Um antigo colega, que presidiu durante algum tempo a um órgão importante da escola onde ambos trabalhávamos, tinha uma táctica sui generis nas votações: quando não tinha dúvidas quanto ao voto (positivo) da assembleia, ele pedia aquilo que estava estatutariamente estabelecido: voto secreto. Quando pressentia que poderia haver votos negativos que para ele até eram bem-vindos, mantinha o voto secreto. Sempre que podia haver surpresas indesejáveis, pedia, em nome da transparência de voto, o sistema de braço-no-ar (sabendo antecipadamente que os votantes se retraem mais quando têm que identificar em público a sua escolha)
Este facto ocorre-me a propósito do Tratado de Lisboa. Dada a rejeição da anterior proposta de Constituição Europeia pelos votos contrários da Holanda e da França em referendos nacionais, essa proposta foi reformulada nalguns pontos e passou a denominar-se "Tratado". Como este foi aprovado durante a presidência portuguesa da União Europeia, recebeu a designação de "Tratado de Lisboa" (e a célebre exclamação eufórica de Sócrates para um seu colega, "Porreiro, pá!").
Dado que a experiência é, de facto, algo mais do que um pente para carecas, os escaldados líderes políticos da União resolveram fazer aprovar o Tratado pelos parlamentos nacionais - os parlamentares de cada país são primos direitos dos parlamentares europeus - e rejeitaram a ideia de o referendar. Só que, tal como aquela aldeia isolada e rebelde do Astérix no vasto império romano, aqui também havia um país que, isolada e teimosamente, mantinha o referendo - respeitando assim a sua própria Constituição. Como sabemos, esse país é a Irlanda.
Tê-lo-á feito apenas por pirraça? De forma nenhuma. Na realidade, a Suiça, que é politicamente famosa pelo seu elevado número de referendos, tem um bom equivalente europeu na Irlanda. A Irlanda tem respeitado a sua Constituição e, ao contrário da maioria dos países europeus - incluindo Portugal -, tem referendado os vários desenvolvimentos da União. Assim é que, há 36 anos, a Irlanda votou a favor da adesão à União, o que permitiu que a sua entrada se fizesse logo em 1973. Há 16 anos, o Tratado de Maastricht foi também aprovado em referendo pela Irlanda, assim como em 1998 o Tratado de Amesterdão. Em 2001, porém, os irlandeses, ao votarem o Tratado de Nice, não concordaram com a possibilidade de serem obrigados a quebrar a sua neutralidade militar e... rejeitaram o tratado. Em face das circunstâncias, o referendo sobre Nice foi repetido no ano seguinte, mas com a salvaguarda da neutralidade irlandesa. Foi então aprovado.
Este ano, o Tratado de Lisboa acaba de receber uma maioria de votos “não”. O que se prevê é que alguns dos motivos que levaram à rejeição irlandesa possam ser entretanto salvaguardados num arranjo negociado entre Bruxelas e Dublin, sendo então a fórmula já corrigida submetida a novo referendo. Este acabará, assim, por ser um processo democraticamente correcto. Caso a União Europeia tente outras soluções mais expeditas, a sua credibilidade democrática ficará inexoravelmente ferida. Da mesma maneira que as boas escolas não se fazem contra a maioria dos seus professores, uma União que não seja aprovada pela maioria do seu povo não terá pernas para andar.
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