Sou assinante de revistas americanas há mais de 40 anos. Fosse nos anos 60, na década de 70, na de 80 ou na de agora, sempre notei uma significativa predominância ao longo dos anos de capas dessas revistas com referências ao Médio Oriente. O envolvimento de Israel era e é notório. Isto significa que um pequeno país como Israel representa muito para os interesses americanos. É normal, porém, que isso suceda. Não só os Estados Unidos estão de há muito interessados no petróleo do Médio Oriente, como o facto de ali possuírem uma "lança na Ásia" lhes é extremamente importante.
Israel é um estado sui generis. Nenhum outro que eu conheça foi aprovado pela ONU com base em direitos históricos. Uma bem orquestrada campanha a favor dos judeus, simulada como acto de contrição feito pelo Ocidente para se remir dos pecados de uma nação ocidental - a hitleriana Alemanha - conseguiu colocar Israel no mapa em 1948. A decisão foi tomada em Nova Iorque, que recebera entretanto a sede das Nações Unidas e assim mostrava os efeitos benéficos de se jogar em casa. O facto de o território do novo estado de Israel estar ocupado não constituiu óbice de monta. Começava a revelar-se aqui uma verdadeira assimetria de poderes, que hoje é porventura ainda mais visível. É esta profunda diferença entre um Israel que é tratado como ponta de lança avançada dos Estados Unidos naquela região do globo, equipado e protegido pela nação militarmente mais bem apetrechada do mundo, e a maioria dos habitantes dos países circunvizinhos habitados por povos de diferentes religiões, que tem levado a numerosos conflitos passados, os quais tenderão sem dúvida a continuar no futuro.
Hoje, 58 anos volvidos da constituição de Israel, continua a mesma guerra inicial. O que se passa neste momento é a mera continuação de uma raiva surda entre aquele espinho para os muçulmanos e a luta pela sobrevivência dos habitantes de Israel. Se me disserem que um rapaz ou uma rapariga, de 26 ou 36 anos, de nacionalidade israelita, sentem aquela como sua pátria e estão dispostos a dar a vida por ela, considero isso perfeitamente natural. Se me disserem que, se Israel perder uma guerra perderá a sobrevivência, concordo também. Portanto, já que existe tem necessidade de se defender. E contudo...
O que se vê é que as nações mais poderosas militarmente são também as mais poderosas mediaticamente. Para começar, verifique-se que o mundo pouco sabe da criação de Israel, do protectorado britânico que o precedeu, da passagem de testemunho da Grã-Bretanha aos Estados Unidos após a 2ª Guerra Mundial. Os relatos começam geralmente ontem. Não se começa a História onde ela verdadeiramente tem início. Começa-se onde mais convém a cada uma das partes.
Tzipi Livni, a actual ministra dos Negócios Estrangeiros de Israel, disse numa entrevista que as resoluções 1559 e 1680 das Nações Unidas determinaram a necessidade de o governo libanês ser soberano em toda a extensão do seu território e de desmantelar todas as milícias, incluindo o Hezbollah. O governo libanês não terá cumprido essa determinação da ONU, motivo pelo qual Israel teve toda a razão em lançar um ataque contra o Líbano - apenas em resposta a um primeiro ataque do Hezbollah. Vemos mais uma vez que a história começa aqui e agora, porque é aqui que convém. Não houve provocações anteriores dos israelitas na zona, como por exemplo o sequestro de ministros palestinianos e o que se passou e passa em Gaza. Escamoteia-se inteiramente que há várias resoluções tomadas nas Nações Unidas não cumpridas por Israel. Entre elas, algo tão importante como o abandono de áreas específicas que os israelitas foram ilegalmente ocupando. A pergunta coloca-se: e se os israelitas não quiserem acatar essas resoluções, quem é que os obriga, protegidos como estão pelos Estados Unidos? Aqui temos a assimetria de poderes em colisão com um teórico direito internacional. Porém, quando é para os adversários, esse direito é mesmo para cumprir. Dois pesos, duas medidas. Filhos e enteados, como se diz em português corrente.
Se os palestinianos não reconhecem o Estado de Israel, isso é um sacrilégio. Se os israelitas, sempre secundados pelos Estados Unidos, não reconhecem a existência de um Estado Palestiniano, isso é questão de somenos importância.
Se armas para o Hezbollah provêm, não comprovadamente, do Irão, estamos em presença do eixo do mal. Se armas americanas apetrecham o exército israelita com equipamento ultra-moderno que se destinava ao Iraque ou que veio urgentemente dos EUA com passagem por um aeroporto do Reino Unido, está tudo bem. É apenas o eixo do bem a funcionar.
Condoleeza Rice surge no Médio Oriente como grande juíza do mundo. Ela decide se vai haver cessar-fogo imediato ou se vai continuar o despejo de bombas, matando e ferindo centenas de libaneses, na esmagadora maioria civis, incluindo mulheres e crianças. Prossegue a destruição escandalosa de edifícios que reduzem bairros inteiros de Beirute e outras cidades a montes de destroços e ruínas, tal como já tinham sido destruídos da forma mais cruel depósitos de água essenciais para a vida das pessoas na faixa de Gaza. E parece que já ninguém estranha que seja uma diplomata dos EUA a vir dar ordens!
Os media mostram fotografias do lado israelita com um destaque diferente do que dão ao outro lado. Israelitas atingidos por mísseis são frequentemente identificados ("uma rapariga de 15 anos e um homem de 76"). Do outro lado é apresentado geralmente apenas o número de mortos e diz-se algo como "na maioria civis". Quantas crianças têm sido mortas pelos ataques israelitas na Palestina? Há entrevistas com políticos israelitas, mas alguém procura a opinião de políticos e de universitários do outro lado?
O argumento dos falcões é sempre o mesmo: "a guerra é necessária para alcançar a paz." Na realidade, não é a paz que se alcança, mas sim a submissão dos vencidos aos vencedores. Entretanto, os Estados Unidos e Israel conseguem fazer quase o pleno: pôr a maioria das pessoas do mundo contra si. Até unem o mundo muçulmano e árabe, o que é difícil. Um velho provérbio daqueles lados diz, na sua simplicidade, "Eu e o meu irmão podemos estar contra o nosso primo. Mas eu, o meu irmão e o nosso primo estaremos juntos contra um estranho."
