6/29/2008

Como pode um S ser simultaneamente igual e diferente de outro S?

Ainda antes da campanha para a Presidência da República em França, Sarkozy avistou-se com Sócrates e elogiou-o abertamente pela sua acção política. Agradou-lhe a forma como, sem contestação de maior, Sócrates conseguiu não só pôr fim a várias situações de claro privilégio lesivo do Estado, como logrou introduzir reformas de vulto na Segurança Social.
Após um primeiro ano algo atribulado como Presidente, desde Maio último que Sarkozy se está a empenhar a fundo num vasto conjunto de reformas. Aproveitando o tempo estival em que muitos trabalhadores estão fora, Sarkozy assesta toda a sua artilharia naquilo que prometeu ao eleitorado francês. Baseado num relatório que ele próprio encomendou a uma comissão liderada por Jacques Attali, Sarkozy joga em vários tabuleiros. Attali forneceu-lhe 316 medidas. Ele já colocou várias em funcionamento, mas é agora que ataca a sério. Começou por adelgaçar substancialmente o obeso orçamento das Forças Armadas, reduzindo estas em 54 mil postos e desactivando dezenas de instalações militares. Por seu lado, o Parlamento francês já aprovou uma lei que facilita o despedimento de trabalhadores e em Julho deverá aprovar uma outra que vai permitir às firmas negociarem horas extraordinárias com os seus empregados - um golpe mortal na muito propalada semana-de-35-horas. Na calha está também legislação que vai permitir que os funcionários públicos sejam recolocados noutros departamentos estatais, ao mesmo tempo que se opera a redução dos efectivos através da não-substituição dos que saem. O Serviço Nacional de Saúde vai ser objecto de medidas drásticas a fim de sanar o seu crónico défice. Nas escolas, os professores viram substancialmente aumentado o número das suas horas de permanência. Em nome da sacra concorrência, mesmo leis antigas que protegiam o pequeno comércio têm os seus dias contados.
Mais coisa, menos coisa, todo este panorama soa a algo familiar para quem tem vivido em Portugal na era de Sócrates. O interessante é o facto de Sarkozy e Sócrates, embora tão irmãos nas suas acções, pertencerem a famílias políticas bem diferentes: um foi eleito pela direita - derrotou os socialistas de Ségolène Royal, como todos se lembrarão -, o outro recebeu maioria absoluta pela esquerda. Com medidas tão semelhantes, quem diria que um dos S era um socialista português e o S francês um acérrimo combatente do socialismo?

6/27/2008

Os garranos também se abatem




A notícia do abate de quatro garranos no concelho de Melgaço, a tiros de caçadeira, impressionou-me e trouxe-me inevitavelmente uma série de eventos à memória. Na última vez que estive nas Terras de Bouro e no Gerês, deliciei-me com o espectáculo dos cavalos à solta, inédito para mim em Portugal. Fui de imediato transportado em pensamento até terras de África, com outros animais como palancas, gazelas, veados e antílopes que vi inúmeras vezes a fruir todo o prazer da liberdade. Selvagem e primitiva. No Gerês, soube-me muito bem estar junto dos garranos, vê-los correr à desfilada, deparar com as suas silhuetas bem recortadas contra a linha do horizonte. Agora, de súbito, vem a notícia do abate. E, na continuação da notícia, vem a informação de que no concelho de Paredes de Coura foram mortos outros dez garranos no princípio deste mês.
É a luta entre o homem e os animais. Quando os lobos descem ao povoado, por que razão o fazem? Obviamente, porque têm fome. E por que razão têm fome? Porque a natureza lhes é adversa e os homens lhes matam a caça que é o seu alimento habitual. Javalis, pequenos animais selvagens e outros bichos deixam de ser presas do lobo para serem presas do homem. Nessa altura, os lobos atacam a aldeia em busca de alimento. É a sua luta pela sobrevivência.
Em África, muitos dos animais que nós, europeus, pretendemos preservar, destroem as lavras dos nativos. O rinoceronte preto só foi conservado num determinado país africano porque foi criada uma reserva de turismo e houve possibilidade de melhorar a vida dos cidadãos cujas aldeias ficavam dentro da reserva. Que motivação tinham os nativos anteriormente para não matarem o rinoceronte preto, que lhes arrazava o que eles tinham plantado por gosto e necessidade? Além disso, caçadores furtivos ganhavam fortunas com a venda do "corno mágico" do rino.
Pelo que leio, o caso dos garranos não sai muito deste mesmo sistema: o homem alarga os seus terrenos de cultivo e entra em colisão com os cavalos semi-selvagens que os garranos são. Estes, no seu cavalgar pelas terras fora, podem de facto destruir as culturas dos agricultores, os quais, por seu lado, entraram resolutamente por terras ainda não cultivadas em busca de mais rendimento.
Este aspecto da luta é, aliás, mais vasto: entre o homem e o homem. Quando os nativos da actual Namíbia foram quase dizimados pelos alemães no início do século XX, quando os americanos mataram milhares e milhares de índios para lhes roubarem as terras, quando os nativos da Nova Zelândia sofreram um morticínio terrível às mãos dos colonizadores, quando os aborígenes australianos quase foram extintos para que os emigrantes britânicos pudessem viver melhor, quando os americanos atacaram o Iraque para poderem aumentar a sua riqueza através do petróleo, em todos estes casos e decerto em muitas centenas de outros ao longo da História, que temos senão o mais forte a dominar e a abater o mais fraco?
Tudo isto é verdade, mas mesmo assim não posso deixar de lastimar a morte destes magníficos garranos.

