5/23/2008

E agora, José?

O acordo ortográfico da língua portuguesa foi aprovado no passado dia 16 na Assembleia da República por deputados que cumpriram ordeiramente a habitual disciplina partidária. Honra seja feita a Manuel Alegre, o único socialista que votou contra. Votaram no mesmo sentido apenas três outros deputados, cujo posicionamento apreciei. Abstiveram-se, seguindo também a tradicional linha de obediência partidária, todos os deputados comunistas e os Verdes. É uma votação que mostra, com forte dose de probabilidade, algo que há muito se sabia: que os deputados estão longe de representar com verdade o povo deste país. Uma mudança ortográfica desta dimensão mereceria sem dúvida um referendo - democracia directa - , mas se o próprio Tratado Europeu não foi referendado, como é que alguém poderia pretender isso?
Foram utilizados argumentos de "facto consumado" e, logo à partida, tratava-se de algo que estava na realidade consumado. Prova evidente foi a preparação durante mais de um ano do dicionário da Texto Editores já com o novo léxico ortográfico acordado. A sua publicação antecedeu a votação. Lindo!
Custa-me a mim, e a milhares de outras pessoas que não se revêem na medida, reparar na insensibilidade demonstrada quanto à ortografia do nosso idioma, despachada como se fosse coisa de somenos. Nalguns casos, não terá sido insensibilidade mas puro desconhecimento. O que se fez foi cortar raízes algo à toa - não para servir alguma causa nobre mas, basicamente, para criar alguma uniformidade ortográfica com o português já usado na antiga colónia lusa do Brasil. Como se este acto fosse dar verdadeira uniformidade à língua! As raízes de uma língua são, em parte, como as raízes das plantas. As que são inúteis e provadamente desadequadas podem cortar-se, mas não assim. Sempre quero ver se os brasileiros adoptam as poucas mudanças que o acordo lhes ordena.
Ainda há dias encontrei a palavra "suntuoso" num texto com origem do lado de lá do Atlântico. Confesso que à primeira vista não entendi o significado. Depois, compreendi que se tratava de "sumptuoso". Parecia-me que era de unto que se falava! A partir de agora - o dicionário Universal da Texto Editores dixit - nenhum professor pode considerar que o aluno erra ao escrever "suntuosidade". Mas se escrever "sumptuosidade" também estará bem. Ora bolas para a uniformidade! Com medidas deste tipo, sucede que uma língua de estrutura anglo-saxónica como o inglês passa a transcrever mais fielmente a etimologia das palavras latinas na sua ortografia que o nosso português, que é uma língua neo-latina! A partir de agora passamos a usar na nossa escrita centenas de palavras tropicalizadas. É uma tribalização completa e uma situação verdadeiramente ridícula!
No início do prefácio do novo dicionário da Texto Editores leio, e pasmo: "O português era, até aos dias de hoje, a única língua viva e expandida no mundo ocidental que, surpreendentemente, mantinha duas ortografias oficiais." Não só isto não é verdade - as substanciais diferenças ortográficas entre o inglês britânico e o inglês americano atestam-no à saciedade -, como sucede uma outra coisa: o português passa a ser, ortograficamente, a única língua - tanto quanto eu sei - em que a antiga mãe-pátria curva a cerviz perante o jugo de uma ex-colónia, que no nosso caso é o Brasil.
Pelo meu lado, tenho tentado mostrar neste blog que as línguas são algo de belo, interessante e mesmo apaixonante. Ousar mexer-se num idioma como se estivéssemos a falar de uma lei fiscal é demonstrativo de um enorme desrespeito pelo povo. E vêm depois falar em valores! Respeito todos aqueles deputados que, convictamente, aprovaram uma medida com a qual concordavam. Contra esses, nada tenho. Para todos os outros que actuaram como correia de transmissão das ordens dos respectivos partidos, vai o meu total desprezo. O frete que terão feito leva-me a descrer ainda mais desta alegada democracia.
Para colocar a estrela ditatorial no topo do edifício, o novel Ministro da Cultura portuguesa declarou à imprensa que o propalado prazo de diferimento de seis anos para consolidação do processo não tinha qualquer razão de ser. Aprovada a lei, esta é para ter efeitos imediatos! O Brasil já declarou a sua efectividade a partir de Janeiro de 2009. Está consumada uma parte significativa da vingança brasileira pelos ultrajes da nossa colonização.

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