6/25/2007

O biolino

Em termos puramente metafóricos, gosto de pensar num instrumento musical da vida. Dou-lhe o nome de biolino por "bio" ser "vida". Ao contrário do violino, com cujo nome se assemelha e que não tem mais do que quatro cordas, este tem seis. Uma é a corda da verdade. Ao seu lado fica a corda da mentira, que com ela faz contraponto. Seguem-se a corda da beleza e a da ironia-e-do-humor. A corda do combate vem a seguir e, por último, a corda da esperança (presente em todos os grandes finais).
Se gosto de imaginar este instrumento, é porque com ele é possível tocar muitas das melodias que se pretenda compor. Além disso, ele resume razoavelmente a vida. Quando olho para trás, vejo que, sem margem para dúvidas, a corda que mais busquei e também a que mais vezes dedilhei foi a da verdade. Cheguei a intitular-me truth-seeker e a escrever textos a esse respeito. Só que, e penso que já o contei aqui, tive uma vez alguns alunos a quem, a propósito de umas tantas estórias da História que eu acabava de contar, coloquei a pergunta: "Esta é uma verdade diferente da que costumam ouvir. O que eu vos disse é baseado em factos reais, mas admito que saia algo cruel para nós, portugueses. Preferem a verdade ou o mito?" Nem todos responderam – a maioria eram alunas, com idades compreendidas entre os 20 e os 25 anos - mas as que o fizeram não hesitaram: "O mito!". Foi, em certa medida, uma lição para mim. A verdade total, pura e dura, não agradava. Nem agrada.
E se a música fosse tocada conjuntamente com outras cordas? Para mim, a da mentira não servia, mas era excelente para contraponto. Pensei na necessidade de outras. Aí surgiu a terceira, a da beleza. Soa bem e dá prazer tocar. O que é belo e poético é admirado pela sua perfeição e pela sua originalidade. Porém, como a vida é feita de perspectivas diferentes segundo o ângulo em que a encaremos, o momento que vivemos e as pessoas com quem a partilhamos, senti que a corda da ironia e do humor se tornava igualmente essencial. Afinal, o humor e a ironia estão entre as grandes características que distinguem o homem dos animais.
Faltavam ainda duas cordas, uma delas assaz importante: a do combate e da luta. Estamos no mundo não só para o compreender e a ele nos adaptarmos mas, principalmente, também para o transformarmos. Não somos apenas seres receptivos, passivos, somos agentes de mudança e inovação. Para isso é necessário que combatamos e nos esforcemos por ganhar a batalha, dando o nosso melhor contributo possível e sendo suficientemente sensatos para não pretender alterar aquilo que consideramos válido.
A última corda é também a primeira, a da esperança. Sem esperança, nada se almeja, os braços falecem e morremos em vida. Pior: contaminamos os outros ao desesperarmos. E, disse-o o filósofo alemão Godamer, falecido salvo erro em 2004 já com mais de 100 anos, "a única ideia que quero defender sem restrições é que os seres humanos não podem viver sem esperança." É crucial que a esperança nunca seja perdida e, pelo contrário, seja alimentada.
Daqui resulta o meu biolino, que muitas vezes me domina, mais do que eu o domino a ele. Tento puxar para um lado e ele leva-me para outro. Isso sucede principalmente, devo admiti-lo, no conflito entre a exposição nua e crua da verdade - pelo menos como eu a vejo - e a inclusão ou exclusão da mensagem de esperança. A denúncia da mentira, corda falsa mas muito toante (por vezes mesmo troante quando tocada por alguns outros), é em si uma tentativa de contribuição para um mundo melhor. E essa é uma parte importante da luta em que a quinta corda se empenha. Mas continua a ser uma verdade que o tocar demasiado forte na denúncia da mentira é, per se, cruel.
O leitor poderá questionar-se: onde está a corda do sonho, da poesia e da utopia? Bem, essa é um resultado da melodia que se toca com as cordas do instrumento. Por exemplo, a corda da verdade, juntamente com a corda da beleza - ambas bem temperadas com a da esperança - podem produzir um sonho maravilhoso. Ao qual há que dar empowerment, como agora se diz.
Este é um instrumento tão fácil de tocar como outros. A música que dele se pode tirar é praticamente infinita. O agrado da melodia por parte dos que a ouvem é que pode ser literalmente diferente. Tudo, afinal, depende muito dos ouvidos de quem escuta. Por outro lado, tocar só para nós não faz sentido. "O meu amigo, o outro, não é senão a outra metade de mim próprio." Fazer de nós apenas uma metade e partilhar a outra com a audição do mundo é um conceito importante. Tal como pensar, como há dias ouvi numa conferência, que existe uma enorme diferença entre o cartesiano "Sou, logo existo" e o "Sou, porque tu és".
Eis umas meras reflexões biolínicas de um sentipensante, como nós humanos por natureza somos.

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