9/09/2007

Mil e um casos de português-em-itálico

En passant, deixem-me dizer-vos que o mois d’août foi mais calmo do que o habitual. Com algum spleen à mistura, disfarçado apenas por trabalho q.b. - produto do que chamo "ociofobia" em vez de "workaholismo" - , afastei um eventual stress, embora não me tenha conseguido desligar dos media e das suas notícias sobre os arreliadores aumentos do spread bancário. Ouvi falar das agências de rating a propósito disto e daquilo, e dos problemas que os governos têm com as contas off-shore. Deliciei-me, entretanto, a ler o O’Neill blagueur ("na mediania é que está a sensaboria"), a Isabel Stilwell que nos trouxe uma Filipa de Lencastre com caché e glamour intelectual, os (altos) Gritos contra a indiferença do Fernando Nobre (AMI), e arranjei ainda tempo para reler O que diz Molero, i.e. o top de Dinis Machado.
Além disso, aproveitando aqui e ali o oco das férias, comecei em jeito de puro diletantismo a listar umas tantas palavras - como as usadas acima - que surgem geralmente em itálico, de origem estrangeira, e que não só empregamos em conversas de café como encontramos em artigos e notícias de jornal ou revista, ou ainda em livros e na televisão. A certa altura da minha listagem, que recebeu a colaboração de familiares, comecei a verificar que o número excedia claramente aquele que eu a princípio imaginara. Chegado ao número redondo de 200, disse para mim próprio que mil e um vocábulos proporcionariam um manancial bem mais interessante e significativo como amostra que me permitisse chegar a algumas conclusões. Só que passar de duzentos a mil não se faz com um mero estalido dos dedos! Recuperei a minha própria lista de frases latinas e, aos poucos, vi que conseguia ultrapassar os quinhentos itens. Atingir o milhar acabou por ser uma questão de tempo. Juntei os termos estrangeiros que consegui encontrar - ficaram de fora ainda muitos outros, como seria previsível -, e elaborei uma tabela em Word, que está ao dispor de quem a pretender (basta dizê-lo aqui ou contactar-me no jmolive@netcabo.pt.) Em termos de tamanho, a listagem representa algo entre 40 e 50 páginas. Na maioria dos casos, defini eu próprio os termos, ilustrando com um exemplo sempre que possível. Noutros, recorri a um dicionário da Porto Editora que tinha na casa da Praia.
E já que falo em dicionário, saliento que foi com verdadeiro prazer que encontrei numerosas expressões e vocábulos estrangeiros listados no corpo principal do dito, juntamente com as mais antigas palavras do nosso léxico. Isto significa um reconhecimento do seu uso na linguagem de todos os dias, pelo menos por parte de determinados grupos sociais. Um velho tabu nacional parece-me definitivamente quebrado: o nosso alfabeto já tem 26 letras e não apenas 23, como sucedeu durante décadas e décadas. O k, o w e o y são adoptados como letras usáveis em textos portugueses, muito embora o sejam em termos de origem estrangeira.
Se há línguas que opõem uma enorme barreira à entrada de vocábulos estrangeiros, a língua portuguesa não é certamente uma delas. Por um lado, ainda bem! E qual será o motivo principal que explica a importação de tantos vocábulos? Além de outras razões que este espaço não consente que eu aqui refira, creio que existe uma que é transversal às restantes e se lhes sobrepõe. Chamar-lhe-ei "o princípio da economia", algo que é facilmente explicável. O princípio da economia leva-nos a escolher a forma mais económica de fazermos ou dizermos as coisas. A língua inglesa, da qual temos nas últimas décadas importado um número muitíssimo apreciável de novos termos, é, grosso modo, mais económica do que a portuguesa. Porquê? Porque a sua costela germânica lhe confere um maior poder de síntese. Vejamos um exemplo das centenas que poderiam ser citados. Se estivermos a ler um artigo sobre empresas e nos depararmos com a expressão "a six-woman board", entenderemos facilmente que se trata de um-conselho-de-administração-composto-por-seis-membros,-todos-eles-mulheres. Ao compararmos aquela sintética expressão inglesa com a sua correspondente portuguesa, verificamos que a versão inglesa é muito mais curta. Não quer isto dizer que a adoptemos porque se trata de algo estruturalmente diferente, mas da compreensão deste facto podemos concluir que quando estamos perante uma palavra estrangeira nova e compreendemos sem grande dificuldade o seu significado, inferimos que a nossa tradução, analítica, vai ser mais longa e complexa. Aí, por razões de economia, optamos pelo termo estrangeiro.
