No já longínquo ano de 1958, trabalhei durante alguns meses na cidade de Colónia, naquela que era então a mais moderna filial dos grandes armazéns alemães Kaufhof. Estar a trabalhar numa firma com aquela dimensão foi para mim uma novidade total. No meu país só cerca de 40 anos depois viríamos a ter algo semelhante. Ora, a cadeia Kaufhof, na altura com mais de cinquenta filiais em toda a Alemanha, tinha baseado o seu modelo nos armazéns americanos Lafayette, com os quais detinha alguma parceria. A dimensão daqueles estabelecimentos comerciais era a dimensão do futuro, como o tempo acabou por demonstrar. Assim, ao gigantismo de algumas firmas americanas sucedeu o gigantismo das suas congéneres europeias. Tinha começado uma longa luta. A melhor maneira de combater um Golias é, afinal, através de outro Golias ainda mais forte, e não através de um David que a história registou essencialmente por ter sido uma notável excepção.
Das firmas de dimensão até então inédita passou-se, entretanto, às fusões de grandes companhias, que acabaram por criar potentados ainda maiores. Esses novos potentados cedo galgaram as fronteiras nacionais, espalhando-se por todo o mundo. Das grandes firmas nacionais às poderosas multinacionais e ao movimento globalizador foi um passo rápido, por ser de gigante. A facturação dessas companhias multinacionais começou a ser frequentemente comparada com o PIB dos Estados. O gigantismo imperava. Entretanto, duas grandes potências dominavam a cena política: os Estados Unidos e a União Soviética. Ambas estrategicamente "anti-imperialistas" nas suas próprias palavras, lograram desmantelar os velhos impérios coloniais de nações europeias como o Reino Unido, a França, a Holanda, Bélgica e Portugal. A Europa, emagrecida e enfraquecida, não viu outro remédio senão fundir-se, seguindo o método das firmas comerciais. Um Mercado Comum tomou forma. Ideólogos de vistas largas entreviram, nesse meio tempo, um futuro de prosperidade e paz para um continente que se moldara à custa de guerras e rivalidades entre várias regiões e Estados. A ideia de fusão de nações para fazer contrapeso aos grandes blocos começou a ganhar força, que aumentou quando a União Soviética se desintegrou e deixou os Estados Unidos como grandes Senhores do Universo. A fusão começou a efectuar-se numa base essencialmente económica de abolição de fronteiras e troca de mercadorias. Ver a Grã-Bretanha e a França no mesmo barco constituía um pequeno milagre. Milagre não menor era encontrar a Alemanha e a França de braço dado. A verdade é que a estratégia das elites políticas, com a sua visão macro, fazia todo o sentido: num mundo que, macluhanamente, se transformara numa aldeia global, porque não unir os Davides mais ou menos quixotescos para formar um poderoso Golias? Criaram-se estruturas. Bruxelas e Estrasburgo começaram a ser nomes com peso. Mais recentemente e graças a um enorme salto, juntou-se a parte monetário-financeira à componente económica. Uma vez criado, o euro ousou enfrentar e afrontar o todo-poderoso dólar. A Europa viu no seu crescimento a panaceia não só para a sua sobrevivência como para um eventual domínio num mundo assaz competitivo. Contudo, continuavam a ser basicamente as elites políticas aquelas que desbravavam o caminho. Eram elas que pensavam por uma população que, entretanto, fustigada pela deslocalização de empresas e pela "invasão" de potenciais concorrentes tanto da Europa de leste como do mundo islâmico, começou a sentir-se cercada na sua própria casa. Taxas de desemprego elevadas, poucas soluções concretas à vista e diminuição de regalias sociais lançaram parte da população europeia para um ambiente de dúvida e incerteza quanto ao grande sonho. Enquanto países pequenos como a Estónia, a Letónia, a Lituânia ou Malta festejavam a sua entrada no Clube dos 25 -- que lhes dava a protecção de que anteriormente nunca tinham gozado --, outras nações como a França, a Alemanha e a Holanda começaram a duvidar. Como países que tinham sido contribuintes líquidos da União Europeia, questionaram a bondade do projecto criado pelas suas elites. A passagem da simples mobilidade de mercadorias para a possibilidade de mobilidade de trabalhadores (Directiva Bolkestein) foi tocar uma corda muito sensível da população. A realização de referendos para a ratificação do projecto de Constituição Europeia levou à discussão desses assuntos, na base de raízes culturais de que a maioria das nações não abdica. Não podemos esquecer que, na generalidade, os países se formaram à custa da demarcação dos seus vizinhos. A bandeira, o hino e a Constituição vieram depois. Alguns dos feriados nacionais de países europeus têm a ver com a sua emancipação dos vizinhos rivais, como por exemplo sucede com o nosso 1º de Dezembro. Quem pretenda comparar a formação da União Europeia com a dos Estados Unidos da América encontra aqui uma situação completamente diferente. Nos EUA tratou-se de emigrantes à procura de novas raízes e de um Novo Mundo. Mesmo assim houve guerra entre nortistas e sulistas. Aqui são países com profundas raízes centenares, em busca de um projecto sólido que os torne unidos. Estão, naturalmente, a vir ao de cima rivalidades e todo um passado cultural. Digamos que falta, idealmente, um inimigo comum declarado. Esse "soit-disant" inimigo existe na consciência das elites, mas é algo que só dificilmente seria passado para as populações, até porque o mero objectivo de prosperidade material não é um produto fácil de vender.
Para as elites políticas, o que está a suceder com o "não" ao projecto de uma Constituição para a Europa é uma enorme desilusão. Justificadamente. Para a população de alguns países, nem tanto. Em Portugal, creio que a situação será de aceitação, fundamentalmente porque se teme o fechar da torneira dos fluxos monetários. Como um jogo de palavras deixa, afinal, transparecer: suportamos o alemão arrogante porque o ar rogante que apresentamos nos traz dinheiro. Bruxelas é o CEEbastião do nosso velho sebastianismo.
Entre a elitocracia dos políticos, com a sua visão macro, e a democracia da generalidade da população, mais preocupada com o micro-ambiente que a rodeia, joga-se uma cartada importante. Por enquanto, o resultado é uma verdadeira incógnita.
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