É cedo. A cidade não acordou ainda. Ouve-se passar um carro de vez em quando a subir celeremente a Alameda. Por uma vez, o condutor consegue fazer o trajecto no tempo que os anúncios atestam ser a distância entre novas urbanizações e o centro da cidade. Tudo está calmo, com o escuro da noite a cobrir ainda por igual tanta coisa que é diferente. O galo dos quintais das traseiras lança agora o seu primeiro grito, a que se segue um segundo. Será este o famoso galo que pensa que, sempre que canta, o sol se levanta? Insiste mais duas vezes, três. Acordou com toda a energia. Estes quintais da cidade, estrategicamente escondidos nas traseiras dos quarteirões que formam as ruas, dão-nos o cheiro do campo, embora de forma limitada. São terrenos que deixam crescer limoeiros e laranjeiras, nespereiras e figueiras, couves, salsa e coentros. Lá ao fundo do talhão das traseiras do meu prédio há uma grande araucária, que agora ainda se não divisa, e aqui perto de mim um vizinho plantou há pouco tempo uma bananeira que já cresceu o suficiente para nos mostrar belos cachos. O galo deve ter acordado os meus vizinhos de cima. O "patinhas" é o primeiro a dar sinal. Percorre a casa em passo de corrida a mostrar que é muito activo. É-o, de facto. Quem o oiça apenas de patas na alcatifa ou no mosaico da cozinha poderá imaginar que se trata de um cão pequenote, uma estimação que se tem num andar de cidade e se leva à rua obrigatoriamente para as incontornáveis necessidades. Nada disso. É um pitbull, verdadeira escola de musculação para a sua dona, que o leva ao relvado aqui perto, sempre bem preso e a receber enérgicas ordens de comando. Um relógio de parede bate as horas. Em prédios com vários inquilinos estes são relógios altamente inconvenientes. Informam-nos daquilo de que não queremos ser informados. À força. Em caso de insónias são como um martelo em cabeças cansadas. Os canos da água começam a fazer-se ouvir. Alguém está a destremunhar-se com a chicotada de um duche quente. Dentro em pouco estará na sua pastelaria habitual, pronto a tomar um café ainda mais acordante. Volta a cantar o galo, já sem o mesmo elan talvez, mas sempre duas vezes. Um dia alguém se lembrará de lhe cortar a goela. Acabar-se-á o som vivo do alvorecer desta parte do campo na cidade. Ficarão outros, e manter-se-á também o ocasional pio das gaivotas do Tejo que fogem do mau tempo no rio e se vêm empoleirar nos telhados aqui da zona. O barulho dos carros torna-se mais frequente. Um avião que está talvez a concluir uma longuíssima viagem desde a América sobrevoa a casa em direcção ao aeroporto não longe daqui. A cidade acorda lentamente, sem grandes sobressaltos. Não há sirenes de ambulâncias a conduzirem pessoas aflitas ao hospital, não há gritos de algazarra da vizinhança. Ainda não houve tempo para ninguém se zangar com outro humano das suas proximidades. Passa mais um avião. Os taxistas da Portela devem começar a agitar-se, perguntando-se se lhes vai calhar o bolo-rei ou a fava. Os primeiros pássaros chilreiam nas árvores. Trocam sinais sonoros uns com os outros. A passarada do quintal da escola primária da rua costuma rivalizar com a chilreada das crianças, mas isso será só daqui a umas horas. As portas que se abrem e fecham no andar de cima ecoam mais do que o normal. O elevador do prédio ainda não funcionou. Começou o primeiro ladrar dos cães. Um pássaro que não identifico canta lindamente aqui por perto. Responde-lhe um canário com trinados. A rua continua escura. As nuvens que decerto cobrem o céu fazem os aviões passar mais baixo. O cão madrugador insiste na sua tentativa de acordar a dúzia dos seus compadres da vizinhança. A velhota que julgo nunca ter visto nos muitos anos que moro neste edifício não lançou ainda o seu costumeiro grito "Ó Alfreeedo!", a chamar aquele que é o seu pronto-socorro em caso de necessidade. Espreito à procura de claridade através da janela. Um gato faz calmamente a sua lavagem matinal sobre a placa de cimento dos cubículos das arrecadações, a bom recato de eventuais investidas da cãzoada. Há luzes nalgumas casas, poucas. Só os pássaros e outra bicharada é que estão bem despertos já. O género humano citadino continua a estender o seu sono o mais possível. Entretanto, pessoas da periferia urbana estarão já a encher combóios e autocarros, a tagarelar alegremente ou a ter as primeiras desconversas do dia. É tudo sempre mais ou menos assim. Um acordar sem notícia, um despertar suave, com a placitude de tempos que dir-se-ia inalterados desde sempre.
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