6/23/2008

Na UE27, os portugueses são os que mais comem fora

Já não tenho aqui comigo o jornal da semana passada, mas lembro-me que a notícia, baseada no Eurostat, era mais ou menos assim, conforme transcrita no título. Um dos países do leste europeu detinha o recorde oposto. Os portugueses gastam em média qualquer coisa como 9 por cento do seu rendimento familiar a comer fora. A média europeia é de 3 vírgula qualquer coisa. Colocadas perante a informação em locais diferentes, pessoas conhecidas que eu, por brincadeira, questionei reagiram basicamente de quatro maneiras diferentes. Eis em súmula esses quatro pontos de vista:
1. Isso só vem mostrar que são falsas as notícias que toda a gente atira para o ar sobre a pobreza dos portugueses. Os jornais e a televisão adoram dizer que somos os mais pobres da Europa. É incrível. Querem é deitar abaixo o Governo!
2. Felizmente ainda se come barato no nosso país. Em Londres ou Paris comer fora de casa é fogo. Aqui, vá lá, vá lá, os preços têm-se aguentado mais ou menos. Se aumentarem muito, passamos a ir menos vezes.
3. Hoje em dia as mulheres portuguesas esquivam-se o mais possível a cozinhar. Estão fartas de trabalhar durante a semana, portanto é natural que queiram descansar um bocado ao fim-de-semana e fugir da lufa-lufa diária.
4. Com este comer fora, quem é que pensa em poupar dinheiro em Portugal? Isso era dantes! Depois andam sempre a tinir, ó tio, ó tio! Quando não se pode ir nem a uma tasca, é em casa que se come, que é muito mais barato. De outra forma, como é que se arranja um pezinho-de-meia para uma emergência?

Você por acaso leu a notícia? A propósito, como reagiu, ou como reagiria?

