1/31/2010
Moral de pacotilha
A foto acima, que reproduzo da edição do i de ontem, já terá dado volta ao mundo e, pelo menos em Portugal, mereceu honras de televisão nos noticiários de horário nobre. Aparentemente, o mundo está chocado. As acusações sucedem-se, sempre na mesma base: médicos e paramédicos insensíveis ao sofrimento alheio de tantos mortos e feridos no Haiti, onde se encontram, saboreiam com visível gosto o whisky que saltou da garrafa para os seus copos. Escândalo, imoralidade!
Será mesmo assim? Terá alguém perguntado aos médicos se o sofrimento de tantos lhes é indiferente? Como se pode saltar tão facilmente para essa conclusão? Pessoalmente, não possuo dados para retirar com rigor qualquer conclusão que me possibilite fazer um juízo correcto, mas a minha experiência de vida ensinou-me várias coisas e não é impossível que tenha vivenciado algo de natureza semelhante, nomeadamente na guerra colonial. É fácil condenar. É facílimo armar em moralista tendo apenas como base uma fotografia que, admita-se, será real. E quem a enviou para o Facebook, o que procurava? Populismo à maneira das enormes multidões que regularmente aclamam políticos demagógicos? Possivelmente.
Um médico, tal como toda e qualquer pessoa normal, sofre perante o sofrimento alheio. Quando se vê forçado a amputar a perna a um paciente porque não existe outra alternativa, perpassa-lhe pela mente, como é natural e humano, que aquele homem ou aquela mulher vai viver até ao fim dos seus dias apenas com a perna que lhe resta. Eventualmente, conseguirá uma prótese.
E quando são várias as operações a realizar durante o dia em condições precárias, com a preocupação de causar aos doentes o mínimo de sofrimento possível? Apesar do seu profissionalismo, que felizmente torna as suas mãos mais seguras e a sua mente mais fria e racional perante o sofrimento alheio, o controlo que os cirurgiões forçam sobre si mesmos fatiga-os. Como não? Fazer incisões, cortar, ver sangue a brotar, testemunhar esgares de dor, ouvir lamentosos ais de sofrimento juntamente com gritos de pânico – será que nada disto impressiona e fatiga os médicos, os enfermeiros, os anestesistas, enfim, toda uma equipa?
Nesta circunstâncias, que acto mais natural para médicos e paramédicos do que o de pretenderem uma boa refeição e uma melhor bebida no final do dia, algo que os faça esquecer por momentos o que se passa lá fora – até porque amanhã a cena vai porventura continuar com mais alguns casos difíceis? Quiçá apanhados no final de um longo dia de trabalho, médicos confraternizam com colegas seus. Que mal há nisso?
Recordo-me de cenas algo diferentes, mas igualmente pungentes, aquando da morte de alguém querido e consequente velório. Há lágrimas por muito lado. Mas há também um grupo, ou dois, de amigos verdadeiros da família, que compareceram por sentido dever ao velório e que, em face da morte, contam entre si anedotas, frequentemente de sexo. É tão óbvio: o sexo é um hino à vida. Afasta aquela ideia de morte que a todos um dia atingirá.
Os médicos que estão no Haiti também sabem, como é por demais evidente, que a sua própria morte lhes tocará um dia. Pretendem, logicamente, afastar a ideia. Essa e outras igualmente penosas. É humano e, o que é mais, é sadio. Só os masoquistas gostam de sofrer permanentemente. O médico tem de estar pronto amanhã para o que der e vier. Precisa de dormir, de estar descansado.
Imoral o comportamento do pessoal médico e de enfermagem por estar a beber uns golos de whisky? Imoral é pretender a perfeição nos outros sem olhar para si próprio. Os fundamentalistas e os dogmáticos procuram logo o mal, porque se há coisa de que gostam é de criticar os outros, o que os faz sentirem-se superiores aos criticados. Já agora, esses críticos perfeitos e imaculados deslocaram-se do seu país ao inferno do Haiti para ajudar, ou ficaram repimpados na sua confortável casa a ver o jogo na televisão?
1/30/2010
A pronúncia em inglês do –s- intervocálico
"Estou aqui a ler um texto espanhol e vejo que a palavra masoneria, correspondente à nossa maçonaria, se escreve com –s-. Em português é com um –ç-, não é verdade?” À pergunta que me fizeram, respondi afirmativamente. E lembrei-me imediatamente das minhas aulas de linguística na Faculdade, onde aprendi que, em tempos antigos, na língua portuguesa havia quatro pronúncias diferentes para o s. Por exemplo, paço distinguia-se claramente de passo, o que presentemente não sucede.
Na língua portuguesa a pronúncia do –s- entre duas vogais ou entre um ditongo e uma vogal não oferece quaisquer problemas: lê-se z. Exemplos: casa, liso, teso, tosa, grosa, griso, fuso, coisa. Este facto leva a maioria dos alunos portugueses que estudam inglês a crer que o mesmo se passa na língua inglesa. É por vezes com surpresa que se apercebem, apenas ao fim de alguns anos de aprendizagem, que não é exactamente assim. Em inglês, a pronúncia do –s- intervocálico tanto pode ser igual à portuguesa (z), como diferente (ss). Da lista abaixo, que contém apenas palavras bastante comuns, quais diria que são pronunciadas z e quais as outras em que –s- se pronuncia –ss-?
Comecemos pela palavra inglesa que está na origem de maçonaria: mason. É pronunciada (meizn) ou (meissn)?
E estas: house, houses, base, basic, visitor, museum, casino, resort, case, crusade, geese, I’m used to using the computer with a mouse.
(Prometo escrever aqui a solução dentro de dias. O leitor poderá entretanto encontrar a pronúncia correcta em qualquer dicionário ou na própria Net. Quem aprende por si acaba por fazer a mais sólida das aprendizagens.) Este texto é basicamente um alerta.