Da parte dos EUA vem o mesmo cinismo que ainda recentemente tivemos ocasião de presenciar no Iraque: dinheiro para a reconstrução. Os EUA anunciaram o seu contributo de 24 milhões de dólares como ajuda para os estragos causados pelas bombas (dos aliados Israel-EUA). Como essa ajuda se materializará é outra questão. Por seu lado, Israel apresenta imediatamente a sua própria factura: diz que na sua zona norte, com a paralisação industrial, está a perder 111 milhões de euros por dia. Em face do número de mortos e do nível de destruição, "dez olhos por um olho", "cem dentes por um dente", este é um caso típico de fazer o mal e a caramunha. Mas é assim que actua o eixo do bem.
Muitos dos media, obedientemente, publicam tudo, sem destrinçar propaganda do resto. Na maior parte dos casos usam terminologia parcial. Seja no Iraque, seja na Palestina ou no Líbano, não há nacionalistas nem resistentes. Há apenas rebeldes, insurrectos e terroristas. Entretanto, bombas e mísseis continuam a cair de forma perfeitamente assimétrica em território libanês e israelita, enquanto se discute o cessar-fogo no edifício das Nações Unidas, com o veto americano a actuar. Quantos inocentes mais terão ainda de morrer, quantos milhares de pessoas mais ficarão sem as suas casas e com as vidas destruídas até os senhores do mundo se decidirem a dar a guerra por finda?
7/30/2006
7/28/2006
Déjà vu
Às vezes pergunto-me se gosto mais de partilhar com outros aquilo que sei ou julgo saber, ou de aprender coisas novas com outras pessoas. Se me coloco esta pergunta é porque não estou de maneira nenhuma certo da resposta. Dá-me muito prazer trocar impressões com outras pessoas, a receber e a partilhar coisas. Por outro lado, armazenar conhecimentos sem os partilhar é, sinto-o, mais do que inútil: é revoltante e deprimente. Os conhecimentos são objecto de transmissão. Eles estão no cerne da melhoria das pessoas e, no meu caso, do interesse pela vida. O déjà vu é, para mim, o pior de tudo. Tem que haver - e há sempre, se tentarmos - um pas encore vu, que nos faz brilhar os olhos e procurar mais e mais. Cabem aqui as viagens, por exemplo, com toda a preparação que naturalmente exigem e com o apport que, através da sua realização, elas invariavelmente nos fornecem. Cabem aqui as conferências, viagens de outro tipo que nos transportam frequentemente a um domínio de especialistas que faz fronteira, aqui e ali, com os nossos conhecimentos anteriores e consegue quebrar os seus limites, ampliando-os. Cabem aqui também as conversas com amigos de outras áreas de conhecimento, pelas mesmíssimas razões. As raias virtuais do nosso conhecimento recebem golpes benignos e acabam a pedir mais coisas interessantes, mais do pas encore vu.
É que a rotina, apesar de tudo o que tem de bom na nossa actividade diária, é o grande mal da nossa monotonia. As nossas rotinas, actividades fechadas que causam ondas cerebrais alfa, são importantíssimas para o nosso descanso e estado de menor alerta. A rotina em si, encarada como um comprazimento com o déjà vu, é a morte em vida. É o círculo a auto-contentar-se e a não procurar a espiral.Daí que devamos sentir necessidade de sair da rotina. Ora, para este "descolamento da rotina" (já usei tantas vezes esta frase que se tornou para mim rotineira e sem graça, ela que ao princípio teve graça) existem três tipos de agentes fundamentais: uns de natureza externa, outros de natureza interna e ainda um terceiro tipo, que combina os dois anteriores. É na predilecção por uns ou por outros que, neste campo, as pessoas se dividem.
É que a rotina, apesar de tudo o que tem de bom na nossa actividade diária, é o grande mal da nossa monotonia. As nossas rotinas, actividades fechadas que causam ondas cerebrais alfa, são importantíssimas para o nosso descanso e estado de menor alerta. A rotina em si, encarada como um comprazimento com o déjà vu, é a morte em vida. É o círculo a auto-contentar-se e a não procurar a espiral.Daí que devamos sentir necessidade de sair da rotina. Ora, para este "descolamento da rotina" (já usei tantas vezes esta frase que se tornou para mim rotineira e sem graça, ela que ao princípio teve graça) existem três tipos de agentes fundamentais: uns de natureza externa, outros de natureza interna e ainda um terceiro tipo, que combina os dois anteriores. É na predilecção por uns ou por outros que, neste campo, as pessoas se dividem.
7/26/2006
Gémeos
Após a eleição de Cavaco Silva como Presidente da República, os jornalistas portugueses apressaram-se a classificar a co-habitação com o primeiro-ministro Sócrates como pacífica, dado tratar-se de "duas almas gémeas". Este facto é duvidoso e só o futuro determinará até que ponto essa geminação existe.
Onde a geminação é total é num dos países-membros da União Europeia-25: a Polónia. Eleito no Outono passado como Presidente da República polaca, Lech Kaczynski viu há pouco mais de uma semana o seu irmão gémeo Jaroslaw prestar juramento como primeiro-ministro. Que me lembre, é inédito.
Apesar de serem corpos gémeos, será neste caso também melhor esperar pelos próximos meses para verificar se se trata de facto de duas almas gémeas. Nunca fiando!
Onde a geminação é total é num dos países-membros da União Europeia-25: a Polónia. Eleito no Outono passado como Presidente da República polaca, Lech Kaczynski viu há pouco mais de uma semana o seu irmão gémeo Jaroslaw prestar juramento como primeiro-ministro. Que me lembre, é inédito.
Apesar de serem corpos gémeos, será neste caso também melhor esperar pelos próximos meses para verificar se se trata de facto de duas almas gémeas. Nunca fiando!
7/24/2006
Aferição e controlo
Foi anunciado hoje pela ministra da Educação que serão realizadas em 2006/2007 provas nacionais de Português e Matemática no final tanto do 1º como do 2º ciclo. Começa a voltar o bom senso, o que se saúda. O nível de trabalho vai naturalmente subir, pois alunos e professores vão decerto empenhar-se mais durante o ano.
7/23/2006
Falta de sentido comercial ou de engenho-e-arte?
Vai para dois anos, estando eu em Viena, deparei com interessantes e originais vaquinhas nas montras de alguns estabelecimentos. Gostando da inovação e do sentido criativo como a maioria das pessoas, perguntei num desses estabelecimentos qual a razão da existência daqueles bichinhos (havia uns em tamanho pequeno, outros médios e ainda alguns um pouco maiores). Responderam-me que Viena tinha sido uma das cidades visitadas pela Cow Parade e que, na sequência, tinham criado aquelas originais vaquinhas. Estavam já longe de ter o stock completo, pois tinham tido bastante saída. Comprei um desses bichinhos, que se pode ver na foto anexa. Admitindo que a inovação e a criatividade são dois trunfos importantíssimos e muito apregoados tanto por políticos como por empresários, pergunto-me a mim próprio por que razão as simpáticas vaquinhas que continuam espalhadas pela cidade de Lisboa não se viram reproduzidas em tamanho vendável. Eu compraria possivelmente uma para fazer companhia à Angélica.
