Nestes dias de calor, uma pequena pausa dos assuntos políticos leva-me a uma ligeira divagação. Sobre a água, naturalmente, que é algo que apetece neste momento.
Que a água é um elemento essencial para a vida, ninguém duvida. Contudo, nem sempre se associa a sua existência à formação de povoações. Olhando para um simples mapa de Portugal -- o que é profundamente redutor, diga-se, nesta era de realidades globalizadas --, vemos que cidades como Viana do Castelo, Porto, Coimbra e Lisboa, para não mencionar outras, não só se situam junto a rios como se erigiram todas na margem direita, norte, desses rios (Lima, Douro, Mondego e Tejo). Embora não haja apenas uma razão para o facto, a mais importante historicamente foi decerto a barreira natural que a água do rio constituiu para invasores que, tradicionalmente, vinham do sul. Seja como for, a água dos rios possibilitava muitas coisas, desde o desenvolvimento através de trocas comerciais até vários outros tipos de utilização. Não é, portanto, por mero acaso que o mapa de Portugal se inclina em perigosa assimetria sobre os rios e a costa: os rios correm para o mar. Sem água não há grande desenvolvimento possível.
Nesta linha, um caso português interessante é-nos dado por uma povoação nascida com a batalha de Aljubarrota. Tendo o vitorioso embate sido considerado decisivo para a manutenção da soberania portuguesa nos finais do longínquo século XIV, logo se projectou construir um grande mosteiro que celebrasse aquela memorável vitória sobre os castelhanos. Assim se fez. Por que motivo, porém, não foi o mosteiro construído no exacto local da batalha? Pela simples razão de que lá não havia água! Que a região era seca bem o atesta uma bilha sempre cheia que se encontra num nicho, na parte exterior da capela erigida no local. Uns cinco quilómetros mais abaixo -- porque os rios não costumam correr nos altos mas sim nos vales -- passava o Lena, afluente do rio Lis, que servia perfeitamente. E foi lá que o mosteiro foi construído e a actual povoação da Batalha cresceu.
Fazendo uma curta digressão linguística pela Europa mais próxima, encontramos na vizinha Espanha o "Rio Grande" dos muçulmanos andaluzes -- o Guad-al-quivir --, que serviu para formar Sevilha, Córdova e outras localidades. A mais de uma centena de quilómetros de distância, o rio Ardo contribuiu para a fundação da cidade jóia da coroa árabe, da qual localmente se diz que "não há maior infelicidade no mundo do que ser cego em Granada". Claro que também Madrid tem o seu Manzanares, Salamanca o seu Tormes, Barcelona o Mediterrâneo, aliás tal como Marselha, já em França, onde Paris tem o seu Sena.
No que respeita aos nomes das povoações nos diversos países, eles mencionam frequentemente o rio ou, pelo menos, pressupõem-no. Assim, voltando a Portugal, contamos com topónimos como Ponte de Lima, Ponte da Barca, Arcos de Valdevez, Porto, S. Pedro do Sul, Figueira da Foz, Tomar, Lisboa, Algés, Odemira, Odeleite, Odivelas, entre muitos outros. Seguindo a ordem acima, anota-se a existência de uma ponte sobre o rio Lima, de uma antiga barca que servia de transporte entre as duas margens, uma ponte com arcos sobre o rio Vez, um porto (fluvial e marítimo), o rio Sul, a foz do Mondego, o antigo nome árabe do rio, a "enseada amena" (Allis Ubo), uma ribeira chamada Gés e outras começadas por "ode", palavra que constitui a versão de "guad" (v.g. Guadiana) do lado ocidental e sul português (Mira, Leite e Velas).
Linguisticamente, nós, portugueses, "possuímos" o rio e, consequentemente, usamos a preposição "de", v.g. Maceira do Lis, Miranda do Douro. Outras línguas, como a francesa, a inglesa e a alemã são mais objectivas e preferem uma preposição de localização: "sur" em francês (Auvers-sur-Oise, por exemplo), "on" ou "upon" em inglês (Stratford-on-Avon, Newcastle-upon-Tyne) e "an" em alemão (Frankfurt-am-Main).
Milhentas outras localidades em língua inglesa incluem sufixos com ligação a água. Esse sufixos são, tanto quanto me lembro neste momento, -bridge, -ford ,-mouth e -port. Alguns exemplos: Cambridge, Waterbridge, Oxford, Plymouth, Portsmouth, Newport. Pois, está bem de ver que em Cambridge existe uma ponte sobre o rio Cam, que em Oxford o rio não é muito largo pois permitia antigamente que os bois o atravessassem -- to ford a river significa atravessar um rio --, que Plymouth e Portsmouth ficam na foz (mouth) de rios, e que Newport implica uma nova cidade junto ao mar. Isto não tem nada de novo, mas às vezes pode suceder que algum leitor nunca tenha passado no assunto e se interesse minimamente. Da mesma forma, Innsbruck recebe o nome de uma ponte sobre um dos principais rios da Áustria (o Inn) e Frankfurt-am-Main vem dos tempos dos exércitos de Carlos Magno, os quais, na sua campanha pan-europeísta, acamparam e desenvolveram uma primeira povoação num sítio onde o rio Main (Meno, em português) não era muito largo e, portanto, permitia a comunicação entre as duas margens. É o -ford de Oxford na sua versão alemã, que também aparece em Klagenfurt, por exemplo, sendo aqui também uma passagem entre montanhas, o que, aliás, sucede igualmente com os célebres "fiordes" escandinavos. E assim chegámos a uns territórios mais frios, o que sabe bem neste tempo de calor tórrido.
Uma última dica: entre os seus inúmeros deuses, os romanos tinham o seu deus dos portos. Chamava-se Portunus. Exactamente para não me tornar ainda mais "inoportuno", termino aqui.
Sem comentários:
Enviar um comentário