P.S. E aqui está a prometida solução. Por vezes, pode haver palavras que possuam uma diferença na pronúncia do -s- consoante se trate de substantivo ou de verbo. Indico as formas mais vulgares, que são as de substantivos.
Mason = ss; House = ss; Houses = z; Base = ss; Basic = ss; Visitor = z; Museum = z;
Casino = ss; Resort = z; Case = ss; Crusade = ss; Geese = ss; Used to = ss; Using = z; Mouse = ss
De minha experiência, diria que há muitos estudantes a errarem em palavras tão comuns como house e mouse; também em basic, que os portugueses gostam (erradamente) de pronunciar bázique e em case. Casino é também geralmente pronunciado à portuguesa. Quanto a used to (= costumar) igual a ss; used (utilizar) igual a z. Não é difícil, mas convém estar atento à pronúncia.
Na língua portuguesa a pronúncia do –s- entre duas vogais ou entre um ditongo e uma vogal não oferece quaisquer problemas: lê-se z. Exemplos: casa, liso, teso, tosa, grosa, griso, fuso, coisa. Este facto leva a maioria dos alunos portugueses que estudam inglês a crer que o mesmo se passa na língua inglesa. É por vezes com surpresa que se apercebem, apenas ao fim de alguns anos de aprendizagem, que não é exactamente assim. Em inglês, a pronúncia do –s- intervocálico tanto pode ser igual à portuguesa (z), como diferente (ss). Da lista abaixo, que contém apenas palavras bastante comuns, quais diria que são pronunciadas z e quais as outras em que –s- se pronuncia –ss-?
Comecemos pela palavra inglesa que está na origem de maçonaria: mason. É pronunciada (meizn) ou (meissn)?
E estas: house, houses, base, basic, visitor, museum, casino, resort, case, crusade, geese, I’m used to using the computer with a mouse.
(Prometo escrever aqui a solução dentro de dias. O leitor poderá entretanto encontrar a pronúncia correcta em qualquer dicionário ou na própria Net. Quem aprende por si acaba por fazer a mais sólida das aprendizagens.) Este texto é basicamente um alerta.
P.S. E aqui está a prometida solução. Por vezes, pode haver palavras que possuam uma diferença na pronúncia do -s- consoante se trate de substantivo ou de verbo. Indico as formas mais vulgares, que são as de substantivos.
Mason = ss; House = ss; Houses = z; Base = ss; Basic = ss; Visitor = z; Museum = z;
Casino = ss; Resort = z; Case = ss; Crusade = ss; Geese = ss; Used to = ss; Using = z; Mouse = ss
De minha experiência, diria que há muitos estudantes a errarem em palavras tão comuns como house e mouse; também em basic, que os portugueses gostam (erradamente) de pronunciar bázique e em case. Casino é também geralmente pronunciado à portuguesa. Quanto a used to (= costumar) igual a ss; used (utilizar) igual a z. Não é difícil, mas convém estar atento à pronúncia.
1/27/2010
Prepotência
O assinante da ZON recebe uma brochura na sua caixa do correio, que lhe anuncia "Novos Canais na sua TV a partir de 1 de Fevereiro". Como não é a primeira vez que tal sucede, depois de ver quais são esses novos canais – BIGGS e FOX – o assinante procura com muito maior ansiedade quais são aqueles que vão ser eliminados. "Ninguém dá nada a ninguém" é um provérbio exagerado nalguns casos, mas quando se trata de empresas nos seu relacionamento com clientes já se sabe que ele não podia ser mais certo. Quais são então os canais que vão ser eliminados? Dois que davam prazer em ver e eram frequentemente escolhidos: TV5 MONDE e SKY NEWS. Ora, é exactamente por isso, por terem procura que a ZON os coloca numa grelha diferente, a pagar suplementarmente, claro. Unilateralmente. Quem pediu um Biggs e um Fox? Ninguém. Quem roubou dois canais à assinatura regularmente paga todos os meses? A ZON.
Quem é ZON está tudo menos ON. Está OFF.
1/26/2010
Brain gain
Há cerca de 15 anos que a China está a tentar compensar o seu anterior brain drain com o brain gain. Traduzido por miúdos, o que significa este jargão? Vários países desenvolvidos do mundo têm sido peritos em conseguir atrair bons cérebros estrangeiros para estudar nas suas universidades. Os Estados Unidos têm sido, sem dúvida, os grandes campeões neste domínio. Graças às suas esplêndidas universidades, de forte credibilidade a nível mundial, e ao efectivo know-how que os melhores estudantes adquirem, não se torna difícil que muitos países estrangeiros concedam bolsas aos seus melhores alunos para estudarem nos Estados Unidos. Aliás, mais de 50 por cento dos doutoramentos nos EUA são realizados por estudantes não nascidos na América. Posteriormente, um número substancial desses cérebros excepcionais realiza investigação nos EUA, publica livros, lecciona, etc. As nações que os perderam ficaram sem a melhor seiva que possuíam. É frequente, porém, que os doutorados não se sintam atraídos pela hipótese de regressarem ao seu país de origem devido aos salários elevados que conseguem auferir nos EUA. Por seu lado, a América rentabiliza de várias formas a capacidade desses grandes cérebros.
Contudo, neste momento existe já um número interessante de países a competirem com os EUA quanto ao regresso desses investigadores, professores cientistas. Depois do brain drain (fuga de cérebros) vem agora o brain gain , que é basicamente a recuperação desses cérebros. O país que presentemente oferece melhores condições para o retorno dessa elite intelectual é a China. É uma aposta importante. Com uma garantia: se os melhores talentos estiverem livres das teias burocráticas que tradicionalmente emperram trabalhos inovadores em países ditatoriais, poderão ocorrer significativas melhorias a médio prazo.
De 1979 até 2009, cerca de 1,4 milhões de chineses conseguiram vistos de estudo para saírem do país. Desses, apenas 400 mil regressaram. Actualmente, a parada para o regresso das melhores cabeças subiu. É tudo uma questão de horizontes.