7/16/2006
O renascimento do Nolasco
O dia tinha estado quentíssimo, a lembrar tanto o calor de ananazes do Eça como os considerandos de Baudelaire sobre Lisboa no verão. A temperatura estava ainda muito elevada e sem a menor brisa, mas decidi dar um pequeno giro pela área. Já passava das oito e apetecia-me dar exercício às pernas.
Os "cinco minutos" que, ao sair, atirei para dentro de casa para quem quisesse ouvir, acabariam por transformar-se em muitos mais. Andei pouco, porém. Duzentos metros após sair a porta encontrei o Nolasco, vizinho de longa data mas com quem só cheguei à fala pela primeira vez há uns meses. A bem dizer, o Nolasco não é meu vizinho. É frequentador habitual da rua onde moro, onde reside também a sua mãe, senhora já de idade avançada. Com aquela canícula, o Nolasco levava-lhe dois garrafões de água que comprara num supermercado perto. Todo o cuidado é pouco para uma mãe que vive só.
Sujeito alto e moreno, de olhos vivos e completamente calvo, o Nolasco gosta de conversar. "Um chato!", tinha-me dito o meu amigo da papelaria quando pela primeira vez lhe perguntei quem era o personagem. "É confuso na conversa. E não despega!"
Pessoas como o Nolasco não são exactamente novidade para ninguém. Garantem, a determinada altura de uma conversa introdutória, que não nos vão contar a história da sua vida. Torna-se mais do que óbvio que é precisamente isso que vão fazer. Foi assim que eu soube pela boca do próprio do seu entusiasmo pela história e, muito particularmente, pela heráldica. Não sendo titular de nenhuma licenciatura, é um genuíno autodidacta. Vive o assunto com paixão.
De mim, o Nolasco sabe apenas que sou capaz de o acompanhar nas suas divagações históricas e que não comungo de várias das suas ideias. Compreendeu, além disso, que, ó sacrilégio!, não nutro o mínimo interesse pela heráldica. Mesmo assim, não lhe desgosta falar comigo.
Foi por isso que quando nos encontrámos frente a frente, ele a subir a rua na direcção da casa da mãe e eu pronto a dar uma pequena volta, o Nolasco se sentiu momentaneamente aliviado de dois pesos: o de carregar os garrafões, que de pronto colocou no chão, e o de ir em pura cogitação solitária, já com umas gotas de transpiração sobre a testa e a calva.
E como ia o Nolasco? "Bem," respondeu-me. "E o meu amigo?" (O Nolasco sabia quem eu era, mas admitiu a meio da conversa não se lembrar concretamente do meu nome.) Falei-lhe do carrego que ele levava num dia tão quente como aquele. "Isto para mim não é nada! Vou fazer 70 anos agora em Agosto e sinto-me muito bem!"
Murmurei qualquer coisa sobre a necessidade de se fazer exercício físico e recordei aquela regra de ouro que diz que o uso faz o órgão. Acrescentei, sorrindo, que a frase não se aplicava apenas ao órgão em que ele estava a pensar mas sim a tudo o que é exercitado. Sem o saber, estava a dar-lhe a deixa. "Meu amigo, não tenho nada que lhe contar isto, mas se não se importa de me ouvir..." Sugeri-lhe apenas que nos resguardássemos atrás do tronco de uma árvore de grande porte que tínhamos ali ao pé. Assim, pelo menos o sol poente não nos feriria os olhos.
Quando eu esperava que o Nolasco fosse direito ao assunto que se propunha partilhar comigo, notei que ele começava a fazer uma larga divagação sobre a sua mulher, "com quem nunca me dei bem". Tinham tido um único filho que, tal como ele, já estava a fazer carreira na escrituração comercial. A mulher e ele discutiam vezes demais. "Por causa disso, é pessoa em quem não toco há anos e anos!" Por um momento, passou-me pela cabeça que o Nolasco me ia falar de impotência sexual, mas o brilho que lhe ia nos olhos fez-me imediatamente dissipar essa conjectura. Depois de umas tiradas algo amargas sobre a sua vida conjugal, pôs-se de súbito a elogiar a esposa sob o ponto de vista profissional. Gabou-lhe as muitas qualidades que ela sempre tinha patenteado nas várias empresas em que trabalhara.
Ainda no seu extenso circunlóquio inicial, o Nolasco atirou-me com uns textos em que Salomão entrava como protagonista. Entendi que estava a enveredar pela Bíblia. Porquê?
Tudo era, afinal, uma justificação para o facto de ele andar naquela altura com uma mulher. Ele, que nunca tal tinha feito! Ainda por cima tratava-se de uma mulher casada. O crime parecia-lhe maior. "Ela tem 52 anos. Andava sempre triste. O marido é uma óptima pessoa mas, coitado, com a sua doença renal não só carece dos cuidados dela - que é extremamente zelosa - como não pode ter relações com a mulher." Aí, vi que o Nolasco estava finalmente a chegar ao assunto. "O problema é ser com uma mulher casada!", dizia-me ele. "Tem marido!" Para o descontrair, contei-lhe uma breve anedota a propósito. Riu-se. Lembrei-lhe que aquilo que afecta as pessoas não é o facto em si, mas sim o conhecimento do facto. "Desde que o marido não saiba, ele não se sente infeliz." Senti-me mal ao dizer isto, admito, mas o Nolasco precisava de desabafar com alguém.
Aí garantiu-me que o marido de nada saberia. Ele e a Lídia faziam tudo com muita discrição. E aparecia agora o grande motivo de satisfação do Nolasco: "Ela está muito admirada comigo. No outro dia, disse-me que eu parecia um rapaz de 21 ou 22 anos!" Tanta precisão na idade fez-me levantar algumas suspeitas, que naturalmente não expressei. O Nolasco deverá no entanto ter entrevisto algo, porque se apressou a dizer-me: "Jurámos mutuamente total fidelidade. Ela não anda com outro, eu não ando com mais ninguém! E sinto-me diferente! Sabe, acho que foi por me poupar tanto durante anos e anos que agora estou assim." Fiz-lhe notar que isso ia um pouco contra a ideia de o uso fazer o órgão, mas ambos passámos logo à frente, porque factos são factos e, afinal, regras não passam de teorias, que até admitem excepções.
