") foram acompanhando o jipe em que eu seguia ao longo da picada. Os bichos procuravam desesperadamente uma curva algures que lhes permitisse saltar para o outro lado da estrada. Decidiram a certa altura saltar um pouco antes da curva, pelo que tivemos que parar o nosso jipe. Uma vez do lado de lá, o seu passo abrandou radicalmente. Pareceu-nos que o outro lado da estrada era para aqueles animais simultaneamente a salvação, a paz e o sossego do seu mundo selvagem que nós, intrusos, vínhamos perturbar.
Muito mais tarde vim a ligar esse "outro lado de paz e sossego" ao conceito de reforma das muitas pessoas que ouvia, na escola onde eu trabalhava, clamarem "Já só faltam mais dois anos!" ou "Logo que puder, reformo-me! Vou deixar esta vida, que já satura.", ou "Mais seis mesitos e já está!" Funcionários e professores davam assim expressão ao cansaço que sentiam, à fadiga mental que a rotina e a idade lhes causavam. Hoje em dia constato que esta corrida à reforma se mantém e é até mais acentuada, nomeadamente na função pública. Leio que desde Janeiro já deram entrada mais de 18 mil pedidos dos 22 mil que o Governo espera(va) para todo o ano de 2010. As pessoas querem saltar para o outro lado da estrada. A pergunta que coloco é simples: haverá razão para sentirem que vão ter a calma e a paz que os antílopes de Angola aparentavam?
Tendo posto a questão a várias pessoas, encontrei respostas díspares, mas algo que notei foi a frequente existência da noção de que a pensão de reforma que iriam receber provinha dos descontos que tinham mensalmente feito ao longo de anos e anos. Ora, embora essas pessoas estivessem correctas ao estabelecerem uma correlação entre aquilo que descontaram e o que iriam receber, denotavam um evidente mal-entendido: o de que o dinheiro dos seus descontos tinha servido para abrir uma espécie de conta bancária inviolável, gerida pelo Estado. Não é, obviamente, isto que se passa. Se assim fosse, quando os juros do capital subissem, a pensão aumentava, da mesma maneira que ela diminuiria quando os juros baixassem. Na realidade, são os actuais trabalhadores que estão no activo que pagam as pensões dos que já se reformaram. Depois, aqueles trabalhadores esperam que quando chegar a sua vez, haja outros "colegas" a pagarem para si. Assim vistas as coisas, se não houver trabalhadores suficientes para descontarem os montantes que foram previamente determinados pelo Estado para os pensionistas, estes deixarão de poder receber os seus cheques habituais ou recebê-los-ão com uma fatia a menos.
O processo de os-que-vêm-atrás-pagam-para-nós não é, afinal, muito diferente do utilizado por Madoff ou pela D. Branca. Se a não-entrega de dinheiro para depósito por parte dos investidores conduziu a D. Branca e Madoff à falência, este processo com o Estado, apesar de absolutamente legal, não é sem risco. Porquê? Presentemente, porque existem três factores coligados: 1. Baixa taxa de natalidade em Portugal (o número actual de filhos por mulher ronda 1,4; em 1960 era de 3,2!) 2. Elevadíssima taxa de desemprego, o que implica uma forte diminuição dos contributos expectáveis para os cofres da Segurança Social. 3. A Segurança Social deixa não só de contar com as contribuições dos trabalhadores desempregados como tem, dentro do justo e previsto na lei, de lhes pagar os respectivos subsídios pela sua condição de desempregados.
Com esta situação explosiva, que possivelmente ainda é tão ou mais explosiva em Espanha e decerto na Grécia, não é impossível que mais tarde ou mais cedo se crie um mal-estar social que poderá descambar em revolta, primeiro dos cidadãos contra os governos que malbarataram a gestão da coisa pública e, depois, entre os trabalhadores que, vendo as suas expectativas de reforma muito diminuídas relativamente às pensões recebidas por cidadãos entretanto já aposentados, se virarão contra estes. A situação tem toda a lógica.
Para alguém que já esteja reformado e que, a título de exemplo, aufira uma pensão de 1500 euros – sensivelmente de acordo com o ordenado que auferia enquanto trabalhava – será interessante calcular quanto é que deveria ter presentemente na sua suposta conta bancária para poder auferir, em juros, 1500 euros líquidos mensais 14 vezes no ano. Aplique-se a actual taxa de depósitos a prazo dos bancos ou a taxa dos certificados de aforro. Depois, cada um pergunte a si mesmo se descontou tanto dinheiro ao longo da sua vida.
A juntar a isto, note que cada pensionista tem ainda direito a recorrer praticamente grátis a consultas estatais de saúde e a receber uma comparticipação significativa nos medicamentos que eventualmente precisará de mandar aviar.
Postas as coisas assim preto-no-branco, haverá boas razões para se pensar que do outro lado da estrada se vai encontrar a segurança e a paz que tanto se deseja e que, de facto, tem sido prometida?