Contudo, neste momento existe já um número interessante de países a competirem com os EUA quanto ao regresso desses investigadores, professores cientistas. Depois do brain drain (fuga de cérebros) vem agora o brain gain , que é basicamente a recuperação desses cérebros. O país que presentemente oferece melhores condições para o retorno dessa elite intelectual é a China. É uma aposta importante. Com uma garantia: se os melhores talentos estiverem livres das teias burocráticas que tradicionalmente emperram trabalhos inovadores em países ditatoriais, poderão ocorrer significativas melhorias a médio prazo.
De 1979 até 2009, cerca de 1,4 milhões de chineses conseguiram vistos de estudo para saírem do país. Desses, apenas 400 mil regressaram. Actualmente, a parada para o regresso das melhores cabeças subiu. É tudo uma questão de horizontes.
1/24/2010
RAÍCES
Por preciosa sugestão de um amigo, assisti ontem a um espectáculo diferente de tudo aquilo que até agora tinha visto.
Tratou-se de uma apresentação do grupo espanhol “RAÍCES” interpretando cantos tradicionais judéo-espanhóis com o mui sugestivo título de “Palavricas de amor, canticas y romanzas sefardíes”.
Música fabulosa e a simpatia e boa voz da vocalista do grupo (na fotografia, sentada ao meio) fizeram da hora e tal de espectáculo um encantamento. Devo confessar que não tinha conhecimento da música sefardita, e que a que ontem ouvi me transportou para um mundo de beleza, ora alegre, ora melancólica, mas sempre muito bonita. Senti-me nalguma festa de corte do século XV (enquanto houve judeus em Portugal os reis não dispensaram os seus cantos e danças nas festas palacianas), ou numa das típicas cenas de casamentos judeus que vemos em filmes americanos.
A cada música, a vocalista do grupo dava uma pequena explicação do que se ia ouvir: a origem (marroquina, turca, argelina...) e as circunstâncias em que a mesma era cantada (casamento ou outra cerimónia)
Os restantes cinco elementos do grupo tocavam todos eles instrumentos de cordas: uma bandúrria, um laúd (ambos tìpicamente espanhóis com origens na Idade Média), um violino, uma guitarra acústica e outra semi-acústica.
Sinto-me mais rica, hoje!
Quando souber de outra digressão por Portugal, além de garantir lugar para mim, avisarei quem agora ficou com pena de não ter ido.
1/22/2010
Um argumento de peso
Creio que todos nós achamos perfeitamente justificado que um excesso de bagagem transportada de avião seja sujeito a um pagamento extra. Se não fosse assim, em breve os passageiros quereriam que os aviões onde viajam transportassem este mundo e o outro. Tudo bem com a bagagem, portanto. E se a questão se colocar com os próprios passageiros? Será que o Obélix, devido ao seu peso, deverá pagar mais pelo bilhete do que o seu amigo Astérix? Ou deverá comprar um segundo bilhete, na medida em que poderá vir na realidade a ocupar dois lugares?
Esta é uma questão que, se foi já várias vezes colocada pelas companhias de aviação nas suas reuniões de trabalho, nunca transpirou cá para fora. Nunca, isto é: até esta semana. A Air France que, em associação com a KLM, forma a maior companhia de aviação europeia, anunciou esta semana que iria oferecer um lugar vago a passageiros obesos. Como? Passageiros com peso considerado excessivo podem a partir de agora comprar um segundo assento com o desconto especial de 25 por cento. Se o voo não estiver cheio, o dinheiro pago será posteriormente reembolsado.
O porta-voz da companhia informou que, em consonância com o praticado por outras linhas aéreas, existe sempre a possibilidade de passageiros obesos serem impedidos de embarcar. Por que razão? Porque "as companhias querem ter a garantia de que um avião pode ser totalmente evacuado no tempo máximo de 90 segundos".
Acrescentou o mesmo porta-voz que, no caso de um passageiro obeso não ter adquirido um bilhete extra, o pessoal do check-in não levantará qualquer objecção. Por sua vez, já dentro do aparelho os assistentes de bordo tentarão encontrar uma solução, uma vez que "em 99 por cento" dos casos os aviões não esgotam a sua lotação.
Um pormenor importante para evitar discriminações absolutas: qualquer outro passageiro sem problemas pessoais de peso poderá igualmente adquirir um segundo bilhete com os mesmos 25 por cento de desconto. Neste caso, porém, não terá direito a qualquer reembolso depois de efectuada a viagem.
1/20/2010
Conferência sobre a Índia de Gandhi
A conferência que ontem teve lugar na Fundação Gulbenkian podia, como tudo sempre pode, ter sido melhor. Para alguns, terá mesmo sido algo desapontante. Tal como sucede noutros casos, porém, não é tanto o que a conferência nos disse que importa, mas sim aquilo que ela acabou por evocar. A conferencista era Tara Gandhi, neta de Mahatma Gandhi.
Do seu avô, um brevíssimo resumo biográfico: nascido em 1869, cursou Direito em Londres e regressou à Índia, onde não teve grande sucesso como advogado. Mudou-se para a África do Sul, onde existia uma larga comunidade hindu. Aos poucos, Gandhi tornou-se o advogado defensor dessa comunidade. Era mal visto pelos brancos, que chegaram a espancá-lo. Gandhi recusou processá-los. Os seus princípios impunham-lhe a não-violência e o respeito pelos direitos das pessoas. A sua luta foi sempre pela verdade e pela igualdade de direitos. A sua política de manifestações e marchas ordeiras que não ofereciam qualquer resistência às autoridades criou dificuldades ao regime sul-africano. Neste sentido, Gandhi inspirou Nelson Mandela e, nos Estados Unidos, Martin Luther King. Vinte anos depois, regressou à Índia, ainda dominada pelos ingleses. Depressa se tornou um ídolo que controlava as multidões e causava dores de cabeça aos colonizadores europeus. Jejuns prolongados e marchas pacíficas com uma multidão de pessoas abalaram a jóia da coroa dos britânicos. Quit India! tornou-se slogan. Os ingleses, que nunca estiveram interessados em mudar a Índia, mas apenas em controlá-la para dela sacarem o máximo que podiam, tinham mantido os ricos marajás para controlar as enormes massas de gente. Fizeram o mesmo com Gandhi. Em 1948, a Inglaterra concedeu a independência à Índia. Poucos meses depois, Gandhi foi assassinado por um seu compatriota.(Foto do túmulo simbólico de Gandhi, em Delhi.)