A sua Lídia e ele podiam continuar com a sua relação por muito tempo. Ela recuperara a alegria, ele redescobrira o sexo. A sua amada, "que foi ela que se atirou a mim, começou a encostar-se tanto que eu não pude deixar de ceder", continua a cuidar desveladamente do marido, que esse é ponto assente. Quanto ao resto... Tentei sossegá-lo, pois a sua profunda formação católica continuava a mostrar alguns constrangimentos. "O resto conta pouco, amigo Nolasco. Tanto você como ela só têm uma vida. Se de facto não prejudicam ninguém e retiram prazer da vossa relação, que mal há nisso?"
O meu bem-intencionado passeio antes do jantar já ia longo no tempo, embora curtíssimo no trajecto. Despedimo-nos. O Nolasco reatou a marcha rua acima, com os seus dois garrafões. Olhei-o bem. Não caminhava exactamente com o vigor de um rapaz de 21 ou 22 anos. Pelo contrário, arrastava-se, ultra-devagar. Porém, não é verdade que, para um homem de 69 anos, irrepreensivelmente fiel até então à sua pouco estimada esposa, acarretar dez litros de água nada tem de parecido com fazer amor com uma jovem de 52?
Os "cinco minutos" que, ao sair, atirei para dentro de casa para quem quisesse ouvir, acabariam por transformar-se em muitos mais. Andei pouco, porém. Duzentos metros após sair a porta encontrei o Nolasco, vizinho de longa data mas com quem só cheguei à fala pela primeira vez há uns meses. A bem dizer, o Nolasco não é meu vizinho. É frequentador habitual da rua onde moro, onde reside também a sua mãe, senhora já de idade avançada. Com aquela canícula, o Nolasco levava-lhe dois garrafões de água que comprara num supermercado perto. Todo o cuidado é pouco para uma mãe que vive só.
Sujeito alto e moreno, de olhos vivos e completamente calvo, o Nolasco gosta de conversar. "Um chato!", tinha-me dito o meu amigo da papelaria quando pela primeira vez lhe perguntei quem era o personagem. "É confuso na conversa. E não despega!"
Pessoas como o Nolasco não são exactamente novidade para ninguém. Garantem, a determinada altura de uma conversa introdutória, que não nos vão contar a história da sua vida. Torna-se mais do que óbvio que é precisamente isso que vão fazer. Foi assim que eu soube pela boca do próprio do seu entusiasmo pela história e, muito particularmente, pela heráldica. Não sendo titular de nenhuma licenciatura, é um genuíno autodidacta. Vive o assunto com paixão.
De mim, o Nolasco sabe apenas que sou capaz de o acompanhar nas suas divagações históricas e que não comungo de várias das suas ideias. Compreendeu, além disso, que, ó sacrilégio!, não nutro o mínimo interesse pela heráldica. Mesmo assim, não lhe desgosta falar comigo.
Foi por isso que quando nos encontrámos frente a frente, ele a subir a rua na direcção da casa da mãe e eu pronto a dar uma pequena volta, o Nolasco se sentiu momentaneamente aliviado de dois pesos: o de carregar os garrafões, que de pronto colocou no chão, e o de ir em pura cogitação solitária, já com umas gotas de transpiração sobre a testa e a calva.
E como ia o Nolasco? "Bem," respondeu-me. "E o meu amigo?" (O Nolasco sabia quem eu era, mas admitiu a meio da conversa não se lembrar concretamente do meu nome.) Falei-lhe do carrego que ele levava num dia tão quente como aquele. "Isto para mim não é nada! Vou fazer 70 anos agora em Agosto e sinto-me muito bem!"
Murmurei qualquer coisa sobre a necessidade de se fazer exercício físico e recordei aquela regra de ouro que diz que o uso faz o órgão. Acrescentei, sorrindo, que a frase não se aplicava apenas ao órgão em que ele estava a pensar mas sim a tudo o que é exercitado. Sem o saber, estava a dar-lhe a deixa. "Meu amigo, não tenho nada que lhe contar isto, mas se não se importa de me ouvir..." Sugeri-lhe apenas que nos resguardássemos atrás do tronco de uma árvore de grande porte que tínhamos ali ao pé. Assim, pelo menos o sol poente não nos feriria os olhos.
Quando eu esperava que o Nolasco fosse direito ao assunto que se propunha partilhar comigo, notei que ele começava a fazer uma larga divagação sobre a sua mulher, "com quem nunca me dei bem". Tinham tido um único filho que, tal como ele, já estava a fazer carreira na escrituração comercial. A mulher e ele discutiam vezes demais. "Por causa disso, é pessoa em quem não toco há anos e anos!" Por um momento, passou-me pela cabeça que o Nolasco me ia falar de impotência sexual, mas o brilho que lhe ia nos olhos fez-me imediatamente dissipar essa conjectura. Depois de umas tiradas algo amargas sobre a sua vida conjugal, pôs-se de súbito a elogiar a esposa sob o ponto de vista profissional. Gabou-lhe as muitas qualidades que ela sempre tinha patenteado nas várias empresas em que trabalhara.
Ainda no seu extenso circunlóquio inicial, o Nolasco atirou-me com uns textos em que Salomão entrava como protagonista. Entendi que estava a enveredar pela Bíblia. Porquê?
Tudo era, afinal, uma justificação para o facto de ele andar naquela altura com uma mulher. Ele, que nunca tal tinha feito! Ainda por cima tratava-se de uma mulher casada. O crime parecia-lhe maior. "Ela tem 52 anos. Andava sempre triste. O marido é uma óptima pessoa mas, coitado, com a sua doença renal não só carece dos cuidados dela - que é extremamente zelosa - como não pode ter relações com a mulher." Aí, vi que o Nolasco estava finalmente a chegar ao assunto. "O problema é ser com uma mulher casada!", dizia-me ele. "Tem marido!" Para o descontrair, contei-lhe uma breve anedota a propósito. Riu-se. Lembrei-lhe que aquilo que afecta as pessoas não é o facto em si, mas sim o conhecimento do facto. "Desde que o marido não saiba, ele não se sente infeliz." Senti-me mal ao dizer isto, admito, mas o Nolasco precisava de desabafar com alguém.