Da antecipação de vitória ao bem-te-dizia

Admito que seja a minha costela judaica a funcionar quando protesto contra alguém que proclama que determinada vitória está garantida. E protesto por duas razões. Primeiro, porque cantar de galo antes da consumação de uma vitória faz com que, em caso afirmativo, eu já não me regozije muito quando finalmente ganho. Fico privado desse real prazer. A outra razão por que essa antecipação me desgosta é também fácil de entender: se me mentalizei de que a vitória está no papo, no campo de luta não me vou esforçar tanto para vencer, tão convicto estou de que os ventos me correm de feição.
Ora, se o prazer (real) me vem de um denodado empenho para conseguir alcançar uma vitória, como poderei apreciar um prazer que é meramente virtual e surge antes de a vitória se concretizar?
Hoje em dia, o jornalismo abandonou o princípio da prudência de antigamente. Em tempos passados, os media evitavam criar frustrações nas pessoas, frustrações essas que são tanto maiores quanto mais alto se subir a priori nos cânticos de glória. Presentemente, a atitude dita positiva - que é, de facto, facilitadora - leva a que a maioria dos jornalistas dos vários meios de informação embalem numa espiral de euforia antes do evento ocorrer. E este evento tanto pode ser uma eleição política, um Prémio Nobel para um escritor português ou um campeonato de futebol.
É claro que o tam-tam dos tambores de vitória antecipada tocado pelos jornalistas tem uma clara finalidade: aumentar as vendas. Se um jornal se vende mais no dia seguinte àquele em que o Saramago ganha o Prémio Nobel de Literatura - na medida em que o comprador fica cheio de orgulho e quer saborear aquele momento de glória que sente nacionalisticamente também lhe pertencer -, é de admitir que vitórias proclamadamente antecipadas no campo desportivo também levem as pessoas compradoras de jornais a não quererem perder aquele pitéu que lhes vai encher a alma.
Terá sido Schlegel quem primeiro disse que os historiadores são os profetas do passado. Concordo. Mas profetizar o futuro, como muitos jornalistas pretendem, é que não me convence nada. Depois de fazerem o mal, fazem ainda a caramunha no caso de as coisas não correrem como pressagiaram. "Bem avisámos", dizem eles. E passam a uma análise dos contras, mostrando como é diferente a cor de um casaco quando virado do avesso. "Eu bem dizia que as coisas podiam correr mal." De súbito, o parágrafo que em reserva escreveram para terem algo em que se escorar na eventualidade de a coisa dar para o torto, vai substituir toda a imensa arengada de floreados e encómios que encheram anteriormente páginas e páginas da imprensa, programas de rádio ou de televisão. Esquecem que o amargo de boca que se sente em caso de derrota perdura muito mais tempo do que perduraria se o ambiente de euforia antecipada não tivesse sido criado. E, infelizmente, isso tem consequências no mal-estar que acaba por se gerar a nível geral.

6/21/2008

Fundamentalismos, extremismos e objectividade

A propósito do novo Museu do Oriente, escreveu-me uma amiga a elogiar o aspecto arquitectónico dos velhos armazéns do bacalhau, salientando ironicamente a qualidade daquela a que chamam "arquitectura fascista". A amiga em questão não foi de maneira nenhuma fã do salazarismo, muito pelo contrário. Contudo, não se coibiu, e bem, de elogiar a qualidade do edifício, reconhecendo também que tinha havido alterações feitas com tacto recentemente. Pego na palavra dela como bom exemplo de pessoa que, objectivamente, admite que o salazarismo que ela sempre detestou teve algumas coisas boas. Por contraste, há indivíduos que colam um rótulo de medíocre ou mau a tudo o que se passou nesse tempo. Já tenho ouvido defender que a escola de então era uma porcaria, que todas as pessoas tinham um medo horrível de falar e de serem presas e que se vivia num clima de terror. Aparentemente, nesse tempo as pessoas não davam gargalhadas francas, não se divertiam. Por antítese, tudo terá melhorado decisivamente depois do 25 de Abril.
Não vou obviamente enumerar todos os aspectos positivos e negativos, tanto do período salazarista como do actual. Mas não posso deixar de estar contra a visão de que tudo era não só mau como mesmo péssimo antes de 1974. Tive, juntamente com muitas outras pessoas, uma infância e adolescência feliz. E estive em festas animadíssimas, com gente bem disposta e pronta a divertir-se. Era outro mundo? Certamente! Mas se a censura existia, o que era mau; se não se podia falar publicamente contra o governo, o que também era naturalmente mau, não se pode daí inferir que tudo era péssimo e que a maioria das pessoas estavam ansiosas por derrubar o regime. Normalmente, esse não era o tema de conversas, a não ser para aqueles, relativamente poucos, que estavam envolvidos com os movimentos de esquerda. Para o bem e para o mal, a esmagadora maioria da população interessava-se pouco pela política.
Outro caso é o da guerra colonial. Ouvi uma vez um conhecido major do exército português dizer, numa conferência pública em que se dirigia à geração mais jovem, que nenhum dos muitos soldados que participaram na guerra colonial partiu de livre vontade. Segundo ele, terão todos partido à força, contrariados ao máximo e revoltados. Ouvi e disse de mim para mim que havia ali um exagero terrível. Fui com tropas para Angola em 1961, no ano em que eclodiu a guerra naquela colónia. Claro que não vi ninguém a bater palmas como se fosse para uma festa, mas é evidente que não estavam todos num estado de espírito de revolta. Pode dizer-se, isso sim, que havia um grande desconhecimento de verdades políticas importantes, cortadas impiedosamente pela censura daquela época. Mas, fosse pela propaganda que o regime fazia, fosse por outras razões, existia em muitos dos que embarcaram e depois estiveram comigo em África, uma noção enraizada de dever. Negá-lo é uma falsidade tremenda, uma desinformação total. Não direi que a situação fosse igual mais tarde, em 1972 ou 73, que aliás já não testemunhei, mas em 1961 o sentimento maioritário dos militares que iam para as Áfricas era de cumprimento de dever, aliado a um natural receio de serem feridos ou de não regressarem com vida.
"A guerra colonial foi tremenda para a juventude portuguesa." Terá mesmo sido? Não terá havido pessoas que gostaram de conhecer a África, a Índia ou Timor, e ficaram mesmo encantadas com isso? Que tiveram uma enorme abertura de espírito por verem terras diferentes, com culturas diversas? Ou ficaram todos com traumas? São fascistas também?
O fundamentalismo leva a generalizações que cabem inteirinhas nos idola de Bacon. Dizer que "o português é sempre assim" não é mais do que meter todos os portugueses no mesmo saco. O que é isso?! É idêntico a dizer "Lá fora nada disto acontece", como se "lá fora", i.e. em qualquer país do mundo que não Portugal, as coisas fossem não só diferentes das nossas como, ainda por cima, invariavelmente melhores do que as portuguesas. São erros crassos de pensamento que estão longe de animar quem faz as coisas bem e, além disso, tenta torná-las ainda melhores.
Durante os anos em que coordenei cursos numa determinada instituição, fui muitas vezes procurado por estudantes ou professores demasiado exaltados com problemas pessoais ou profissionais para serem minimamente objectivos. No silêncio do pequeno gabinete em que eu trabalhava, recordo-me bem da necessidade que sentia de os acalmar primeiro para que se sentissem mais descontraídos. Nalguns casos, entregava-lhes a esferográfica ou caneta que tinha na secretária. Pedia-lhes que a pusessem horizontalmente em frente dos olhos, bem junto a eles. Perguntava-lhes o que viam. Nada, era a resposta. "Vejo a caneta." Pedia-lhes depois para colocarem a esferográfica mais ou menos equidistante entre eles e eu, com quem estavam a falar. Repetia-lhes a pergunta. Respondiam que me viam a mim e à caneta, mais o que estava à volta. A mensagem era imediatamente compreendida. A partir daí podíamos começar a discutir o assunto. Visões obliteradas seja pelo que for, ódio ou paixão, cegam e não deixam ver mais nada. Os fundamentalismos e os extremismos entram nesse grupo.