A Índia, e isto é um lugar comum dizer-se, é como que o símbolo de uma cultura asiática que os antigos colonizadores ingleses repetidamente frisaram ser muito diferente da nossa, ocidental. E isto não são meras palavras. São factos. Gandhi não teria sido tão apelativo na Europa como o foi na Índia. Aqui, poderia facilmente ter sido preso, como na África do Sul. A sua política de activa não-violência, de resistência contínua à manutenção da cultura própria do seu povo, cultura menos interessada no usufruto dos bens materiais do que dos prazeres espirituais, teria ela mesmo encontrado uma forte resistência na nossa Europa. Em Portugal, por exemplo, a noção do dever e de missão que muitos dos indianos ainda hoje inerentemente sentem depararia com forte oposição na nossa luta permanente por mais e mais direitos, que nós confundimos frequentemente com os nossos desejos.
Ora, se a Índia fosse assim, a confusão reinaria por todo o lado. Com uma população de mil e cem milhões de pessoas, num país que é vasto mas está também algo gasto pela exploração que ao longo de milénios as pessoas vêm fazendo dele, a Índia tem obrigatoriamente de possuir outra filosofia de vida. A religião ajuda. As diferentes religiões, aliás. A maioria da população é hindu, mas com notórias variantes. Os muçulmanos, por seu lado, são mais de 120 milhões. Parafraseando a visão de Alberto Morávia, que nos deixou as suas impressões sobre o continente indiano que eu também já tive a felicidade de visitar, direi que a nossa Europa personifica o continente onde o homem está convencido de viver no centro do mundo, onde o passado se chama história e a acção é preferida à contemplação; na Europa pensa-se que a vida vale a pena ser vivida. Foi na Europa que André Malraux disse "Uma vida nada vale, mas nada vale tanto como uma vida", uma frase da qual um grande número de europeus não discordaria. Contrastantemente, na Índia existe como que uma desvalorização completa da vida, a qual surge como coisa um tanto absurda e dolorosa. Prevalece a convicção de que o homem não deve agir para melhorar o mundo mas para dele sair e alcançar a realidade supra-sensível ou verdadeiramente espiritual. A religião está, assim, imbuída de uma concepção negativa quanto à realidade dos sentidos, mas é francamente positiva quanto à realidade espiritual. Daqui advém toda uma paciência e resignação com aquilo que, inversamente para nós, são as agruras da vida e que nos tornam ansiosos por alcançarmos mais e mais bens concretos "enquanto cá estamos". Visitar Benares (Varanasi), peregrinar pela longuíssima margem do rio Ganges e assistir a peripatéticos passeios solitários de idosos ao longo da amurada, a funerais onde o corpo é incinerado e as cinzas deitadas às águas do rio, é uma visão inesquecível para quem possui uma cultura bem diferente daquela. Ali, a morte é aceite como naturalidade. É amiga e desejável.
Também nas questões do amor se nota um enorme contraste entre indianos e ocidentais. Revendo as clássicas pinturas europeias de Adão e Eva, notamos todo um pudor cristão e ocidental em mostrar os corpos e, nomeadamente, os órgãos sexuais. Tudo se resume ao simbolismo do fruto proibido. Pelo contrário, em numerosos templos indianos, e com especial realce para os mais de vinte que existem em Khajuraho, encontramos, a par do horror ao vazio nas paredes exteriores, que são preenchidas por uma imensa profusão de estatuária, a expressão do amor carnal. No Ocidente, seria absolutamente impensável encontrarmos este tipo de amor explícito (ver fotos acima) na decoração das nossas igrejas ou mesmo em quadros de museu. Morávia nota que entre nós "o acto sexual é empurrado para fora do mundo humano, na medida em que contradiz a idealização da pessoa humana que é procurada no Ocidente desde o paganismo até aos nossos dias. Adão e Eva, na Índia, são, pelo contrário, representados no acto da ligação carnal, porque o acto sexual não está banido do mundo humano, mas sim incluído e recuperado como êxtase cósmico, como comunicação total."
Sob o ponto de vista económico, no importante sector dos tecidos da Índia, a roca de fiar de que Gandhi tanto falava mantém-se ainda, como foi referido por Tara Gandhi na sua exposição. Na Índia existe uma preocupação natural e justificada em manter as pessoas ocupadas com trabalho. Daí que, a par de avançada tecnologia que naturalmente penetrou no continente indiano, se tenham mantido costumes mais antigos e tradicionais que permitem a ocupação de um maior número de pessoas em algo de útil. Como Tara Gandhi frisou: "Não pretendemos ser um país de produção em massa, mas sim um país de produção pelas massas (da população)".
Num aparte, foi curioso ouvir a neta de Gandhi notar o facto de que muitos ocidentais usam na sua língua os nomes de animais em sentido depreciativo e os conotam com qualidades negativas do homem. De facto, para um ser humano ser apodado de cão ou de cadela não é nada lustroso; tão pouco ser uma vaca ou um boi, uma baleia ou um tubarão, um porco ou um burro.
De alguém vindo de um país como a Índia, que adora o silêncio e a meditação, e onde se compreende profundamente que a simplicidade é a essência da universalidade, não é de estranhar ouvir dizer que as vibrações do silêncio são a linguagem suprema, como Tara Gandhi referiu.