Repare-se, por exemplo, que quando dizemos "um after-shave", estamos apenas a dizer "um depois do barbear". Então, e a especificação de que se trata de um creme, de uma loção ou um perfume? Suprimimo-la por razões de economia. Da mesma forma um soutien-gorge ficou reduzido a soutien. Chega. Na mesma ordem de ideias, dizer "um spread" significa sintetizar montes de coisas. Porquê empregar frases longas se uma palavra tão curta exprime aquilo que queremos dizer? Semelhantemente, se stress nos dá a perceber do que se trata e é uma palavra tão pequena, porque não adoptá-la?
Vejamos o caso de outro ângulo. Os portugueses adoram a sua palavra "saudade". Uma das razões por que a reverenciam é pela riqueza de conceitos que ela encerra e pela concisão com que esses mesmos conceitos são expressos. Ora, é este mesmo facto - entre outros motivos - que nos leva frequentemente a escolher termos estrangeiros e a nacionalizá-los depois. É assim que, prosseguindo com um dos exemplos acima, podemos sentir-nos stressados, consideramos stressante um determinado trabalho e vamos para férias para destressar.
Tomemos outro exemplo: street-racing. Em português, street-racing significa corridas-ilegais-de-automóveis-na-via-pública. Se calhar concordamos quase todos que é mais prático empregar street-racing. Porém, é evidente que muitos portugueses ficam de fora deste vocabulário (fosso geracional, por um lado, e fosso educacional, por outro). Não tenho infelizmente possibilidade de analisar o efeito deste dois "fossos" (gaps) no curto espaço de um post, mas o assunto poderá ficar para comentários.
Entretanto, quais são as principais origens dos itálicos portugueses? A maioria dos estrangeirismos da tabela das mil e uma palavras e expressões que sumariamente elaborei provém da língua inglesa, embora não necessariamente de Inglaterra. A seguir vêm os léxicos franceses e depois as expressões latinas. A grande distância, chegam-nos italianos e alemães. As palavras e expressões de origem castelhana no português são relativamente raras.
O latim, que já foi outrora uma língua franca como o inglês é nos dias de hoje, surge em citações de Cícero, Ovídio, Horácio, Júlio César, etc. A área singular mais notada é possivelmente a de Direito.
O francês tem, no que toca a importações pela nossa língua, raízes bem mais antigas que as do inglês. Os seus domínios principais são a moda, a cosmética e a culinária. Está, no entanto, a perder terreno para o inglês. Será interessante pensarmos que o rouge de há anos foi substituído pelo blush de hoje, e que a maquillage está a encontrar um sério rival no make-up. Por outro lado, note-se que na altura em que o desporto do boxe entrou em Portugal, ainda com a França como nossa ama-de-leite, não só o -ing (boxing) do nome original inglês não foi incluído, como o praticante de boxe se chamou boxeur (havia quem lesse bóksiúr). Ora, muito mais recentemente chegou-nos o kickboxing, já com o –ing, sendo o respectivo praticante um kickboxer e já não um kickboxeur. Sinais de mudança...
Por seu lado, o inglês é altamente visível no léxico nacional nas áreas do desporto, da informática, da música moderna, da economia e da finança. E cada vez mais!
Já antecipa, caro leitor, que se quiser enriquecer a listagem acima mencionada com mais uma dúzia de termos ou com correcções, a gerência agradece. Fazemos assim uma espécie de wiki à la diable. Para terminar, aqui vão cerca de cem das mil e uma palavras e expressões que encontrará na tabela, a qual é, of course, mais uma lembrança para os amigos - ad usum amicorum - do que propriamente um estudo científico: software, hardware, back-up, clicar, printar, body-building, baby-sitting, spread, dumping, benchmarking, blue chips, rappel, ranking, rating, time-sharing, leasing, factoring, franchising, merchandising, marketing, p.o.s. (point of sale), plafond, partner, C.E.O., overbooking, outsourcing, players, insider trading, rooming-list, check-list, scorecard, affaire, blague, blagueur, parti-pris, paparazzi, nickname, nouveau riche, lingerie, soutien, collants, boxers, slips, rouge, blush, pourboire, tip, overdose, maquillage, make-up, mutatis mutandis, ad hominem, ridendo castigat mores, quot abundat non nocet, modus operandi, modus faciendi, modus vivendi, à contre-coeur, avant-garde, à la page, up-to-date, state-of-the-art, à vol d’oiseau, avant la lettre, enfant terrible, show-off, malgré tout, um must, naïf, réveillon, rentrée, rendez-vous, surf, kickboxing, doping, anti-doping, health club, hydrobike, step, keeper, off-side, m.v.p., sprint, sprintar, sprinter, slalom, karting, bavaroise, pudim, consommé, raviolli, risotto, évasé, tailleur, chic, ménage à trois, start-ups, reset e bingo!

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