Com um artigo interessante, o jornal Público voltou ontem ao tema dos ficheiros da PIDE existentes na Torre do Tombo. Referiu-se ao que pessoas sentiram quando compreenderam que a sua vida tinha sido devassada pela polícia política: cartas interceptadas, conversas narradas por informadores, fotografias eventualmente comprometedoras, tudo que poderia ser usado contra uma pessoa apanhada pelas garras da polícia.
Foi em Outubro de 1998 que tive acesso aos meus documentos-PIDE, depois de ter pedido a sua consulta em Fevereiro. Desconhecia em absoluto se teria lá alguma coisa. Os meses que medearam entre o meu pedido e a leitura dos documentos que me foram facilitados ficaram a dever-se à necessidade de expurgar as minhas (e muitas outras) fichas de informações e denúncias assinadas por pessoas ainda vivas, o que a lei (correctamente) não permite. No gabinete de expurgo trabalham apenas três pessoas para fazerem todo o trabalho.
Na altura em que recebi o material, não fiquei muito surpreendido porque tinha ideia daquilo e de muito mais. Mas fiquei revoltado, como seria natural. Entre as treze fichas que me diziam respeito, encontrei uma sobre a emissão do meu diploma de ensino particular. Conforme pude verificar, se a informação do Chefe da Brigada de Arroios, em Lisboa, não tivesse sido que "Moral e politicamente nada consta em seu desabono", o diploma não me teria sido passado. Todo o meu investimento no curso da Faculdade de Letras ficaria invalidado para efeitos de ensino se a informação fosse negativa. É angustiante chegar a esta conclusão. Na eventualidade de eu ter manifestado publicamente uma opinião contrária ao regime - o que teria sido perfeitamente normal num país livre - o poder tinha a possibilidade de não assinar o diploma e, assim, impedir que qualquer instituição me contratasse. Este é um exemplo típico do totalitarismo português. Para o Estado, eu não era eu, um homem livre e adulto, mas sim uma pessoa que ao regime tinha de subjugar a sua mente.
Uma outra informação solicitada à PIDE, neste caso através do Comandante do Posto da GNR de Oeiras, relacionou-se com a minha entrada como oficial miliciano para o Estado-Maior do Exército, em Lisboa. O Comandante do Posto informa num português pouco ortodoxo que "segundo a conclusão a que cheguei gozava de muita simpatia no lugar onde murou (sic) e não tinha ideias contrárias ao actual Regime." O curioso é que eu tinha ideias contrárias, embora não fosse por natureza um revolucionário activo. Tinha, por outro lado, algum cuidado natural sobre quando e com quem manifestava essas ideias.
Mesmo quando em 1957 me candidatei a um exame para guia-intérprete oficial no Secretariado Nacional da Informação, o SNI solicitou informação à PIDE, que a endereçou ao Presidente da Câmara da terra onde nasci. A resposta assinala que "não tem hostilizado a actual Situação Política nem manifestado ideias subversivas." Note-se as maiúsculas reverenciais utilizadas talvez subconscientemente para "Situação Política".
No dia em que li a documentação na Torre do Tombo, cheguei a casa e escrevi umas linhas sobre o assunto. Este foi um dos parágrafos: "O cerco era quase total. Ganho agora verdadeira consciência de que por vezes arrisquei bastante. Durante a guerra colonial em Angola, por exemplo, tive discussões abertas de carácter político, que felizmente não chegaram aos ouvidos da PIDE - a não ser que estejam no dossier que "ainda é cedo para consultar".
Nessa altura, eu ainda não sabia o que sei hoje, mas já tinha recebido a informação na própria Torre do Tombo de que existia um boletim muito maior e detalhado sobre mim, ao qual não poderia ter acesso porque nele estavam mencionadas várias pessoas ainda vivas. É, afinal, um dossier que nunca lerei.
Uma surpresa posterior, e grande, chegou-me há cerca de dois anos apenas, quando o comandante da minha Companhia em Angola, um bom amigo de há mais de quatro décadas, me revelou em conversa na minha própria casa que mesmo antes de partirmos para África ele tinha recebido um ofício da PIDE comunicando-lhe que eu era um elemento que devia ser vigiado. Isto significa, evidentemente, que durante todo o tempo da minha prestação de serviço militar em Angola muitas das minhas cartas foram abertas e lidas e algumas das minhas conversas terão sido transmitidas à polícia política. Tudo estará registado no tal dossier.
Enfim, o pesadelo acabou, mas não é nada que não possa voltar um dia. Só falei nele agora por causa do artigo do Público. Mesmo assim, permito-me recordar uns conhecidos versos de Maiakovski:
Na primeira noite,
Eles aproximam-se
E colhem uma flor do nosso jardim.
E nós, não dizemos nada.
Na segunda noite,
Já não se escondem,
Pisam as flores
E matam-nos o cão.
E nós, não dizemos nada.
Até que um dia
O mais frágil deles
Entra-nos pela casa dentro
Rouba-nos a lua
E, conhecendo o nosso medo,
Arranca-nos a voz da garganta.
E porque nunca dissemos nada
Já nada podemos dizer.
Sem comentários:
Enviar um comentário