Aí garantiu-me que o marido de nada saberia. Ele e a Lídia faziam tudo com muita discrição. E aparecia agora o grande motivo de satisfação do Nolasco: "Ela está muito admirada comigo. No outro dia, disse-me que eu parecia um rapaz de 21 ou 22 anos!" Tanta precisão na idade fez-me levantar algumas suspeitas, que naturalmente não expressei. O Nolasco deverá no entanto ter entrevisto algo, porque se apressou a dizer-me: "Jurámos mutuamente total fidelidade. Ela não anda com outro, eu não ando com mais ninguém! E sinto-me diferente! Sabe, acho que foi por me poupar tanto durante anos e anos que agora estou assim." Fiz-lhe notar que isso ia um pouco contra a ideia de o uso fazer o órgão, mas ambos passámos logo à frente, porque factos são factos e, afinal, regras não passam de teorias, que até admitem excepções.
A sua Lídia e ele podiam continuar com a sua relação por muito tempo. Ela recuperara a alegria, ele redescobrira o sexo. A sua amada, "que foi ela que se atirou a mim, começou a encostar-se tanto que eu não pude deixar de ceder", continua a cuidar desveladamente do marido, que esse é ponto assente. Quanto ao resto... Tentei sossegá-lo, pois a sua profunda formação católica continuava a mostrar alguns constrangimentos. "O resto conta pouco, amigo Nolasco. Tanto você como ela só têm uma vida. Se de facto não prejudicam ninguém e retiram prazer da vossa relação, que mal há nisso?"
O meu bem-intencionado passeio antes do jantar já ia longo no tempo, embora curtíssimo no trajecto. Despedimo-nos. O Nolasco reatou a marcha rua acima, com os seus dois garrafões. Olhei-o bem. Não caminhava exactamente com o vigor de um rapaz de 21 ou 22 anos. Pelo contrário, arrastava-se, ultra-devagar. Porém, não é verdade que, para um homem de 69 anos, irrepreensivelmente fiel até então à sua pouco estimada esposa, acarretar dez litros de água nada tem de parecido com fazer amor com uma jovem de 52?
7/14/2006
Critérios
Quando, em 11 de Setembro de 2001, Nova Iorque assistiu a um atentado de dimensões inéditas, os Estados Unidos acharam-se no direito de invocar um artigo da ONU que considerava aquela acção uma agressão a um país estrangeiro, de certa maneira comparável a uma invasão. Posteriormente, foram bem diferentes as reacções tanto da Espanha como do Reino Unido aos atentados de Madrid e de Londres.
Agora, em vista dos contínuos ataques de Israel, destruindo vitais vias de acesso do Líbano, ferindo e matando civis, transformando em montes de ruínas casas pertencentes a pacíficas famílias libanesas, a reacção dos Estados Unidos no Conselho de Segurança da ONU é a de vetar a condenação da atitude de Israel. O rasto da morte e da destruição vai muito provavelmente continuar no Líbano nos próximos dias.
Nem uma palavra foi oficialmente dita pelos ocidentais contra a forma desproporcionada como Israel reage a provocações. E a verdade é que mesmo estas provocações, com fundas raízes, cabem inteirinhas nas conhecidas palavras de Bertolt Brecht: "Quando o rio é bravo, não se olhe apenas para as suas águas alterosas. Veja-se antes as margens que o apertam."
Agora, em vista dos contínuos ataques de Israel, destruindo vitais vias de acesso do Líbano, ferindo e matando civis, transformando em montes de ruínas casas pertencentes a pacíficas famílias libanesas, a reacção dos Estados Unidos no Conselho de Segurança da ONU é a de vetar a condenação da atitude de Israel. O rasto da morte e da destruição vai muito provavelmente continuar no Líbano nos próximos dias.
Nem uma palavra foi oficialmente dita pelos ocidentais contra a forma desproporcionada como Israel reage a provocações. E a verdade é que mesmo estas provocações, com fundas raízes, cabem inteirinhas nas conhecidas palavras de Bertolt Brecht: "Quando o rio é bravo, não se olhe apenas para as suas águas alterosas. Veja-se antes as margens que o apertam."
7/12/2006
O Apito Entupido
É uma enorme ironia que, na mesma altura em que a Itália se sagra campeã do mundo de futebol, pelo menos oito dos jogadores da sua selecção - só os da Juventus - estejam em risco de baixar para a segunda ou terceira divisão e de perder os dois últimos títulos conquistados, por conduta incorrecta da administração do clube. A Juventus não está sozinha, embora a maior parte das culpas - concretamente a influência na escolha dos árbitros da 1ª divisão italiana e a formação de uma rede de relações promíscuas com árbitros e funcionários da federação - recaia principalmente sobre ela. O AC Milan, a Fiorentina e a Lazio podem também descer de divisão. A Juventus, inicialmente o clube da FIAT de Turim, conta com cerca de 10 milhões de adeptos e simpatizantes, o que é um número equiparável ao de toda a população portuguesa. Este escândalo, com ramificações nas apostas desportivas, é o maior de que há memória em Itália. Entretanto, registe-se que as investigações demoraram menos de três meses. A gravação das chamadas telefónicas mantidas pelos corruptores foi essencial para a desmontagem do plano.
Pois é. Por cá tivemos algo muito semelhante. Não sei já há quanto tempo, li nos jornais a reprodução de conversas telefónicas arrepiantes entre dirigentes nacionais e árbitros de futebol. Por mais evidente que salte aos olhos o ilícito da situação, o processo não anda. Ou anda e desanda. Demora imenso a sair-se da fase de instrução (fase que não existe em Itália). Volta e meia temos os dirigentes a afirmar que foi tudo uma cabala contra eles. A certa altura as eventuais responsabilidades prescrevem e continua tudo na mesma. E como maçã podre contagia as outras maçãs do cesto, a situação não melhora.
Infelizmente, o futebol é apenas um exemplo do resto. Há quem clame contra a corrupção, mas pouco se faz para a combater verdadeiramente. O mal que a corrupção faz a um país, apesar de dificilmente quantificável, é enorme. Desmotiva as pessoas. Cria um clima de medo entre os que não alinham. Constitui um elogio ao não-trabalho honesto e sério. Enquanto continuarmos a ter apitos entupidos, não se ouvirá o som do apito final para acabar este jogo.
Pois é. Por cá tivemos algo muito semelhante. Não sei já há quanto tempo, li nos jornais a reprodução de conversas telefónicas arrepiantes entre dirigentes nacionais e árbitros de futebol. Por mais evidente que salte aos olhos o ilícito da situação, o processo não anda. Ou anda e desanda. Demora imenso a sair-se da fase de instrução (fase que não existe em Itália). Volta e meia temos os dirigentes a afirmar que foi tudo uma cabala contra eles. A certa altura as eventuais responsabilidades prescrevem e continua tudo na mesma. E como maçã podre contagia as outras maçãs do cesto, a situação não melhora.
