Há muitos anos já, fui um dia dar uma vista de olhos à Península da Arrábida e parei no Cabo Espichel. Sobre as rochas estavam estendidos vastos lençóis de algas, retiradas do mar ali perto. Depois de convenientemente secas, as algas seriam vendidas a uma de duas fábricas japonesas que existiam na zona, as quais procediam à sua transformação em vários produtos de elevado valor acrescentado. Um pescador que ocasionalmente serviu de meu informador contou-me que naquela altura não estava a ir ao mar porque o negócio da apanha das algas lhe era muito mais rentável. "A sardinha", disse-me ele, "desapareceu destas bandas." Alguém que ouviu parte da conversa veio confirmar-me que a sardinha tinha de facto desaparecido e ido para outros lados. "Sabe, a sardinha vinha aqui alimentar-se de peixinhos pequeninos, que por sua vez se alimentavam de algas. Como as algas estão a ir à vida em grandes quantidades, já não temos aqui esses peixinhos e, por seu lado, as sardinhas não vêm também. Elas não vinham cá fazer turismo. Desapareceu-lhes a motivação que as trazia aqui ao Cabo e, portanto, zarparam para outras paragens."
É. Tudo depende de tudo. As coisas estas encadeadas umas nas outras. Às vezes uma determinada acção ou medida pode transformar radicalmente as coisas. A história da sardinha, igual a tantas outras, ocorreu-me a propósito do que está presentemente a acontecer na sociedade chinesa. Em 1979, com a finalidade de suster o desenvolvimento incontrolado da sua população, o governo chinês decretou a política de um casal = um filho. Agora em 2008, cerca de trinta anos depois, as consequências dessa medida - muitas delas imprevistas - são bem visíveis, e de tal forma que, pouco a pouco, se tem verificado uma maior abertura por parte das autoridades chinesas. Recordo-me bem que, oito ou nove anos depois da implantação dessa política, os professores das escolas primárias oficiais começaram a queixar-se do "síndroma do pequeno imperador", tema que aliás cheguei a debater em aulas com alunas minhas. Em resumo, sucedia que se tinha passado da família chinesa numerosa, em que uns miúdos tratavam dos outros, para a existência de apenas uma criança na casa. Esta era, ainda por cima, geralmente um rapaz, já que muitas bebés tinham sido abortadas devido à preferência dos casais por rapazes. Os professores da escola primária queixavam-se de maior insubordinação nas suas aulas, de lutas entre os pequenos imperadores. A obediência tradicional das crianças estava a desaparecer. Havia ali uma mudança substancial.
Anos mais tarde, o exército notou a mesma coisa. A cega obediência que era apanágio das tropas chinesas estava a dar lugar a uma certa insubordinação, que as forças armadas não toleram nada bem.
Hoje em dia, o problema é outro: quem cuida dos pais que começam a ficar velhotes? Como a China não possui sistema de segurança social capaz de responder a tanta gente, o problema agudiza-se. Os filhos estão a negligenciar a tradição milenária de amparar os seus pais devidamente. A nova vida que levam, mais urbana que rural, não lhes permite dispensar os mesmos cuidados. Estes, diga-se, ficavam na maior parte dos casos a cargo das filhas: as mulheres têm outra forma, mais desvelada, de cuidar quer das crianças, quer dos idosos. Neste sentido, é curioso ver que um inquérito recentemente realizado em Pequim já fez ressaltar, pela primeira vez, que os casais estão a mostrar uma ligeira preferência por filhas relativamente a filhos. Colocar os pais num lar hoje em dia ainda representa uma situação ignominiosa para uma família chinesa, mas é de crer que a antiquíssima tradição de os mais novos cuidarem dos mais velhos venha gradualmente a cair. Entretanto, renasceu parcialmente o costume feudal de adoptar filhos adultos - mulheres, como é evidente.
Algo curioso também é o facto de muitos casais preferirem hoje, em resultado do aumento do custo de vida e urbanização da China, terem apenas um filho, sendo que um número considerável (25 por cento dos inquiridos) preferiria até não ter qualquer filho a fim de poder juntar mais dinheiro: é, no fundo, o conhecido estilo DINK americano: double income, no kids.
Muito mais haveria a dizer sobre o assunto, mas o que importa reter é o efeito dominó-espiral de determinadas medidas. Quer se trate de sardinhas, de pessoas, de veículos motorizados ou de produtos alimentares, há certas políticas que têm de ser muito bem sopesadas antes de ser implementadas. (Por que é que havia de me lembrar agora da medida tomada há uns anos atrás por alguns países, com grande relevo para os Estados Unidos, de invadirem o Iraque?)
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