6/16/2008

Democracia europeia em causa

Um antigo colega, que presidiu durante algum tempo a um órgão importante da escola onde ambos trabalhávamos, tinha uma táctica sui generis nas votações: quando não tinha dúvidas quanto ao voto (positivo) da assembleia, ele pedia aquilo que estava estatutariamente estabelecido: voto secreto. Quando pressentia que poderia haver votos negativos que para ele até eram bem-vindos, mantinha o voto secreto. Sempre que podia haver surpresas indesejáveis, pedia, em nome da transparência de voto, o sistema de braço-no-ar (sabendo antecipadamente que os votantes se retraem mais quando têm que identificar em público a sua escolha)
Este facto ocorre-me a propósito do Tratado de Lisboa. Dada a rejeição da anterior proposta de Constituição Europeia pelos votos contrários da Holanda e da França em referendos nacionais, essa proposta foi reformulada nalguns pontos e passou a denominar-se "Tratado". Como este foi aprovado durante a presidência portuguesa da União Europeia, recebeu a designação de "Tratado de Lisboa" (e a célebre exclamação eufórica de Sócrates para um seu colega, "Porreiro, pá!").
Dado que a experiência é, de facto, algo mais do que um pente para carecas, os escaldados líderes políticos da União resolveram fazer aprovar o Tratado pelos parlamentos nacionais - os parlamentares de cada país são primos direitos dos parlamentares europeus - e rejeitaram a ideia de o referendar. Só que, tal como aquela aldeia isolada e rebelde do Astérix no vasto império romano, aqui também havia um país que, isolada e teimosamente, mantinha o referendo - respeitando assim a sua própria Constituição. Como sabemos, esse país é a Irlanda.
Tê-lo-á feito apenas por pirraça? De forma nenhuma. Na realidade, a Suiça, que é politicamente famosa pelo seu elevado número de referendos, tem um bom equivalente europeu na Irlanda. A Irlanda tem respeitado a sua Constituição e, ao contrário da maioria dos países europeus - incluindo Portugal -, tem referendado os vários desenvolvimentos da União. Assim é que, há 36 anos, a Irlanda votou a favor da adesão à União, o que permitiu que a sua entrada se fizesse logo em 1973. Há 16 anos, o Tratado de Maastricht foi também aprovado em referendo pela Irlanda, assim como em 1998 o Tratado de Amesterdão. Em 2001, porém, os irlandeses, ao votarem o Tratado de Nice, não concordaram com a possibilidade de serem obrigados a quebrar a sua neutralidade militar e... rejeitaram o tratado. Em face das circunstâncias, o referendo sobre Nice foi repetido no ano seguinte, mas com a salvaguarda da neutralidade irlandesa. Foi então aprovado.
Este ano, o Tratado de Lisboa acaba de receber uma maioria de votos “não”. O que se prevê é que alguns dos motivos que levaram à rejeição irlandesa possam ser entretanto salvaguardados num arranjo negociado entre Bruxelas e Dublin, sendo então a fórmula já corrigida submetida a novo referendo. Este acabará, assim, por ser um processo democraticamente correcto. Caso a União Europeia tente outras soluções mais expeditas, a sua credibilidade democrática ficará inexoravelmente ferida. Da mesma maneira que as boas escolas não se fazem contra a maioria dos seus professores, uma União que não seja aprovada pela maioria do seu povo não terá pernas para andar.