Infelizmente, o futebol é apenas um exemplo do resto. Há quem clame contra a corrupção, mas pouco se faz para a combater verdadeiramente. O mal que a corrupção faz a um país, apesar de dificilmente quantificável, é enorme. Desmotiva as pessoas. Cria um clima de medo entre os que não alinham. Constitui um elogio ao não-trabalho honesto e sério. Enquanto continuarmos a ter apitos entupidos, não se ouvirá o som do apito final para acabar este jogo.
7/10/2006
Portugal sob o olhar atento dos EUA e do Vaticano
Os media acabam de nos informar que mais de 2500 documentos norte-americanos sobre a revolução portuguesa de 1974 e seu consequente processo evolutivo passaram a estar disponíveis na Internet. Trata-se de documentos que foram inicialmente confidenciais. Ressalta deles uma preocupação dos Estados Unidos que não é de resto novidade total: iria o Portugal pós-revolução tornar-se um país comunista - a Cuba da Europa - ou manter-se-ia fiel ao seu curso tradicional de alinhamento com o capitalismo?
Esta é, de facto, uma questão interessante. Para os Estados Unidos, país líder do capitalismo, então muito envolvido na chamada Guerra Fria contra as nações tuteladas pela União Soviética e preocupado com a teoria do dominó político de avanço do comunismo, estaria Portugal a iniciar uma nova frente comunista no ocidente europeu?
É um ponto de vista típico de uma nação globalizante. Cabia aos Estados Unidos controlar a situação, puxar os cordelinhos, trazer as ovelhas tresmalhadas para o seu redil.
Curiosamente, Portugal esteve no século XVII igualmente no epicentro de uma querela com laivos de semelhança, embora a sua natureza fosse mais de ordem religiosa do que exclusivamente política. A pergunta que outro centro globalizante - o Vaticano - fazia nessa altura era: irá Portugal tornar-se uma nação protestante?
Tudo começou com a retoma da independência portuguesa em 1640. Aproveitando a presença de grandes contingentes de tropas madrilenas na Catalunha para tentar sufocar uma grave rebelião, os portugueses revoltaram-se e conseguiram sacudir o jugo espanhol. Contudo, só foram bem sucedidos por terem as costas protegidas por um aliado bem forte: a Inglaterra. Ora, sucedia que nessa altura a Inglaterra surgia aos olhos do Vaticano como um dos símbolos mais fortes das nações protestantes. Aí a dúvida instalou-se. Iria Portugal abandonar a sua tradicional posição de país católico e alinhar com os protestantes? Por este motivo e, simultaneamente, porque não queria indispor a Espanha que entretanto lutava por tentar recuperar Portugal, o Vaticano acabou por reconhecer a independência portuguesa apenas cerca de 30 anos depois.
E ganhou muito com este reconhecimento. É que, posteriormente, para demonstrar o fidelíssimo catolicismo do país apesar da velha aliança com os protestantes ingleses, o rei português João V gastou avultadas maquias com o Vaticano. Uma parte substancial do ouro do Brasil foi gasta em pomposas obras da Igreja e em remessas para Roma. A culminar todo o processo, o rei português viu ser atribuído ao cardeal de Lisboa o título de Patriarca, algo de que nem a Espanha nem a França se podiam orgulhar. É, afinal, uma história com muitos testemunhos objectivos ainda hoje. O Museu dos Coches, por exemplo, e a Capela de S. João Baptista na Igreja de S. Roque têm muito que contar neste domínio.
Esta é, de facto, uma questão interessante. Para os Estados Unidos, país líder do capitalismo, então muito envolvido na chamada Guerra Fria contra as nações tuteladas pela União Soviética e preocupado com a teoria do dominó político de avanço do comunismo, estaria Portugal a iniciar uma nova frente comunista no ocidente europeu?
É um ponto de vista típico de uma nação globalizante. Cabia aos Estados Unidos controlar a situação, puxar os cordelinhos, trazer as ovelhas tresmalhadas para o seu redil.
Curiosamente, Portugal esteve no século XVII igualmente no epicentro de uma querela com laivos de semelhança, embora a sua natureza fosse mais de ordem religiosa do que exclusivamente política. A pergunta que outro centro globalizante - o Vaticano - fazia nessa altura era: irá Portugal tornar-se uma nação protestante?
Tudo começou com a retoma da independência portuguesa em 1640. Aproveitando a presença de grandes contingentes de tropas madrilenas na Catalunha para tentar sufocar uma grave rebelião, os portugueses revoltaram-se e conseguiram sacudir o jugo espanhol. Contudo, só foram bem sucedidos por terem as costas protegidas por um aliado bem forte: a Inglaterra. Ora, sucedia que nessa altura a Inglaterra surgia aos olhos do Vaticano como um dos símbolos mais fortes das nações protestantes. Aí a dúvida instalou-se. Iria Portugal abandonar a sua tradicional posição de país católico e alinhar com os protestantes? Por este motivo e, simultaneamente, porque não queria indispor a Espanha que entretanto lutava por tentar recuperar Portugal, o Vaticano acabou por reconhecer a independência portuguesa apenas cerca de 30 anos depois.
E ganhou muito com este reconhecimento. É que, posteriormente, para demonstrar o fidelíssimo catolicismo do país apesar da velha aliança com os protestantes ingleses, o rei português João V gastou avultadas maquias com o Vaticano. Uma parte substancial do ouro do Brasil foi gasta em pomposas obras da Igreja e em remessas para Roma. A culminar todo o processo, o rei português viu ser atribuído ao cardeal de Lisboa o título de Patriarca, algo de que nem a Espanha nem a França se podiam orgulhar. É, afinal, uma história com muitos testemunhos objectivos ainda hoje. O Museu dos Coches, por exemplo, e a Capela de S. João Baptista na Igreja de S. Roque têm muito que contar neste domínio.
7/09/2006
digitalMENTE
A Inteligência Artificial comemora nesta semana os seus 50 anos. Presto-lhe a minha homenagem sugerindo-vos a leitura de um delicioso e muito informativo livro de divulgação científica (ou será antes divulgação filosófica?) que contribuiu decisivamente para a minha actual convicção de que o aparecimento de máquinas pensantes é tão só uma elementar questão de tempo.
O livro intitula-se O QUINTETO DE CAMBRIDGE e o autor chama-se John L. Casti. Foi editado entre nós pela Bizâncio e presumo que não esteja esgotado.