Parece-me poder dizer que a conferência foi útil como motivo de reflexão para muitos, entre os quais me incluo.
1/19/2010
Google vs. China
É interessante ver o braço-de-ferro que presentemente se dirime entre a Google e a China. Na base de uma interferência considerada inadmissível pela Google, levada a efeito por técnicos informáticos em e-mails de alguns dos seus muitos clientes chineses, a empresa americana admitiu retirar-se da China, um mercado importante principalmente em termos futuros, sobretudo para uma companhia como a Google que pretende oferecer os seus serviços a nível mundial.
Anteriormente, para entrar no mercado a Google já tinha cedido perante o governo chinês ao não admitir determinadas palavras que foram consideradas "perigosas" pelas autoridades chinesas em textos a circular através da rede da empresa. Essa cedência, já com algum tempo, mereceu severas críticas por parte do Ocidente.
Este é um braço-de-ferro em que a China não vai obviamente ceder. A presença da Google é favorável à China até certo ponto, por mostrar perante outros países do mundo, muitos deles clientes dos seus produtos, uma certa abertura que favorece a sua imagem e consequentemente o seu comércio. Mas existe, e tem mesmo que existir uma mão-de-ferro na condução da política chinesa. Governar um país vastíssimo, com 1350 milhões de pessoas, de várias etnias e com características e tradições naturalmente diversas, é algo muito diferente de administrar uma quinta ou uma empresa como a Google. É de admitir que esta abandone mais tarde ou mais cedo o mercado chinês. Assim, sempre salva a sua face.
1/16/2010
Desigualdades gritantes
No dia seguinte àquele em que ocorreu a tragédia no Haiti, fui a uma conferência sobre desenvolvimento a nível mundial. A conferência estava há muito planeada e não era, obviamente, o Haiti o seu tema principal. De resto, o nome deste pequeno país das Caraíbas nem sequer lá foi mencionado. E, contudo...
Na referida conferência, que se baseava no Panorama Económico e Social do Mundo, havia apenas um orador convidado, que preparou cuidadosa e até humildemente o que ia dizer, não se importando de ser menos correcto politicamente nalguns apartes que provinham da sua já longa experiência profissional. Estava a falar para uma pequena plateia maioritariamente constituída por engenheiros e economistas. No início da sessão, cada um dos presentes pôde recolher exemplares de uma síntese em português do World Economic and Social Survey 2009.
Ora, é deste relatório que retiro o gráfico acima. Creio que o que ele nos mostra é bastante elucidativo. As enormes disparidades económicas e sociais a nível mundial são bem visíveis. A propósito do muito badalado problema do ambiente e do aquecimento do planeta, o fracasso da cimeira de Copenhaga ocorreu em grande medida porque as desigualdades de desenvolvimento são tão acentuadas. Note-se que, desde 1950, em termos ambientais os países avançados têm sido responsáveis por aproximadamente 75 por cento do aumento das emissões de dióxido de carbono, apesar de representarem menos de 15 por cento da população mundial. O desenvolvimento económico continua a ser o principal desafio. Ora, esse desenvolvimento é importante não só para conseguir a erradicação da pobreza como também para reduzir gradualmente as enormes diferenças de rendimento entre os dois grupos de países. A ideia de manter inalterado o actual nível de desigualdade, enquanto o mundo procura resolver o problema do clima, não só é eticamente inaceitável como seria um factor de desestabilização política (estive a citar partes do relatório, que está na Net na sua versão integral).
No gráfico acima, verifica-se que a linha de paridade de poder de compra dos países do G7 (Estados Unidos, Japão, Alemanha, Canadá, Reino Unido, França e Itália) só foi ultrapassada há poucos anos pelo restrito grupo asiático a), que inclui Hong Kong, a Coreia, Singapura e Taiwan. Note-se que todos os outros países aqui referidos têm mantido uma linha que se afasta cada vez mais da do G7. A conversa do Produto Interno Bruto (PIB), isoladamente por país, é um bocado de treta, como todos sabemos. O PIB por habitante já dá uma ideia mais correcta. Simplificadamente, poderá dizer-se que a paridade de poder de compra entra aqui. Ora, repare-se como nos últimos 27 anos a situação se tem degradado substancialmente em matéria de desigualdade social (apesar da constante balela que apregoa exactamente o contrário).
E onde cabe o Haiti, cuja situação hoje toda a gente lamenta? O importante é que não nos esqueçamos que antes do tremor de terra a sua situação não era única. E também não era nada brilhante. Não se verificava, por exemplo, uma intensa procura por interruptores de electricidade, pois esta era – e é – inexistente em muitíssimas casas. O analfabetismo grassa entre a população. Mais de 50 por cento não sabe ler, nem escrever, nem fazer contas a sério. Porquê?, perguntar-se-á. É assim mesmo. Para que uns enriqueçam, outros têm de permanecer pobres. Assim como para que os governantes dos países subdesenvolvidos permaneçam nos seus postos eles têm de agradar aos investidores internacionais. Ora, o propósito do investidor não é o de ensinar o povo a ler, mas sim o de sacar dinheiro através de mão-de-obra barata e benefícios fiscais. É assim no Haiti, na Índia, na China. Os indivíduos mais letrados destes países há muito que o entenderam. É aqui que constitui uma enorme hipocrisia falar da situação do povo do Haiti como se fosse apenas o resultado de uma catástrofe natural e de agora. Celebridades do mundo do espectáculo e da arte oferecem uns milhões das suas contas pessoais, mas sabem antecipadamente que isso lhes é vantajoso: não só o Estado reconhece oficialmente as suas entregas em termos fiscais, como a sua imagem ganha ao nível da opinião pública. E a imagem conta muito. Sempre é melhor dar aos pobres do Haiti, que é um acto altruísta, do que entregar impostos ao Estado, algo que pode causar inveja pelo que dá a entender dos vultosos rendimentos auferidos.