6/10/2008

Breves do dia 10 de Junho

1. Noticia o jornal que "a água do Alqueva vai ser mais para o turismo do que para a agricultura". Mas houve alguma vez quem duvidasse disso? O retrato de um homem alentejano a servir de caddie, carregando às costas um saco pesado repleto de tacos de golfe, há muito que simboliza os empregos a criar na população local.

2. Apesar de serem subterrâneas, as obras de construção do Metro para o aeroporto continuam de vento em popa. Tal como sucede no caso do Alqueva relativamente à melhoria da agricultura para os alentejanos, quem é que acredita que a finalidade das obras do Metro seja servir o aeroporto? Viva a Alta de Lisboa! Afinal, os terrenos valorizam-se tanto mais quanto melhor forem servidos de transportes públicos.

3. A Estoril-Sol manifestou o seu entusiasmo pelo facto de a Procuradoria-Geral da República ter reconhecido que a Sociedade era a proprietária legal do edifício do Casino Lisboa, na área da Expo. De facto, isso nunca esteve em causa. Aquilo que sempre se contestou foi a forma como isso foi conseguido.
Pessoalmente lembro-me de uma vez, no liceu D. João de Castro onde estudava, ter percebido - tal como todos os meus colegas, aliás - que era impossível entregar uma justificação de atraso ou falta à primeira aula, a não ser que o encarregado de educação estivesse connosco na altura. Sem essa justificação não podíamos entrar na aula. Em vista deste facto, no ano seguinte falei com o meu pai/encarregado de educação e pedi-lhe para ser eu a assinar a minha matrícula na escola. Assim, deixaria de ter problemas numa eventualidade dessas (ele morava a cerca de 80 quilómetros de Lisboa) pois a minha assinatura seria igual à da matrícula. Como confiava plenamente em mim, concordou. A partir daí, nas poucas vezes em que me atrasei por qualquer razão, assinei por ele. Claro que nunca fui descoberto. Sinto que não prejudiquei ninguém e me limitei, respeitando a ética relativamente ao meu encarregado de educação, a contornar um regulamento que estava mal feito e que, aliás, acabou por ser modificado.
No caso da Estoril-Sol e do Governo PSD-CDS de então, a situação contestada esteve longe de ser semelhante e inócua, contendo uma notória excepção ao regime normal de concessão de casinos. Mas, como é evidente, uma vez que o documento legal foi assinado, a partir daí a cobertura foi total.

4. O Presidente da República teve um lapsus linguae que, apesar de infeliz, se pode considerar relativamente normal numa pessoa como ele. Não será, aliás, de admirar que alguma vez lhe escapem - a ele e a mais políticos - outros lapsos, tais como dizer "Assembleia Nacional" em vez de Assembleia da República, ou "Diário do Governo" em vez de Diário da República. Admita-se, no entanto, que estes serão menos graves do que referências à raça.
Seja como for, para um indivíduo tímido falar aos microfones não é a coisa mais fácil do mundo e, portanto, é sempre possível que o cérebro sofra algumas interrupções quando Cavaco se prepara para manifestar a sua opinião. Isto, mau grado a lentidão do seu discurso e o contido sopesar das suas palavras.

