5/07/2008

Mais ou menos subrepticiamente, cá vão entrando

Como professor de inglês, enderecei regularmente aos meus alunos vários avisos à sua navegação linguística, na medida em que há palavras que parecem ser uma coisa e de facto são outra. O curioso é que vários desses termos ingleses (anglo-americanos) que há anos eu ensinava como falsos amigos acabaram por entrar na nossa língua, mais ou menos subrepticiamente. O qualificativo dramatic é um bom exemplo. Eu costumava alertar para o facto de que dramatic não correspondia ao significado português de "dramático" mas sim ao de "brusco"ou "repentino", e ainda de "excitante" ou "movimentado". Ora bem! Hoje lemos com frequência nos jornais que se registou “uma subida dramática das acções da bolsa”.
Energetic era outra dessa centena ou mais de palavras que podem confundir os portugueses. Por meu lado, explicava que em inglês não se dizia "energic", como os alunos poderiam esperar, mas sim energetic (activo, enérgico, determinado). Pois bem! Presentemente, já oiço dizer “ela é muito energética”.
Global, por ser igual graficamente à palavra portuguesa “global”, poderia levar os alunos a pensar que o significado era idêntico quando isso não corresponde à verdade, como por exemplo em "uma apreciação global", que é an overall appraisal. Actualmente, o inglês global substituiu o português "mundial" em casos que todos conhecemos, como "à escala global".
"Afluente" costumava usar-se em português para um rio que desagua num outro maior. Este significado mantém-se, mas já oiço e vejo muitas vezes o termo "tributário" (do inglês tributary) para o mesmo efeito; por outro lado, "afluente", quando usado como qualificativo, passou a ter o significado do adjectivo inglês affluent, como vemos em affluent society (sociedade afluente, i.e. abastada, rica).
A expressão portuguesa "deitada abaixo" ou "de rastos" está a ser gradualmente complementada com uma tradução directa do inglês devastated, como se vê no exemplo "a coitada da Francisca deve estar devastada".
Uma tarifa que é igual para todos os casos seria normalmente em português "uma tarifa única". Pasme-se: como os ingleses e americanos usam flat rate, que tem este mesmo significado, em português já há muito que vejo "tarifa plana" e "taxa plana".
Também "bilião" é palavra que se usa cada vez menos em português devido a diferenças na palavra billion entre o Reino Unido (= um milhão de milhões) e os EUA (= mil milhões). Agora costumamos usar "mil milhões", o que acaba por se justificar para evitar graves erros numéricos.
Eventually, que significa "por fim", "acabar por", ainda não encontrou até agora paralelo no "eventualmente" português, mas não é impossível que seja uma das nossas próximas aquisições.
Uma palavra que já começa a fazer carreira nas nossas veredas linguísticas é "expatriado". No domingo passado, alguém que falava comigo sobre Angola contava-me que um amigo seu tinha ido morar para lá: "Mesmo para os expatriados a vida não é fácil. Ele demora cerca de três horas a percorrer o caminho (12 km.) de casa até ao centro de Luanda, onde trabalha." Dantes dizíamos sempre "emigrantes", mas é um facto que os americanos falam de expatriates ou, na forma abreviada, de expats.
To be supposed, que tem vários significados, v.g. "dever" e "esperar-se que" entrou também já há muito na língua portuguesa em tradução directa, o que faz com que digamos com a maior das naturalidades que "não somos supostos revelar os termos da nossa conversa com o presidente".
Por influência do you inglês, que em muitos casos corresponde ao nosso "nós" e a "se" no significado de "a gente", hoje dizemos muito vulgarmente "na Índia, tu/você entras/entra numa loja e és/é imediatamente abordado por um empregado". Há uns anos dir-se-ia "Na Índia entra-se numa loja e..." ou "a gente entra numa loja e..." Estas duas formas ainda hoje se empregam, mas a outra não era comum.
Mesmo em matéria de interjeições, oops! entrou definitivamente no nosso vocabulário (às vezes escreve-se "ups") e já ouvi muito ouch! em vez de "ai!" ou "ui!". Quanto a wow!, então nem se fala.
Para não prolongar muito estes exemplos, terminemos com o yeah!, que se tornou normal em afirmativas. Curiosamente, por razões eufónicas, se o yeah é seguido por outra palavra não se diz "yeah, pá", mas sim "yeah, meu" ou outra coisa qualquer. Ainda neste domínio, é interessante notar que a resposta portuguesa a uma pergunta que dantes usava geralmente o verbo da própria pergunta, v.g. "Podes fazer isso amanhã?" "Posso.", hoje transformou-se frequentemente em "Sim!", à maneira inglesa, v.g. "Vais amanhã para o Porto?" "Sim!".
Considero absolutamente normal o que está a suceder ao português-língua-viva. Em sociedades dinâmicas, a língua, como fenómeno social, é normalmente alvo de alterações e variantes como estas. Aliás, é assim que as línguas se vão formando ao longo dos séculos e dos contactos com outras culturas.
Entretanto há uma notícia bastante curiosa que não resisto a incluir aqui sobre o pragmatismo inglês e que mostra que Napoleão tinha razão quando dizia que para os ingleses os negócios estão acima de tudo. Considerando que o inglês se tornou indubitavelmente a lingua franca dos nossos dias à escala mundial, muitos negócios são tratados em língua inglesa. Com isso, os negociantes cuja língua materna não seja o inglês estão em clara desvantagem. Esta desvantagem é ainda mais acentuada sempre que, por exemplo em conversa durante um jantar, o inglês/americano/australiano usa expressões claramente idiomáticas, que geralmente não estão ao alcance de um estrangeiro, por muito razoavelmente que este domine a língua. Torna-se óbvio que o uso desse tipo de expressões não cai bem aos empresários que não são de língua inglesa na medida em que os coloca numa base de inferioridade relativa. Esse facto pode levá-los mesmo a preferir outros parceiros comerciais, mais simples e acessíveis na sua linguagem. É aqui que surge em Londres a Canning School, que prepara executivos na utilização de um conjunto de expressões que são mais compreensíveis para estrangeiros do que as suas frases mais coloquiais. Business is business. Assim, em vez de put off dever-se-á usar postpone, no lugar de pull out all the stops dir-se-á make every possible effort, educate será preferido a bring up, etc. Ao todo, são cerca de 1500 palavras e expressões coloquiais inglesas que devem ser deixadas para trás nas negociações. Pragmatismo acima de tudo. Cunning school, right?

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