Contou alguém na sessão acima referida que quando trabalhou num determinado banco internacional viu ser alocado um milhão de euros a um projecto dinamarquês apenas para a realização de um estudo que permitisse que a cor de uma ponte se mantivesse congruente com a paisagem. Para uma empresa em Moçambique terão ido três milhões de euros para construir uma torre anti-poluente numa zona onde, garantidamente, o ar era puríssimo. Quando um país oferece a outro subsídios é sempre sob uma cláusula de contratos com empresas nacionais: assim, em última análise, os subsídios revertem mais a favor de quem os dá do que de quem os recebe.
E agora, em termos de Copenhaga, como é que se pode levar países, que estão habituados a "colonizar" outros, a contribuir com elevados montantes, dentro de planos bem estruturados, mas sem qualquer retorno que não uma melhoria social a médio prazo e um melhor ambiente, tudo em termos globais? Que políticos são capazes, numa altura de sério desemprego para muitos países ocidentais, de levar os seus concidadãos a concordar com contribuições mais ou menos vultosas? Dado que a democracia depende imenso da opinião pública devido aos necessários votos dos eleitores, que políticos potencialmente ganhadores conseguirão levar o povo a fazer sacrifícios para o bem mundial? Será mais fácil dar um sinal contrário - o de proteger os nacionais - através de acções que dificultem a vida a trabalhadores estrangeiros, à semelhança do exemplo que a Itália nos está a oferecer.
A situação é complexa. No Haiti ainda houve um tremor de terra que, de forma politicamente correcta, leva com as culpas todas. A verdade é bem diferente. O brasileiro Gilberto Gil já a cantou, e bem, há uns anos atrás. Por sinal, exactamente em relação ao Haiti.
1/15/2010
Santana Lopes condecorado terça-feira por exercício de "funções públicas de alto relevo"
1/11/2010
Democracia ou dêmocracia?
Na imprensa, leio que do Tribunal Constitucional fazem parte cinco juízes-conselheiros indicados pelo PS, outros cinco nomeados pelo PSD, e três cooptados, incluindo o presidente. Pelo que me parece, portanto, o TC é constituído por 13 juizes, dos quais a grande maioria é eleita pela Assembleia da República. Por que cargas de água é que tem que ser o órgão legislativo por excelência a eleger os membros de um poder independente, como os tribunais teoricamente deverão ser? A prática de nomeação pelos partidos faz com que os juízes fiquem automaticamente enfeudados. Os membros do TC deveriam ser eleitos pelo poder judicial, independentemente da sua cor política.
Pergunto-me a mim mesmo qual será a constituição do Supremo Tribunal de Justiça.
Pergunto-me a mim mesmo qual será a constituição do Supremo Tribunal de Justiça.
1/09/2010
Público / Privado
Duas repescagens muito breves da imprensa:
1. A Câmara de Alenquer vai iniciar negociações em 2010 para rever o contrato de concessão com a Águas de Alenquer. Desde que a água foi privatizada, há cinco anos, a factura aumentou mais de 150 por cento.
2. Recuar nas obras públicas seria de molde a causar grandes dificuldades às construtoras e acarretaria uma perigosa onda de choque que abalaria o BCP e, por via disso, a CGD.
1. A Câmara de Alenquer vai iniciar negociações em 2010 para rever o contrato de concessão com a Águas de Alenquer. Desde que a água foi privatizada, há cinco anos, a factura aumentou mais de 150 por cento.
2. Recuar nas obras públicas seria de molde a causar grandes dificuldades às construtoras e acarretaria uma perigosa onda de choque que abalaria o BCP e, por via disso, a CGD.
1/04/2010
Descobertas e achamentos
Passamos a vida a aprender coisas que nos ensinam das mais diversas maneiras e, de quando em vez, fazemos as nossas próprias descobertas. Não é raro que nos tenham ensinado isto e aquilo que, mais tarde, temos que corrigir ou, pelo menos, ver sob um ângulo diferente. Mesmo as palavras "descobrimentos" e "descobertas" são hoje contestadas relativamente a várias coisas. Após estudarmos que os portugueses de antanho fizeram a descoberta de numerosas terras, somos confrontados com a contestação de que, afinal, não se tratou de descobertas propriamente ditas, mas apenas de achamentos. O posicionamento do Brasil relativamente a este facto é bem ilustrado por A Chegança, um painel de azulejos (foto) existente na estação do Metro dos Restauradores, em Lisboa. Concebido pelo brasileiro Luiz Ventura, ele descreve à sua maneira o "achamento" do Brasil, terra que era há muito habitada por largos milhares de pessoas e, portanto, não podia ter sido "descoberta". A palavra "descoberta" teria na sua origem a óptica europeia: descoberta-para-a-civilização-da-Europa. Ora este facto colocaria a Europa no centro do mundo, denunciando assim uma insuportável supremacia de um continente sobre os outros.
Mas punhamos de lado estas questões e passemos para o lado bonito do descobrir. De facto, a quase totalidade das coisas que nós sentimos descobrir já foi, há muito ou há pouco tempo, descoberta por outros. Contudo, chegar lá pelos nossos próprios meios tem o sabor da descoberta e essa é uma sensação geralmente inesquecível. Recordo-me que em miúdo gostava de trautear canções populares brasileiras, daquelas que falavam em quindins, em vatapã, em berimbau, em jacarandás ("meu limão, meu limoeiro, meu pé de jacarandá...") e em tantas outras coisas que me sabiam bem dizer a cantar mas de que eu na realidade não sabia o significado. Durante a viagem que há anos fiz ao Brasil, foi como que uma revelação descobrir, por terras da Baía e de Minas Gerais, que afinal os "quindins de Iaiá" ultrapassavam o mundo da canção e existiam como docinhos à venda nas ruas. Os quindins entraram-me pela boca dentro com um gostinho muito especial. (A cena evocou-me aquela vez em que a minha mulher abriu a porta da nossa casa a alguém que tinha tocado à campainha. Depois, vi-a virar-se para mim com os olhos muito abertos e um sorriso: "Afinal, eles existem!" Quem tocara à porta era um limpa-chaminés a perguntar se queríamos que ele varresse a chaminé da nossa cozinha com a sua vassoura gigante. Para ela, o limpa-chaminés não passava, até aí, de um personagem dos livros, de histórias de ficção. Súbita e inesperadamente estava um ali agora, em carne e osso, com cara enfarruscada e tudo!)