P. S. Nem sempre me agrada ser tão claro e soar como um impertinente pessimista – que continuo a não achar que seja -, mas é bom que se chamem as coisas pelos nomes. Creio – e está muito longe de ser esta a primeira vez que o faço – que o país está a viver acima das suas posses e, apesar disso, não se dando conta do facto, se mantém a lastimar a sua sorte. Calimericamente. Inconscientemente. Há remédio? Certamente! Mais trabalho, mais poupança e maior consciência da realidade. Para todos.

Uma questão de racionalidade?


Tive ontem ocasião de voltar ao areal da praia que habitualmente frequento. Foi muito gratificante verificar que do Verão de 2009 para hoje se produziu uma enorme alteração, para melhor. Sucedeu que, no ano passado, a areia praticamente desapareceu. Houve barracas, entre as quais aquelas que os meus amigos e eu costumamos alugar, que só puderam ser armadas nos locais habituais depois de bulldozers para lá terem transportado várias vezes significativas quantidades de areia. As costumeiras vozes pessimistas prenunciaram que a "nossa" praia iria morrer, tal era a quantidade de rochas que tinham aflorado devido ao desaparecimento da areia. Só o banheiro experiente nos dizia, com a sabedoria de quem já viu muitos anos de areal e de mar, que tudo voltaria ao habitual.
Felizmente que o banheiro teve mesmo razão. Devido à pluviosidade excepcional que se registou este ano, o rio que desagua ali perto trouxe enormes quantidades de terra dos sítios por onde passa. Toda essa terra, em conjunto com a força das marés, mudou o cenário completamente. Hoje não se vê praticamente uma rocha. A praia está melhor do que nunca.
Ao longo do meu passeio de ontem pelo areal imenso, não consegui coibir-me de pensar num certo contraste entre esta natureza e o homem: se a natureza, que é irracional, se auto-corrige, é estranho que o homem, ser racional, não o consiga sempre fazer. Será que vamos ter de inverter os conceitos de racionalidade?

5/12/2010

De volta ao euro


O título da foto que encima este texto parece peremptório: o fim do euro. Vindo de uma revista americana na sua versão internacional, revela muito de wishful thinking: o dólar nunca apreciou a criação do euro e combateu-a fortemente. Todos sabemos que é melhor ter um monopólio do que ver-se obrigado a partilhá-lo; para mais, nos poucos anos passados desde a sua criação, o euro até se valorizou bastante relativamente ao dólar e, o que é bem mais importante, roubou-lhe alguns mercados e a colocação de reservas monetárias de outros países.
Mas será que se trata apenas de wishful thinking americano ou estamos realmente perante um enorme problema que pode eventualmente conduzir ao fim do euro? Esta é já uma outra maneira de encarar a questão, menos peremptória e certamente mais razoável. Ninguém poderá questionar a existência de um mau bocado que a moeda que é comum a 16 países europeus está a atravessar. Como é que chegámos aqui?
Em 1997, portanto já há treze anos, um avisado jornalista (Josef Joffe) do diário alemão Die Zeit empregava uma metáfora interessante. Segundo ele, uma moeda comum sem um governo comum é como várias locomotivas de um mesmo comboio, cada uma delas deslocando-se com a sua energia própria e todas elas atreladas para formarem um comboio único. Cada uma das locomotivas tem de deslocar-se à mesma velocidade, na mesma direcção e ao mesmo tempo. Se os maquinistas não se portarem como se fossem um só, os elos que ligam entre si as carruagens quebrar-se-ão, ou então o comboio saltará fora dos carris.
A crença na possibilidade de todas as carruagens se moverem juntas terá sido a grande falha do projecto. Ao mergulhar no euro, a Europa terá posto o carro à frente dos bois. Para os pessimistas terá sido um milagre que só ao fim de uma década - e na sequência de uma crise global - as coisas se tenham tornado menos cor-de-rosa e mesmo em risco de descarrilar. Isto porque nem todos os maquinistas (governos) tinham a mesma cultura nem os mesmos interesses. Mas todos gozavam de benefícios idênticos quando se tratava de terem juros baixos, por exemplo. Agora, com os problemas gravíssimos da Grécia e de outros países menos controlados nas suas contas, como Portugal e Espanha, além da Itália e da Irlanda, de repente são as diferentes culturas e os diferentes interesses que vêm ao de cima.
Curiosamente, as substantivas discrepâncias que existem entre o rigor de um alemão e a atitude algo non-chalante de um português na maneira de olhar o mundo e a vida ressaltam agora mais do que nunca. Holandeses e belgas, franceses e luxemburgueses não possuem a mesma cultura. Entre os próprios belgas, os francófonos são bem diferentes dos flamengos. É extraordinário como este aspecto das culturas se torna tão influente na condução da economia e das finanças.
A eventualidade do efeito dominó, isto é, de contágio entre os diferentes parceiros que dormem na cama comum do euro, não está de modo nenhum afastada. Por isso, países como Portugal e a Espanha vêem-se forçados a tomar desde já medidas difíceis e certamente pouco populares, com consequências a nível político. É natural, entretanto, que aquilo que está presentemente a suceder sirva de forte chamada de atenção à realidade por parte dos líderes da União Europeia. Por muito que custe aos respectivos países e aos seus desejos de soberania – esta última, aliás, já muito delapidada - , é essencial que exista um controle muito mais apertado, efectuado pela União Europeia, do andamento dos diferentes comboios e respectivos maquinistas.
Entretanto, mantenhamo-nos realistas, mas optimistas!