5. Valha a magnífica exibição do seleccionado português em terras suíças no jogo de futebol contra a Turquia. Fez aparecer mais bandeiras nos automóveis e nas janelas das casas. Espera-se que continue assim.

6. Estamos a 48 horas do próximo Dia D para a Europa: a votação do Tratado de Lisboa na Irlanda. Se ganhar o "não", como é que a UE descalça a bota?

6/09/2008

O portão

Há tempos assisti a uma cena que não deixou de me impressionar. Dois miúdos de mais ou menos quatro anos brincavam num quintal correndo alternadamente atrás um do outro. A certa altura, um deles, ao dar uma volta para se esquivar, bateu com a cabeça na porta metálica da garage que fica nesse quintal. Magoou-se um pouco, embora não o suficiente para fazer um galo. Ao ouvi-lo chorar, a mãe acorreu pressurosa a abraçá-lo.
Até aqui tudo bem. Só que depois a mãe disse para o filho: "O portão é mau. Bate nele. O portão bateu-te!"
O miúdo levantou a mão e desferiu duas palmadas tão fortes no portão que provavelmente o magoaram mais do que anteriormente a cabeça.
Eu não queria acreditar no que via e ouvia. Então, a culpa - se é que lhe podemos chamar assim - era toda do miúdo que tinha ido contra a porta, e agora era a esta que eram assacadas culpas? Para que não se admitisse que tinha sido o menino a provocar inadvertidamente o sucedido, descarregava-se a raiva em cima de algo inerte e imóvel?
Parece-me grave que se tente passar a responsabilidade a outrem - neste caso um objecto -, desculpabilizando assim a pessoa. A desresponsabilização do tipo "O meu filho não foi com certeza, ele não faz coisas dessas!" começa bem cedo e mantém-se até tarde em muitos casos. Acho-a preocupante.
Afinal, muito do comportamento da escola básica actual bebe as suas raízes em algo semelhante. Os meninos, por mais mal que façam as coisas, tendem a receber um "satisfaz" ou coisa que o valha. Nada de negativo, não vá a criança ficar com um trauma que lhe dure toda a vida!
Como professor, entendo e sempre pratiquei eu próprio o incentivo. Mas nunca compreenderei que um teste que, na escala de 0 a 20, mereça apenas um 6, venha a ser premiado com 10 ou 11. São três erros num: primeiro, dá-se ao aluno a perniciosa noção de facilitismo; segundo, é-se injusto perante o restante da turma; terceiro, ganha-se a (má) fama de professor-passador, o que pode atrair maus alunos no ano seguinte mas afasta os melhores e não se preocupa com a desejada excelência.
O resultado do facilitismo é a criação de uma nação educada para pensar muito mais em direitos do que em deveres, a trabalhar menos do que poderia e deveria, e a descarregar a sua raiva sobre o Governo ou qualquer "portão" do género.

6/04/2008

Desporto de bancada


O cenário está quase pronto. Aquando do primeiro jogo para o Europeu-2008 entre Portugal e a Turquia, tudo estará a postos. Cerca de 800 lugares sentados e muitos mais com assento na relva ou de pé permitirão aos fãs do futebol assistir em écran gigante ao desenrolar deste encontro e de mais uns tantos em que a selecção portuguesa tome parte. Os patrocinadores parecem ser a Sagres Boémia, o Buondi e a Nestlé. As Tágides e os lindos cavalos escultóricos dos anos 40 da Fonte Luminosa (Alameda D. Afonso Henriques, Lisboa) terão a oportunidade de estar de frente para o espectáculo.
Dos clássicos FFF, o futebol é o que, de longe, ocupa o primeiro lugar entre as preferências dos portugueses. A presente campanha para o Europeu está a raiar o cúmulo do mediatismo, com imprensa, rádio e televisão a dedicar-lhe larguíssimos espaços. Já agora, que os rapazes correspondam. Ficaríamos todos muito contentes. Porém, se não conseguirem passar a primeira fase qualificativa, não é nenhuma desgraça nacional. "Na vida, como no desporto, o importante não é vencer, mas competir", lembrava Pierre de Coubertin. Acrescente-se que entre o trabalho e a diversão, o primeiro é bem mais relevante. Os antigos tinham um ditado: "Primeiro a obrigação, depois a devoção." Haverá muitos a lembrar-se?

