9/25/2007

Vermelho, encarnado ou rubro?

Quem leva já umas boas décadas de vida apercebeu-se decerto de uma mudança significativa relativamente ao Benfica. Não me refiro ao facto de a equipa não ser já a vencedora habitual dos jogos que disputa. Tão pouco àquela característica que foi apanágio do clube durante muitos e muitos anos de fazer alinhar apenas jogadores portugueses. A mudança que menciono também não tem a ver com o exemplo acabado do multi-culturalismo português que o Benfica constituía, com muitos jogadores oriundos das então províncias ultramarinas de Moçambique e Angola. A História fez com que esses traços característicos desaparecessem, um após outro. Ficou, entretanto, a glória do Benfica, o mito que ainda faz arrastar multidões aos estádios ou a visionar jogos através da televisão.
A alteração substancial a que aludo tem a ver com a simbólica cor das camisolas dos jogadores e, consequentemente, do clube. Salazar, que não gostava especialmente de futebol mas que dele se aproveitou inteligentemente tal como Franco fez relativamente ao Real Madrid, elegeu o Benfica como símbolo da Nação. Os dois maiores clubes de Lisboa tinham, aliás, as cores da bandeira portuguesa. Mas havia, e há, menos verde na bandeira do que encarnado.
Aqui chegamos, finalmente, ao encarnado. Porque não vermelho? Porque, em tempos de feroz anti-comunismo, a cor vermelha era exclusiva dos países de Leste. O Estrela Vermelha, da cidade de Belgrado do então general Tito, tinha essa designação em português porque provinha de um país comunistóide. "Vermelho" era palavra mais ou menos banida em Portugal. Os sinais de trânsito eram três: verde, amarelo e encarnado. "Encarnado" é palavra ligada, obviamente, a carne e à encarnação de Deus que se assumiu na forma humana de Jesus Cristo. Logo, encarnado é palavra boa. Assim como o Bairro da Encarnação e várias igrejas da Encarnação espalhadas por todo o país.
Nas línguas que conheço melhor, não encontro sinónimos directos como em português para esta cor. Red, rouge, rojo, rot. E pára aí. Em Portugal, não. Encarnado, vermelho e, ainda, rubro (cor não só de sangue, mas de fogo).
Hoje em dias os sinais de trânsito já não são apenas encarnados ("Olha que está vermelho!"), a nossa bandeira "verde-rubra" já tem para alguns verde e vermelho e, imagine-se, o Benfica tem uma claque que se intitulou de "diabos vermelhos". Por um lado, está bem. Se Deus é encarnado, o diabo bem que pode ser vermelho. Mas Salazar nunca consentiria que a claque do símbolo futebolístico da sua nação ("Nação") tivesse o nome de "diabos" e, muito menos, "vermelhos". Vade retro, Satanás! Abrenúncio! (A verdade é que "diabos encarnados" não daria. Seria misturar o diabo com a encarnação numa batalha encarniçada.)
Mudanças do pós-25 de Abril, que ocasionaram, entre outras, esta camaleónica mutação dos dizeres das cores. Há coisas do diabo, não há?

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