A propósito do novo Museu do Oriente, escreveu-me uma amiga a elogiar o aspecto arquitectónico dos velhos armazéns do bacalhau, salientando ironicamente a qualidade daquela a que chamam "arquitectura fascista". A amiga em questão não foi de maneira nenhuma fã do salazarismo, muito pelo contrário. Contudo, não se coibiu, e bem, de elogiar a qualidade do edifício, reconhecendo também que tinha havido alterações feitas com tacto recentemente. Pego na palavra dela como bom exemplo de pessoa que, objectivamente, admite que o salazarismo que ela sempre detestou teve algumas coisas boas. Por contraste, há indivíduos que colam um rótulo de medíocre ou mau a tudo o que se passou nesse tempo. Já tenho ouvido defender que a escola de então era uma porcaria, que todas as pessoas tinham um medo horrível de falar e de serem presas e que se vivia num clima de terror. Aparentemente, nesse tempo as pessoas não davam gargalhadas francas, não se divertiam. Por antítese, tudo terá melhorado decisivamente depois do 25 de Abril.
Não vou obviamente enumerar todos os aspectos positivos e negativos, tanto do período salazarista como do actual. Mas não posso deixar de estar contra a visão de que tudo era não só mau como mesmo péssimo antes de 1974. Tive, juntamente com muitas outras pessoas, uma infância e adolescência feliz. E estive em festas animadíssimas, com gente bem disposta e pronta a divertir-se. Era outro mundo? Certamente! Mas se a censura existia, o que era mau; se não se podia falar publicamente contra o governo, o que também era naturalmente mau, não se pode daí inferir que tudo era péssimo e que a maioria das pessoas estavam ansiosas por derrubar o regime. Normalmente, esse não era o tema de conversas, a não ser para aqueles, relativamente poucos, que estavam envolvidos com os movimentos de esquerda. Para o bem e para o mal, a esmagadora maioria da população interessava-se pouco pela política.
Outro caso é o da guerra colonial. Ouvi uma vez um conhecido major do exército português dizer, numa conferência pública em que se dirigia à geração mais jovem, que nenhum dos muitos soldados que participaram na guerra colonial partiu de livre vontade. Segundo ele, terão todos partido à força, contrariados ao máximo e revoltados. Ouvi e disse de mim para mim que havia ali um exagero terrível. Fui com tropas para Angola em 1961, no ano em que eclodiu a guerra naquela colónia. Claro que não vi ninguém a bater palmas como se fosse para uma festa, mas é evidente que não estavam todos num estado de espírito de revolta. Pode dizer-se, isso sim, que havia um grande desconhecimento de verdades políticas importantes, cortadas impiedosamente pela censura daquela época. Mas, fosse pela propaganda que o regime fazia, fosse por outras razões, existia em muitos dos que embarcaram e depois estiveram comigo em África, uma noção enraizada de dever. Negá-lo é uma falsidade tremenda, uma desinformação total. Não direi que a situação fosse igual mais tarde, em 1972 ou 73, que aliás já não testemunhei, mas em 1961 o sentimento maioritário dos militares que iam para as Áfricas era de cumprimento de dever, aliado a um natural receio de serem feridos ou de não regressarem com vida.
"A guerra colonial foi tremenda para a juventude portuguesa." Terá mesmo sido? Não terá havido pessoas que gostaram de conhecer a África, a Índia ou Timor, e ficaram mesmo encantadas com isso? Que tiveram uma enorme abertura de espírito por verem terras diferentes, com culturas diversas? Ou ficaram todos com traumas? São fascistas também?
O fundamentalismo leva a generalizações que cabem inteirinhas nos idola de Bacon. Dizer que "o português é sempre assim" não é mais do que meter todos os portugueses no mesmo saco. O que é isso?! É idêntico a dizer "Lá fora nada disto acontece", como se "lá fora", i.e. em qualquer país do mundo que não Portugal, as coisas fossem não só diferentes das nossas como, ainda por cima, invariavelmente melhores do que as portuguesas. São erros crassos de pensamento que estão longe de animar quem faz as coisas bem e, além disso, tenta torná-las ainda melhores.
Durante os anos em que coordenei cursos numa determinada instituição, fui muitas vezes procurado por estudantes ou professores demasiado exaltados com problemas pessoais ou profissionais para serem minimamente objectivos. No silêncio do pequeno gabinete em que eu trabalhava, recordo-me bem da necessidade que sentia de os acalmar primeiro para que se sentissem mais descontraídos. Nalguns casos, entregava-lhes a esferográfica ou caneta que tinha na secretária. Pedia-lhes que a pusessem horizontalmente em frente dos olhos, bem junto a eles. Perguntava-lhes o que viam. Nada, era a resposta. "Vejo a caneta." Pedia-lhes depois para colocarem a esferográfica mais ou menos equidistante entre eles e eu, com quem estavam a falar. Repetia-lhes a pergunta. Respondiam que me viam a mim e à caneta, mais o que estava à volta. A mensagem era imediatamente compreendida. A partir daí podíamos começar a discutir o assunto. Visões obliteradas seja pelo que for, ódio ou paixão, cegam e não deixam ver mais nada. Os fundamentalismos e os extremismos entram nesse grupo.
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