MFL

A vitória, embora magra, de MFL nas eleições do seu partido permite-nos levantar a questão de mentalidades diversas. Dificilmente se encontrariam posicionamentos tão diferentes relativos a mediatismo como o de MFL e de Santana Lopes, por exemplo. Mas há, evidentemente, mais: MFL remete-nos para uma visão da vida mais prudente, mais pensada, e menos descontroladamente práfrentex. Como há dias um articulista lembrava, não se trata de voltar à prática de Salazar de criar galinhas num recanto dos jardins de S. Bento. Mas é, mesmo assim, de uma questão de poupança e de não-esbanjamento; e também aquilo que se resume no clássico "Fia-te na Virgem e não corras!"
Sem quaisquer parentescos partidários, sou da geração de MFL. A taxa de poupança portuguesa era, noutros tempos, desmesuradamente alta se estabelecermos uma comparação com a dos tempos de hoje. Havia, certamente, também endividamento por parte de algumas pessoas, mas esse endividamento não atingia nem de perto nem de longe as proporções actuais.
Gastos desajustados para os salários auferidos são presentemente coisas extremamente comuns num casal. O automóvel e a casa a prestações, indolores compras de diversa ordem feitas com cartões de crédito, tudo isso em larga escala não poderia deixar de desequilibrar famílias e o país. Nem a Virgem pode ajudar num caso destes. Parafraseando o que Fernando Pessoa dizia relativamente a Cristo: "Não creio que a Virgem perceba muito de Finanças!"
Aparentemente, a escolha agora feita pelos militantes do PSD representa um pedido de lei e ordem, disciplina - férrea, se necessário. No fundo, é o mesmo tipo de atitude que grangeou aplausos à entrada de Sócrates e alargou sobremaneira o período de estado de graça em que ele viveu.
Uma das histórias infantis mais populares de antigamente era a da Carochinha. Hoje, o Capuchinho Vermelho, com toda a manha do lobo, leva-lhe a palma. Assim como o Rei Leão. E outras em que a força e a manha são reconhecidas como factores importantes. A Carochinha, lembremo-lo, tinha encontrado - por puro acaso - uma moeda de ouro. Sendo impossível de identificar a quem a moeda pertencia, a carochinha chamou-a sua. Como resultado, era agora rica. Ia ser ela a escolher o seu futuro marido. Fez desfilar perante a sua janela os mais diversos animais seus pretendentes. Por uma razão ou outra foram todos sendo rejeitados. Até que apareceu o pretendente ideal: era aplicado, trabalhador, não incomodava. Era o João Ratão. Só que mesmo os animais aparentemente ideais têm as suas fraquezas! O bom do João Ratão foi ambicioso em excesso. Tentado por uma comida apetitosa que fumegava na cozinha, zás!, perdeu o equilíbrio, e morreu "cozido e assado no caldeirão". Estão aqui nesta historieta alguns dos ingredientes virtuosos da época - amor pelo trabalho, não incomodar os outros, ser pequenino sem se importar com isso, ser humilde. Com o aviso final: cuidado! Há sempre o perigo de não conseguirmos resistir às tentações: a ambição desmedida pode ser fatal. E neste caso terá mesmo sido.
Hoje em dia, quem não tem ambição sofre de doença grave. Não vingará de certeza na vida. Precisamos de competir sem nos contentarmos em sermos o segundo ou o terceiro: só o primeiro lugar conta. "Quem foi que descobriu o caminho marítimo para a Índia?" "Vasco da Gama!" "Correcto. E quem foi o segundo?" "Não sei!" "Claro! Só o primeiro é que passa à História, o segundo não conta!"
É assim! Não deixes que os outros te ultrapassem. Se praticas a humildade, estás lixado. Não te esqueças de que se for preciso jogar sujo, joga sujo. De outra forma não vais lá! Mesmo que não tenhas dinheiro agora, encontras sempre um banco amigo que to empresta. Os juros e os diversos truques praticados talvez fizessem corar de vergonha alguns dos judeus de antanho, mas agora estamos noutro tempo. O que conta é o futuro. Pr’á frente é que é!
MFL não é "BdE" (bota-de-elástico), mas parecerá a muitos que sim. Impor restrições é idiota. Poupar dinheiro para quê, se depois vêm os outros e o espatifam todo? Ora bem, talvez fosse por possuir a sua mentalidade "antiquada" que MFL protestou veementemente contra o que este governo fez aos certificados de aforro. Disse-o claramente: o governo está a destruir cada vez mais o sentido de poupança do povo. E, verdade seja dita, não o afirmou por estar sistematicamente contra a governação do partido adversário. Pelo contrário: para arrelia de muitos dos membros do seu próprio partido, tem elogiado vários actos da actual governação.
Não deixa de ser interessante observar este choque de mentalidades no Portugal 2008.