A "acção" decorre em Christ College / Cambridge, no ano de 1949, e consiste numa suculenta discussão fictícia mantida durante um também suculento jantar, igualmente fictício, oferecido por um anfitrião real, C. P. Snow, a cinco convidados não menos reais, a saber: o matemático Alan Turing, o geneticista J. B. S. Haldane, o físico Erwin Schrödinger e o filósofo Ludwig Wittgenstein. Este último, rejeitando liminarmente a possibilidade de qualquer tipo de pensamento artificial, e Alan Turing, reconhecidamente o "pai" da IA, são os polarizadores do debate.
Esta leitura suscitou-me, entre outras, a seguinte questão: poderá uma máquina capaz de pensar fazê-lo sem a "motivação" autonómica para conservar esse poder a todo o custo, mesmo contra a vontade dos seus programadores? Uma "motivação" cuja eficácia, julgo, exigiria que o criador tivesse a generosidade de conceder à criatura, além de alma (mente), um corpo que a habilitasse a subsistir à margem da tutela humana.
Lembram-se do mentiroso computador Hal (2001, Odisseia no Espaço) - penso que a faculdade de mentir (errar ou induzir em erro deliberadamente) é condição necessária de qualquer vida mental, artificial ou não - e da sua trágica impotência física para impedir que o desligassem?
Forjar uma mente privada da "mão" capaz de fazer o que ela quer acaso não seria um monstruoso, eticamente indigno, equívoco?
O livro intitula-se O QUINTETO DE CAMBRIDGE e o autor chama-se John L. Casti. Foi editado entre nós pela Bizâncio e presumo que não esteja esgotado.
A "acção" decorre em Christ College / Cambridge, no ano de 1949, e consiste numa suculenta discussão fictícia mantida durante um também suculento jantar, igualmente fictício, oferecido por um anfitrião real, C. P. Snow, a cinco convidados não menos reais, a saber: o matemático Alan Turing, o geneticista J. B. S. Haldane, o físico Erwin Schrödinger e o filósofo Ludwig Wittgenstein. Este último, rejeitando liminarmente a possibilidade de qualquer tipo de pensamento artificial, e Alan Turing, reconhecidamente o "pai" da IA, são os polarizadores do debate.
Esta leitura suscitou-me, entre outras, a seguinte questão: poderá uma máquina capaz de pensar fazê-lo sem a "motivação" autonómica para conservar esse poder a todo o custo, mesmo contra a vontade dos seus programadores? Uma "motivação" cuja eficácia, julgo, exigiria que o criador tivesse a generosidade de conceder à criatura, além de alma (mente), um corpo que a habilitasse a subsistir à margem da tutela humana.
Lembram-se do mentiroso computador Hal (2001, Odisseia no Espaço) - penso que a faculdade de mentir (errar ou induzir em erro deliberadamente) é condição necessária de qualquer vida mental, artificial ou não - e da sua trágica impotência física para impedir que o desligassem?
Forjar uma mente privada da "mão" capaz de fazer o que ela quer acaso não seria um monstruoso, eticamente indigno, equívoco?
7/06/2006
Silêncio
Continua ensurdecedor o silêncio relativamente aos ataques israelitas a Gaza e a uma fortíssima ofensiva de Israel que chegou a incluir como alvo o gabinete do Primeiro-Ministro palestiniano. Assumir que o resgate de um militar israelita pode justificadamente causar dezenas de mortes entre os palestinianos, destruir bens de propriedade alheia e provocar uma enorme incerteza na vida de milhares de civis é de uma desumanidade incrível. A lei do mais forte impera. O Ocidente fecha os olhos e não condena Israel. Tudo me lembra os primeiros filmes americanos de cowboys e índios, em que só os cowboys tinham sentimentos. Os índios não eram mais do que uma massa indistinta de seres com maus desígnios que queriam matar os brancos.
Até quando?
Até quando?
7/03/2006
analogicaMENTE
Assisti anteontem, no Centro Cultural de Cascais, a uma magnífica conferência de António Damásio sobre Memória e Criatividade. Entre o muito que aprendi, realço alguns aspectos que me permitiram deduzir a causa física do funcionamento analógico do cérebro.
Fiquei a saber que o registo de informação a que damos o nome de aprendizagem consiste na «deformação» de circuitos neuronais quando expostos a determinados estímulos. Essa informação não pode aliás ser lida como quem lê um livro, estando sim codificada na «deformação» electroquímica operada por estimulação. Por outro lado, a re-exposição desses circuitos neuronais a estímulos idênticos - aquilo a que chamamos reforço da aprendizagem - reactiva (recupera) os registos prévios, sendo essa reactivação facilitada pela preexistência de "trilhos" criados pela «deformação» dos circuitos em causa, cujo limiar de excitação por conseguinte desce. Por outras palavras, para que um circuito neuronal já informado (deformado, na linguagem de Damásio) "dispare" de novo, a intensidade do(s) estímulo(s) adequado(s) pode ser inferior à intensidade da estimulação inicial.
Significa isto, deduzo eu, que um estímulo diferente do inicial - portanto mais fraco - pode ser contudo forte quanto baste para reactivar / fazer "disparar" por analogia o correspondente circuito prévio.
Suponhamos, à laia de exemplo, que alguém aprende as propriedades do triângulo mediante a exibição da imagem de um triângulo equilátero. Mais tarde eventualmente confrontada com a imagem de um triângulo escaleno, essa pessoa decerto reconhecerá neste o triângulo configurado pelo padrão "equilátero". Em suma: o mesmo "trilho" neuronal terá força analógica para processar estímulos distintos (se bem que obrigatoriamente congruentes), permitindo ao cérebro economizar a energia e o espaço de memória que, nas mesmas circunstâncias, um computador estaria condenado a gastar. Com efeito, um computador programado para reconhecer triângulos estritamente segundo o padrão "equilátero" seria incapaz de efectuar esse reconhecimento através de um triângulo escaleno, isto é, de efectuar o salto analógico que cobre a distância entre os dois estímulos. Para tal, seria necessário programá-lo de novo (criar outro "trilho" electrónico), pois os limiares de "excitação" não são passíveis de variação neste domínio. Num sistema digital, um "estímulo" capaz de "excitar" determinado circuito não pode ser apenas análogo ao respectivo padrão inicial - tem de ser igual.
Fiquei a saber que o registo de informação a que damos o nome de aprendizagem consiste na «deformação» de circuitos neuronais quando expostos a determinados estímulos. Essa informação não pode aliás ser lida como quem lê um livro, estando sim codificada na «deformação» electroquímica operada por estimulação. Por outro lado, a re-exposição desses circuitos neuronais a estímulos idênticos - aquilo a que chamamos reforço da aprendizagem - reactiva (recupera) os registos prévios, sendo essa reactivação facilitada pela preexistência de "trilhos" criados pela «deformação» dos circuitos em causa, cujo limiar de excitação por conseguinte desce. Por outras palavras, para que um circuito neuronal já informado (deformado, na linguagem de Damásio) "dispare" de novo, a intensidade do(s) estímulo(s) adequado(s) pode ser inferior à intensidade da estimulação inicial.
