1/02/2006

A torneira

Durante o próximo quadro orçamental 2007-2013, a torneira UE vai continuar a debitar fundos estruturais de apoio ao desenvolvimento do nosso país à razão de 6 mil euros por minuto, 367 mil euros por hora, 8,8 milhões por dia e 3214 milhões por ano.
Em princípio, rejubila-se. Quem não gosta de receber dinheiro a jorros? Nem que seja para ser excêntrico. Não irei ao ponto de dizer que seja mau receber dinheiros em montantes desta ordem. Mas permito-me fazer algumas considerações.
Portugal era um país relativamente pobre quando, na transição do século XIV para o século XV, uma requintada educação dada aos príncipes filhos de D. João I e da filha mais velha do Duque de Lencastre (D. Filipa) permitiu que o país acordasse. Tinha bons líderes. Sem a esmerada educação-de-vistas-largas de infantes como D. Pedro, D. Henrique, D. Fernando e D. Duarte, assim como da princesa D. Isabel (que casou com Filipe de Borgonha, então o homem mais rico da cristandade), Portugal não teria dado o salto que deu. Claro que recebeu o auxílio da comunidade judaica, mas isso mesmo foi fomentado pelos príncipes. Umas décadas mais tarde, graças a esse enorme impulso, os portugueses estavam na descoberta de outros mundos através da navegação por mares nunca até então explorados por europeus.
O país construiu o seu primeiro império, na Índia. Daí adveio uma riqueza considerável, baseada no comércio de especiarias. Essa riqueza foi, infelizmente, mal administrada. As classes dirigentes enriqueceram, é certo, mas pouco fizeram pelo restante da população. Despediram do país os judeus, naquele que foi um dos seus piores erros.
No século XVII, aquando da restauração da independência e sem grandes meios financeiros, os portugueses puseram todo o seu engenho e arte a produzir "nacional". Daqui resultou, por exemplo, o período mais genuinamente português no mobiliário. Mas pouco tempo depois, quando começaram a ser verdadeiramente exploradas - graças aos escravos entretanto trazidos de África - as enormes riquezas do segundo império português, foi muito o ouro que jorrou das terras brasileiras de Minas Gerais. Depois do ouro vieram os diamantes, que trouxeram rios de dinheiro para o país. Esse dinheiro levou os líderes de então a descurarem mais uma vez o povo. Viviam, dentro dos condicionamentos da época, como os nababos hoje vivem do petróleo. Uma união quase sagrada entre a Coroa e o Clero desprotegeu invariavelmente a larga maioria.
Depois da independência do Brasil, Portugal voltou-se para o seu terceiro império, o de África, e de novo voltou a ter réditos especiais. Desta vez foram o algodão, o café, o cacau, os diamantes e, mais tarde, o petróleo que levaram Portugal a manter uma política de Estado forte e rico, rodeado por um séquito relativamente reduzido e com robusto poder económico, a contrastar com as dificuldades das massas. A guerra colonial, a forte corrente de emigração para a Europa e América do Norte e, logo a seguir, o 25 de Abril de '74, vieram introduzir um novo efeito sobre o país. Finalmente sem um império que lhe pudesse servir de chucha, Portugal teria que cuidar de si próprio de outra maneira. Faltava a educação generalizada do povo, porém.
A adesão à CEE, há vinte anos, produziu o CEEbastião, o Desejado, isto é, mais fundos para Portugal. Mistificação de resultados através do facilitismo no domínio da educação produziram estatísticas interessantes mas ilusórias. Os fundos foram, como habitualmente, recebidos pelo Estado e depois distribuídos pelas numerosas e interesseiras entidades corporativas e por empresários, que à volta dele gravitam mas que o desdenham quando dele falam.
É neste pé que nos encontramos agora mais uma vez. Desde que as classes dirigentes possuam dinheiro, os problemas não se resolvem de forma a obter desenvolvimento estrutural para o país. Por outro lado, o país vai sendo vendido a estrangeiros, que obviamente aproveitam aquilo a que muitos dos nacionais não conseguem chegar.
Assim, o anúncio de que a torneira continua a correr tem, além de bons efeitos, consequências perniciosas. O constante adiamento do país não augura nada de bom. O melhor vai sendo levado.
Noutras partes do mundo desenvolvido, pessoas mais industriosas e menos beneficiadas com o clima tiveram que estudar e lutar para produzir riqueza própria; conflitos internos, de ordem religiosa, política e social, fizeram despertar liberdades que foram conquistadas e como tal mantidas. Foi assim na Holanda, na Dinamarca, na Alemanha, na Inglaterra. Entre nós, a religião monobloco tradicional, o pacto estabelecido entre a Coroa e a Igreja, a manutenção do ávido séquito em redor do omnipotente e omnipresente Estado e as constantes torneiras indianas, brasileiras, africanas e europeias a pingarem conduziram o país a uma certa modorra que tarda em desaparecer. Dinheiro fácil é ilusório mas, como Keynes gostava de dizer, "a curto prazo estaremos todos mortos". Algo a que o povo acrescenta que enquanto o pau vai e vem, as costas vão folgando. É uma filosofia.
"A necessidade aguça o invento" é um provérbio correcto. A não-necessidade tem efeito contrário. Easy come, easy go.

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