6/03/2008

Uma questão de assinaturas

Há dias, levantei neste blog a questão da democracia representativa vs democracia directa no caso do akordo ortográfico. Estou profundamente convencido de que, em caso de referendo, o "não" ao acordo ganharia por uma margem larguíssima. (Aliás, sempre que há dúvidas sérias de que uma proposta governamental possa não passar, não há referendo.)
Quando, durante pouquíssimos dias, circulou na Net um documento pedindo a não-celebração do acordo, estive, naturalmente, entre os que o assinaram. Alguém a quem forneci o link escreveu-me veementemente de volta: "Se pudesse, assinava cem vezes!" Conversas com vários amigos confirmaram-me a existência desse mesmo estado de espírito de rejeição do akordo.
Agora sei que o total de assinaturas recolhidas, basicamente por meio electrónico, foi da ordem das 45 mil. O conjunto foi entregue na Presidência da República, juntamente com vários pareceres. Atrevo-me a perguntar: será que seria possível ao lado do "sim" reunir no mesmo período de tempo 45 mil assinaturas? Falando objectivamente, quem é que em Portugal pedia um acordo desta ordem?
Pobre democracia, tantas vezes usada como mera palavra mas não implementada na realidade!

Adjectivação

Em 1961, quando a Índia (então oficialmente chamada União Indiana) invadiu os territórios de Goa, Damão e Diu, há séculos ocupados pelos portugueses, o governo de Lisboa reagiu com uma intensa campanha que usou inúmeras frases contundentes, todas naturalmente contra a invasão. Uma delas, colada nas paredes de vários edifícios desta cidade, dizia: "Inqualificável o bárbaro atentado perpretado pela União Indiana". Recordo-me perfeitamente de ter parado a olhar para o papel e de ter pensado para comigo mesmo: "Esta é óptima! Apregoa-se que o atentado é inqualificável e depois na adjectivação chamam-lhe bárbaro."
Sempre houve políticos que tomaram as pessoas como demasiado saloias. Vem-me à cabeça um experiente praticante americano da mentira, que até foi presidente dos EUA e acabou destituído: Richard Nixon. Chamaram-lhe "Tricky Dicky", i.e. o Ricardinho dos truques. Na campanha eleitoral para a presidência, foram dele frases como esta: "Na presente campanha não vamos chamar nomes uns aos outros, vamos ser clean e elevados nos nossos argumentos." No dia seguinte insinuou que um dos seus adversários era maricas!
Dentro deste estilo, ocorre-me também o modus operandi daqueles oradores que começam por dizer "Eu podia dizer que o legado que me deixaram nesta presidência estava envenenado, mas não digo. Eu podia dizer que encontrei muita coisa mal deixada pela presidência anterior, mas não digo. Poderia ainda dizer que cheguei a ficar cansado de ouvir dizer tanto mal da Direcção que me precedeu, mas isso é algo que não digo. Estou aqui apenas para trabalhar e não para entrar no reino da má-língua. De resto, precisamos de actos e não de palavras!"
Quantas vezes já ouvi coisas destas? Quantas vezes as irei ainda ouvir e ler? Com ligeiras variantes, vai tudo dar sempre ao mesmo. Vende-se a mentira como verdade. Como assim? Já não há mentiras! Presentemente diz-se "a comunicação oficial contém algum distanciamento da verdade". É mais eufemístico.
Lembram-se daqueles produtores cinematográficos que, postos perante a necessidade legal de colocar nos filmes a data de finalização dos mesmos, recorreram à solução de escrever os números dessa data não só em caracteres pequenos como, ainda por cima, em algarismos romanos? Quem os ia ler?
Há muitas maneiras de matar pulgas. No fundo, o que interessa é que elas fiquem mortas para não nos chatearem mais.