Quando, há mais de trinta anos, comecei a fazer a preparação de guias-intérpretes em língua inglesa, comecei a ter algum feedback dos novos profissionais. Esse feedback iria enriquecer em muito as minhas aulas dos anos seguintes e emprestar-lhes-ia diversas facetas novas. Três breves exemplos:
-- "No outro dia tive um ministro americano no meu autocarro", disse-me a recém-formada guia, orgulhosa do seu novo status.
Viemos ambos a apurar, ao fim de um ou dois minutos, que afinal o celebrado "ministro" era apenas um padre (minister).
-- Porque é que eles se riem tanto quando eu lhes digo que "we have the most beautiful cocks in the world"?
Não era difícil imaginar porquê, já que a jovem guia-intérprete se referia aos coloridos galos de Barcelos, enquanto para os seus turistas "cock" é apenas uma forma slang de dizer "pénis".
-- Quando lhes apresento o Mosteiro dos Jerónimos, alguns turistas americanos começam a gritar "Geronimo!" Estou a dizer alguma coisa mal?
Nem pensar! O que sucedia era apenas o resultado de uma cultural viagem transatlântica de ida-e-volta que, quinhentos anos depois, ainda produzia aquele efeito.
De facto, quando os espanhóis se lançaram na sua grande aventura das Américas na charneira do século XV-XVI, elegeram um vastíssimo território americano como Nueva España. Esse território, que foi entretanto amputado de cerca de um terço da sua superfície pelos norte-americanos, constitui o México actual. Entendendo que língua, religião e armas eram os elementos necessários para subjugar os nativos, os espanhóis introduziram o uso obrigatório do castelhano, constituíram as suas próprias guarnições militares e trataram de enviar numerosos membros das suas ordens religiosas. Se o barroco mexicano é hoje um dos mais apreciados do mundo, tal se deve sem dúvida à abundância de ouro local, sábia e artisticamente usado por essas ordens para construirem El Dorados na Terra, para assim mais facilmente domarem os nativos aztecas, mixtecas, maias e outros.
De entre as ordens religiosas destacaram-se os Franciscanos -- deve-se a eles o nome da cidade de São Francisco, hoje território norte-americano --, os Dominicanos (da Inquisição) e os Jerónimos. Estes últimos tinham o seu grande centro na Extremadura espanhola, na área de Cáceres, Trujillo e Medellin, locais de origem de grandes conquistadores espanhóis como Fernando Cortéz e Pizarro. O grande centro hieronimita era Guadalupe, ainda hoje local de peregrinação.
Por este motivo, a Virgem Negra de Guadalupe foi transplantada para o México, onde foi proclamada a Imperatriz das Américas por indicação expressa do Vaticano. Dada a grande influência da ordem hieronimita, o nome Jerónimo foi dado a muitos nativos "índios", como símbolo evidente de cristianização. Ora, nas suas campanhas de alargamento de fronteiras à custa do território mexicano, os norte-americanos depararam com forte resistência por parte de tribos indígenas. O chefe de uma dessas tribos chamava-se Jerónimo ("Geronimo", na grafia usada pelos americanos) e, ao grito do seu nome, os bravos índios arremetiam destemidamente contra as bem equipadas tropas dos Estados Unidos, dando assim a sua vida pela causa da defesa das terras. O nome Geronimo tornou-se nos Estados Unidos símbolo de bravura e destemor. Décadas mais tarde, os pára-quedistas americanos adoptaram o uso de gritar Geronimo! quando se lançavam no espaço -- igualmente como testemunho da sua coragem e audácia.
Por esta digressão cultural de torna-viagem se compreende como é natural e até saudável que os turistas americanos exclamem Geronimo! ao ouvirem o nome do mosteiro. Afinal, o edifício que visitam está também virado para as Américas, só que o destino dos portugueses foi uns tantos graus mais para sul: o Brasil.
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