Bóia de salvação?

Depois de uma semana de subidas das taxas de juro nos empréstimos a países com fortes défices dentro da União Europeia, acompanhada por descidas verdadeiramente abruptas nas bolsas europeias, foi criado pela UE e pelo FMI um mecanismo de estabilização da ordem dos 750 mil milhões de euros para restaurar a confiança no euro e impedir que os problemas resultantes da dívida grega se propaguem a outros países, nomeadamente a Portugal e a Espanha. É uma notícia que deve ser recebida com um certo alívio em Portugal, mas que exige uma disciplina do tipo alemão e não da que é tradicional entre nós. Se uma garantia desta ordem não for complementada com medidas de austeridade para os países mais endividados e com a obrigatoriedade de maior rigor e apresentação mais regular ao BCE das contas públicas nacionais do que até aqui, o descalabro pode continuar. Afinal, se um filho gastador ouve o pai dizer que lhe cobre o jogo, a tendência dele não será para poupar. Até talvez lhe saia um "Porreiro, pá!"

(Conto voltar ao tema muito brevemente.)

5/09/2010

Duas saudações

A primeira destas saudações vai para o governo deste país que, finalmente, teve o juízo suficiente para rever o timing das grandes obras previstas e considerar mesmo a sua reavaliação. Ver a casa a arder e continuar como se nada se passasse era algo que não fazia qualquer sentido.
A segunda saudação vai para uma efeméride que o jornal Público não se esqueceu de registar: a passagem do 50º aniversário do aparecimento da pílula. Longe de ser apenas um assunto feminino, como todos sabemos, a pílula teve um efeito extraordinário na evolução da sociedade e de muitos dos seus costumes. Curiosamente, há pouco tempo li um artigo sobre a pílula originalmente escrito para a revista The New Yorker e agora incluído em What the Dog Saw, um bom livro de Malcolm Gladwell. O mais interessante do artigo é o facto de um dos inventores da pílula, o médico e investigador John Rock, ter sido profundamente católico e estar plenamente convencido de que, devido à regularização do período menstrual que a pílula provocava, ela poderia e deveria ser considerada um método natural. Porém, a Igreja Católica não esteve pelos ajustes em aceitar o argumento.
Pessoalmente, recordo-me que quando nos anos 60 a pílula foi introduzida em Portugal havia uma natural cautela da parte feminina em analisar os prós e os contras. E correram os mais diversos boatos sobre os efeitos negativos da pílula. A sociedade estava ainda tão obcecada com a virgindade feminina que havia mulheres que, naturalmente, se sentiam acanhadas e consequentemente sem grande vontade de entrar numa farmácia a pedir que lhes aviassem a receita. Esta era absolutamente essencial. Recordo-me muito bem desse facto porque numa determinada altura – eu era solteiro e assim continuaria por mais uns bons anos – tive de pedir a um médico conhecido se me passava em nome de uma amiga várias receitas para a dita pílula. E era eu depois que as aviava! Mas que o comprimido era importante, isso sem dúvida. E uma novidade, também. Na casa dessa minha amiga, o grande espelho do quarto de banho tinha na parte superior uma linha escrita em letra bem grande com bâton vermelho: "Não esquecer tomar a pílula!"
Outros tempos.