Significa isto, deduzo eu, que um estímulo diferente do inicial - portanto mais fraco - pode ser contudo forte quanto baste para reactivar / fazer "disparar" por analogia o correspondente circuito prévio.
Suponhamos, à laia de exemplo, que alguém aprende as propriedades do triângulo mediante a exibição da imagem de um triângulo equilátero. Mais tarde eventualmente confrontada com a imagem de um triângulo escaleno, essa pessoa decerto reconhecerá neste o triângulo configurado pelo padrão "equilátero". Em suma: o mesmo "trilho" neuronal terá força analógica para processar estímulos distintos (se bem que obrigatoriamente congruentes), permitindo ao cérebro economizar a energia e o espaço de memória que, nas mesmas circunstâncias, um computador estaria condenado a gastar. Com efeito, um computador programado para reconhecer triângulos estritamente segundo o padrão "equilátero" seria incapaz de efectuar esse reconhecimento através de um triângulo escaleno, isto é, de efectuar o salto analógico que cobre a distância entre os dois estímulos. Para tal, seria necessário programá-lo de novo (criar outro "trilho" electrónico), pois os limiares de "excitação" não são passíveis de variação neste domínio. Num sistema digital, um "estímulo" capaz de "excitar" determinado circuito não pode ser apenas análogo ao respectivo padrão inicial - tem de ser igual.
7/01/2006
Bravo, Portugal!
Um bravo à equipa nacional de futebol. Não é fácil chegar às meias-finais de um Campeonato do Mundo!
Censura económica
Todos nós sabemos de um caso ou outro de um jornal regional subsidiado pelo respectivo município com uns tantos milhares de euros anuais para que publique notícias referentes à Câmara. É geralmente uma ajuda importante para a sobrevivência do periódico, especialmente em meios pequenos onde a publicidade não abunda. O jornal da terra onde nasci, de que sou assinante, recebeu durante algum tempo (hoje não posso afirmar que receba) uma verba da Câmara Municipal. Contudo, justiça seja feita, vi com muita frequência críticas à edilidade, nomeadamente através da reprodução de intervenções da oposição.
O importante de factos recentes é que o município de Gaia parece ter importado da Madeira mais o jeito do seu governante-mor do que dos seus belos antúrios, das orquídeas e hortênsias. Quem, da imprensa local, quiser assinar um contrato para receber um subsídio compromete-se a não dizer mal do município. Faceta com contornos semelhantes foi patenteada pelo Presidente da C.M. Porto, que deixará de subsidiar instituições que façam críticas à sua Câmara. Assim, entre outras formas, se faz censura em Portugal. Não são só bancos - entidades privadas - que, ao sentirem-se atingidos por notícias que lhes são adversas, decidem retirar toda a sua publicidade de determinados jornais. São as entidades públicas - usufrutuárias dos dinheiros dos contribuintes - que decidem fazer o mesmo. Quer queiramos, quer não, estamos com uma democracia cada vez mais afunilada.
O importante de factos recentes é que o município de Gaia parece ter importado da Madeira mais o jeito do seu governante-mor do que dos seus belos antúrios, das orquídeas e hortênsias. Quem, da imprensa local, quiser assinar um contrato para receber um subsídio compromete-se a não dizer mal do município. Faceta com contornos semelhantes foi patenteada pelo Presidente da C.M. Porto, que deixará de subsidiar instituições que façam críticas à sua Câmara. Assim, entre outras formas, se faz censura em Portugal. Não são só bancos - entidades privadas - que, ao sentirem-se atingidos por notícias que lhes são adversas, decidem retirar toda a sua publicidade de determinados jornais. São as entidades públicas - usufrutuárias dos dinheiros dos contribuintes - que decidem fazer o mesmo. Quer queiramos, quer não, estamos com uma democracia cada vez mais afunilada.
Os espanhóis ainda matam o touro
Dias antes do início da Volta à França - não depois! -, os espanhóis tiveram a coragem de denunciar os nomes de 56 ciclistas que tinham, de uma forma ou doutra, sido clientes de uma rede de doping, que utilizava serviços médicos de Madrid especializados no assunto. Os clínicos mais directamente envolvidos parece serem dois: um ginecologista e um hematologista. Apesar de o processo ainda estar a decorrer, foi autorizada a extracção de uma listagem de corredores para comunicação directa à União Ciclista Internacional antes de o Tour ter o seu início. O resultado é que, já sem Lance Armstrong, que não participa de sua livre vontade, o elenco de ciclistas da Volta à França apresenta-se desfalcado de muitas das suas principais figuras.
Más-línguas dirão que, se fosse antes da Volta a Espanha, os espanhóis não teriam feito o mesmo. Outros dirão até que esta é a desforra pela inesperada eliminação pela França da óptima selecção espanhola do Campeonato do Mundo de futebol. Mas factos são factos.
A propósito, aqui em Portugal o arrastadíssimo processo intitulado o Apito Dourado transforma-se cada vez mais em Apito Entupido. Já alguém teorizou e equacionou quanto custa a um país - em custos directos e indirectos - uma justiça lenta?
P.S. Em Itália, equipas de topo estão envolvidas num dos maiores escândalos futebolísticos de sempre, que envolve controlo de resultados e apostas anti-desportivas sobre desporto. Vamos a ver o que sucede à Juventus, ao AC Milan, e a outras equipas. Espera-se que este processo italiano não passe a piccolo entupido. Entrava em concorrência connosco.
Más-línguas dirão que, se fosse antes da Volta a Espanha, os espanhóis não teriam feito o mesmo. Outros dirão até que esta é a desforra pela inesperada eliminação pela França da óptima selecção espanhola do Campeonato do Mundo de futebol. Mas factos são factos.
A propósito, aqui em Portugal o arrastadíssimo processo intitulado o Apito Dourado transforma-se cada vez mais em Apito Entupido. Já alguém teorizou e equacionou quanto custa a um país - em custos directos e indirectos - uma justiça lenta?
P.S. Em Itália, equipas de topo estão envolvidas num dos maiores escândalos futebolísticos de sempre, que envolve controlo de resultados e apostas anti-desportivas sobre desporto. Vamos a ver o que sucede à Juventus, ao AC Milan, e a outras equipas. Espera-se que este processo italiano não passe a piccolo entupido. Entrava em concorrência connosco.
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