Naquela altura no Brasil, para mim era a história dos quindins. E o vatapã? Idem. E o berimbau, que, devo confessar, nunca encarei como um instrumento musical e que estava ali mesmo à venda na lojeca de S. Salvador? Descobre-se que estas coisas têm existência real e passam assim, para nossa surpresa, do imaginário para a vida. É um descobrir bom. Não tem um significado material importante, mas...
Durante a primeira vez que estive em Roma, fui sozinho a pé visitar o Coliseu. De maneira nenhuma experimentei a sensação de descoberta. Estava ali apenas uma velha estrutura que eu tinha já visto inúmeras vezes em filme e fotografia. Impressionou-me principalmente pelo seu ar decrépito. Mas lembro-me que, ao olhar para a ainda magnífica construção, voei até ao tempo dos imperadores Flávios que o tinham construído e recordei, para mim próprio, que datando mais ou menos daquele período nós tínhamos em Portugal uma cidade que pelo seu nome lhes estava ligada: Chaves (Aquae Flaviae). E aí, sim, experimentei uma viva sensação ao associar o tempo em que o Coliseu foi construído com a era da construção da ponte sobre o Tâmega, na mesma cidade de Chaves. E fiz a ligação entre o nome do rio que corre na nossa província isolada de Trás-os-Montes com a designação de outro rio que flui num outro lugar bem mais movimentado – Londres – e, postado junto do Coliseu, invadiu-me a sensação de um tempo palpável, ora a fluir muito depressa, ora quase parado (o nome actual do rio londrino é Thames, bem diferente do original Tâmega da era romana, que no entanto se mantém ainda hoje em Trás-os-Montes). Houve todo um jeito de descoberta de coisas que estavam lá há muito tempo mas que agora eu via de forma diferente, como que com outros olhos.
Às vezes, também visitar museus pode produzir uma idêntica percepção. Há relativamente poucos anos, fiquei especado durante alguns minutos em frente ao busto de Péricles que encontrei no Museu de Arte Antiga, em Berlim. Era o mesmo dos meus manuais de História do Mattoso (pai). Senti o tempo perpassar por mim, desde os meus catorze anos e, noutra perspectiva, desde a era de Péricles – século V antes de Cristo - até àquele momento. Tratava-se de outro velho amigo. Como a cabeça de Nefertite o foi ao visitar o Neues Museum, da mesma cidade de Berlim. E a Gioconda, no Louvre. Ou a Torre de Londres, com os seus vicentinos corvos a transportarem-me para a nossa Sé de Lisboa do tempo em que o seu primeiro bispo era um inglês.
Estas viagens de descoberta, que nada têm de novo para os outros mas constituem uma experiência rica para quem as faz, permanecem na memória como óptimos momentos. De súbito, descobre-se que... Descobre-se, por exemplo, que o Taj Mahal consegue transmitir-nos ainda maior beleza no local do que em qualquer uma das belas fotografias que circulam por aí. Descobre-se que as pirâmides do México, sejam elas a de Chichen-Itza, de Palenque ou de outro lugar, servem perfeitamente para mostrar a serpente que nos equinócios de Março e Setembro se vai estendendo pelos seus degraus abaixo, com contornos de luz e sombra, como D. H. Lawrence a descreve no seu romance A Serpente Emplumada - o Lawrence que peregrinou pela cidade mexicana de Uaxaca, onde eu próprio adorei saber que Uaxaca era o nome indígena para uma das árvores que povoou a minha mente desde miúdo: o jacarandá.
Descobrir assim dá-nos um gosto muito especial, embora só descubramos as coisas para nós mesmos. Foi assim também que, sem o esperar, aprendi que a expressão "prata da casa" provinha das ricas famílias que se estabeleciam por exemplo no Brasil e que mantinham nas suas opulentas baixelas de prata, enormes bandejas, etc. a reserva material à qual recorreriam em caso de extrema necessidade. De súbito, uma expressão que eu sempre usara ganhava um novo significado e estava ligada a pessoas e às suas vidas.
Sinto que descobrir é muitas vezes reeencontrar o rio da nossa infância, numa época em que quase acreditávamos mais no milagre do que na realidade. Lembro-me de, aos dez/onze anos, copiar através de papel vegetal mapas de um velho atlas que existia na casa onde eu então morava. O meu continente favorito era África. Com o lápis, decalcava a costa africana, ao mesmo tempo que imaginava como aquilo seria. E os rios que lá iam ter, depois de uma longa viagem pelo interior. Lembrei-me muito desses mapas quando, anos mais tarde, durante o meu serviço militar em Angola, estive durante vários meses junto ao rio Cuanza, um daqueles que eu gostava de percorrer com o lápis ao mesmo tempo que a minha imaginação saltava de ramo em ramo pela floresta virgem à boa maneira de Tarzan. Não era bem assim a realidade, mas tudo tinha o encanto especial da descoberta.
Do Egipto, onde nunca fui, vi imensas fotos e li variadíssimas reportagens. Curiosamente, foram dois obeliscos genuínos, um trazido para Paris por Napoleão e hoje colocado na Praça da Concórdia, e o outro em Nova Iorque, a que chamam a Agulha de Cleópatra (Cleopatra’s Needle), junto dos quais estive, que me fizeram transportar mais para a grande civilização do Egipto e dar-me uma ideia concreta da sua grandeza.