5/07/2010

Cui bono?

Esta é uma clássica expressão latina que continuou até aos nossos dias, especialmente em linguagem jurídica. Sempre gostei daquilo que a pergunta implica: É para benefício de quem? Serve a quem? Cui bono implica a existência de uma utilidade ou um interesse próprio como valor primordial de uma determinada acção.
O homem não muda tanto quanto por vezes se pensa. A tecnologia à sua volta e ao seu dispor, sim. O homem sempre sonhou em voar como as aves, num exemplo como tantos outros, mas faltava-lhe a tecnologia. Homens a voar como o SuperHomem de ficção, o mitológico Ícaro, ou a mais real Passarola do Padre Bartolomeu de Gusmão são de tempos mais ou menos remotos. Mas os aviões só apareceram há pouco mais de cem anos. Tal como os aviões, tantos outras novidades do mundo tecnológico. E mudaram o homem? Certamente que lhe deram novas perspectivas e alargaram o seu mundo de ideias, mas em questões de estrutura psicológica, de euforia e tristeza, vingança e perdão, verdade e mentira, desejos e frustrações, invejas e ciúmes, não terão alterado muito as coisas. De onde a presença da questão "Cui bono?" se manter perfeitamente actual.

Quando a oposição parece rejubilar com os problemas reais da economia e finanças de Portugal, cui bono?
Quando o primeiro-ministro e o presidente do governo regional da Madeira se reconciliam, cui bono?
Quando as agências de rating afundam a realidade portuguesa e a espanhola, depois de terem feito algo semelhante com a grega, cui bono?
Quando, em 1945, o governo dos EUA antes de mandar lançar as bombas atómicas sobre o Japão referiu como argumento que estava a defender cerca de 500 mil tropas americanas estacionadas no Pacífico embora o verdadeiro número fosse de apenas 46 mil, cui bono?
Quando o Brasil convence os países de língua oficial portuguesa a usar uma nova ortografia, cui bono?

5/02/2010

Os grandes projectos

A verdade da situação económica e financeira de Portugal acabou por vir ao de cima. E não é brilhante. A partir de agora, sempre que Portugal pedir mais dinheiro emprestado ao estrangeiro, pagará um juro consideravelmente mais alto por ele.
A gravidade da situação actual, que até poderá levar o país a sair do euro, pode ser menos má do que a da Grécia, mas dentro da Eurolândia pior só encontramos mesmo esse país do Mar Egeu. Neste sentido, convirá porventura recordar algumas das medidas que irão recair sobre os gregos, numa factura social que já foi negociada com a União Europeia e com o FMI: supressão dos 13º e 14º meses no salário dos funcionários públicos; idem em todas as pensões de reforma; a idade da reforma elevada para os 67 anos; revisão da lei dos despedimentos; o aumento do IVA.
Ora, a supressão dos 13º e 14º meses para os trabalhadores no activo e para os pensionistas significa para cada um deles uma quebra na ordem dos 14 por cento (um pouco mais, de facto). Em termos reais, quem ganha 100 passa a receber ao fim do mês apenas 85 e uns pozitos mais.
Quando se vêem as barbas do vizinho a arder, é natural que olhemos para as nossas e as ponhamos de molho, porque barbas molhadas custam mais a pegar fogo. Seria, em princípio, lógico que Portugal deixasse o mais possível de pedir dinheiro emprestado ao estrangeiro e vivesse mais com a prata da casa. Pareceria uma medida de bom senso. Sucede que os dois grandes projectos portugueses - a construção do novo aeroporto de Lisboa e o projecto ferroviário geralmente conhecido por TGV – parece irem seguir em frente, a despeito de o senso comum ir contra algo que está muito longe de ser urgente. Possivelmente serão projectos com alguma urgência política – para atender a promessas feitas – mas neste momento sem lógica económico-financeira. Dizia Brecht que as derrotas e as vitórias de quem está no topo não são necessariamente derrotas e vitórias para quem está abaixo, e este parece-me ser um caso ao qual esta reflexão se aplica. Por outro lado, uma ideia pode ser correcta em 2004 e desajustada em 2010. Saber corrigir-se e pensar em defender os interesses da Nação acima de tudo é característica de um verdadeiro homem de Estado. Insistir, contra ventos e marés, em mais auto-estradas e mais aeroportos e o TGV parece ser nesta altura um erro tremendo. Errar é humano, todos sabemos, mas errar muito, como alguém dizia, é desumano. Basta!