A casa onde nasci, na província, não era exactamente como a maioria dos apartamentos citadinos de hoje. Posuía uma área comercial ao longo de todo o rés-do-chão, um 1º andar amplo com numerosas divisões e um sótão que impressionava pelo seu vasto espaço - sem qualquer divisão. A este sótão acedia-se por uma escada de dois lanços, dos quais o primeiro tinha um número maior de degraus. "A escada do sótão" era uma expressão usada com relativa frequência lá em casa para este primeiro lanço. Porquê? Porque os seus largos degraus de madeira permitiam que lá se efectuasse o depósito de algumas pequenas coisas, nomeadamente sapatos que, tendo sido já usados, não estavam exactamente em bom estado mas que, pensando bem, ainda suportariam algum uso se isso se tornasse necessário. Verdade se diga que o princípio não era errado. Mais do que uma vez fui lá buscar sapatos de ténis que, em comparação com os que eu tinha calçados naquela altura, estavam em francamente melhor estado.
Por que motivo me ocorre várias vezes na situação política a história da escada do sótão? Porque geralmente os políticos que nos governam não são substituídos por outros impecavelmente novos e claramente melhores, mas sim por carreiristas partidários de nível algo mais baixo. Quando Cavaco Silva saiu de primeiro-ministro, incapaz de cumprir as promessas que tinha feito e de conduzir o país à prometida salvação, não foi deitado fora de vez mas sim colocado na escada do sótão. Em reserva e com tabu. Foi substituído por um Guterres inteligente e bem-falante, que a certo momento, porém, se viu envolvido nas malhas do seu próprio partido e um dia abalou, desanimado e desgostoso. Mais um para a escada do sótão. Durão Barroso, que lhe tomou o lugar por voto do povo devido ao sentimento anti-guterrista que se tinha criado, não se deu bem com a governação. Quando foi convidado para Bruxelas, só na aparência terá hesitado. Nomeou então o seu lugar-tenente Santana Lopes para lhe suceder, continuando assim a dinastia partidária. Santana já se tinha mostrado também como elemento bem-falante. Governou alguns meses como primeiro-ministro, o suficiente para comprovar à saciedade que um indivíduo no poder com inexperiência e criatividade se torna um elemento perigoso. Foi demitido ao fim de um tempo que foi objectivamente curto, mas pareceu uma eternidade para muitos. Mais um para a escada do sótão! Sócrates, igualmente com verve televisiva e discurso fácil, sucedeu-lhe e, em razão da péssima prestação do seu antecessor, logrou até obter maioria absoluta. Surpreendendo muitos de início com medidas acertadas mas dolorosas, está presentemente confrontado com fortes oposições populares depois de um relativamente longo estado de graça. Será que as próximas eleições o atirarão também para a escada do sótão? Desta, entretanto já foram retirados Cavaco Silva, actual Presidente da República, Guterres, que foi nomeado Alto-Comissário para os Refugiados pelas Nações Unidas, e Santana Lopes, que se está a candidatar para líder do principal partido da oposição.
Acho que lá em casa tiveram razão quando instituíram aquele lanço de escada como alternativa ao caixote do lixo. Caso a situação piorasse muito, mesmo o sapato semi-gasto acabava por estar melhor do que o que tínhamos calçado. Lamentavelmente, é tudo uma questão de plano inclinado.
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