Sempre que surge alguma coisa que se "descobre" é um alento novo que nos vem à alma. Há pouco tempo tive uma surpresa. O nome de José Martí não me dizia muito, mas ao ler umas páginas sobre a maçonaria calhou que o seu nome aparecesse mais do que uma vez. Fiquei curioso, principalmente quando li que José Martí tinha sido iniciado em 1871 no nosso Grande Oriente Lusitano Unido, actual G.O.L. José Marti nasceu em 1853 em Havana, Cuba, filho de pai espanhol e de mãe canarina. Iniciado maçon aos 18 anos, já anteriormente revelara alguma inquietude mental que traduzira em panfletos e numa clara inclinação para ideias revolucionárias. Tornou-se um político genuíno, dos que sentem o que dizem. Pensador evoluído, foi ainda jornalista e poeta. Acabou por morrer pela independência da sua pátria cubana às mãos de soldados espanhóis que, depois de mutilarem o seu corpo, o exibiram à população. Hoje em dia, disse-me a minha filha, que tinha visitado Cuba, José Martí é o herói nacional cubano, homenageado com nome de rua e praça em Havana e noutras localidades. Ouvir falar assim de alguém que eu desconhecia quase totalmente até então transportou-me até à fervilhante parte final do século XIX, altura em que também em Portugal tínhamos tido, entre outras coisas, as importantes Conferências do Casino plenas de ideias novas. E, eu que andava a preparar a Escrita de Referência, uma compilação de citações breves e de excertos mais longos de obras que tinha lido e que me tinham seduzido, encontrei alguém a perguntar-me quando mencionei em conversa a clássica frase "Há três coisas que cada pessoa deveria fazer durante a sua vida: plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro": quem foi que disse isso? Admiti que não sabia. Procurei na Internet e a surpresa foi total: o seu autor tinha sido... José Martí.
Tudo isto são descobertas pequenas, a par de muitas outras que só têm importância para quem as faz. Achamento, descoberta, quanto vale essa diferença? O prazer de descobrir e aprender por nós próprios é que não tem preço. E o mundo tem tanto de interessante para descobrir por cada um de nós!
1/01/2010
MIGHT IS RIGHT
É frequente colocarmo-nos a questão se existe ou não vantagem no facto de uma pessoa possuir poder. A resposta não é difícil: o poder constitui, normalmente, uma vantagem – a não ser que um poder maior o derrube. O grande trunfo de uma democracia a sério reside num verdadeiro estado de direito, que julga os casos independentemente do poder das pessoas envolvidas num determinado processo. Mas isso é raro encontrar, como se sabe.
E quanto a nações? É o poder igualmente importante? É, sem dúvida. Tanto ou mais, de facto. Só que esse poder encontra muitas vezes pela frente outro poder, e daí pode eclodir uma guerra. A força das armas, prova-o a História, é fundamental para uma supremacia de facto. Mesmo que seja apenas como elemento dissuasor.
A título de exemplo, muitos portugueses lembrar-se-ão bem do caso dos territórios portugueses na Índia, em 1961. O que poderiam fazer as nossas tropas, em número ínfimo perante o enorme exército indiano? Os indianos tinham o poder (might) e isso dava-lhes automaticamente razão (right). É assim. Esqueçamos a eventual razão no papel. Não passa da forma a lutar contra a substância.
Em tempos de paz, o poder militar, e também o económico, continuam a ser uma mais valia para dirimir certas questões. Recentemente, o Egipto, que foi outrora ocupado por europeus, lançou uma agressiva campanha destinada a recuperar para os seus museus nacionais peças preciosas que hoje ocupam papel de destaque em vários museus da Europa, de Londres a Berlim, passando por Paris, Viena e Budapeste. Têm logrado algumas pequenas vitórias. Por exemplo, conseguiram que o Museu do Louvre lhes devolvesse fragmentos de um túmulo com 3200 anos. Porque não devolver esses fragmentos?, terão as autoridades franceses pensado. Urge manter boas relações com países que nos compram aviões e armas. E, afinal, o que representam estes fragmentos que possuem a vetusta idade de três milénios, quando temos tantos outros?
Porém, outros bustos de Nefertiti, como aquele, lindíssimo, que se encontra no Museu de Arte Antiga em Berlim e que a foto acima reproduz, é que não há. A peça é um dos ex-libris do conjunto museológico de Berlim, juntamente com a Porta de Ishtar e a Via processional dos Leões, da antiga Babilónia, também acima mostradas em foto. A resposta da poderosa Alemanha ao pedido do Egipto para devolução de "Nefertiti" foi um rotundo "não!". Dizem os alemães que o busto foi legalmente adquirido há pouco mais de 100 anos. Além do mais, alegam, trata-se de uma peça artística demasiado frágil para ser transportada.
Ora, a partir daqui, que podem as autoridades egípcias fazer? Declarar guerra à Alemanha? Claro que não. Might is right. Os alemães têm (a sua)razão. Não foram também os poderosos americanos que tiveram razão quando, no final do século XIX, a Espanha se dispôs tenazmente a manter em sua posse a "fidelíssima" ilha de Cuba, contra o parecer dos Estados Unidos da América, vizinhos dos cubanos? O resultado foi: a derrota da Espanha, a entrega de Puerto Rico aos Estados Unidos, assim como de Guam e, imagine-se, das Ilhas Filipinas – tudo por uma quantia que foi francamente simbólica em face do valor que estava a ser doado.
É por múltiplas lições da História como esta que a Nefertiti vai mesmo ficar em Berlim. A não ser que, um dia, um anónimo egípcio enraivecido a destrua com uma bomba ou coisa parecida. Porém, aí a Nefertiti morreria de vez e ninguém lucraria com a acção. Acabaria por ser uma causa inglória, uma clássica vitória pírrica.
P.S. Este é um assunto muito mais vasto - basta o facto de incluir o colonialismo. Porém, os blogues não apreciam textos extensos. E, já agora, também não lhes agrada ver fotografias engalfinhadas umas nas outras. As minhas desculpas. Quantidade não significa qualidade.
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