2/26/2006

A título excepcional

Já alguma vez repararam como as barreiras que no futebol se formam para defender as balizas tendem a avançar sempre um passinho ou dois antes que o jogador adversário dispare o seu chuto? Esse não respeitar as regras é o prato do dia. Não se trata de uma ilegalidade total. É apenas um jeitinho.
É também este jeitinho que, ao longo da nossa vida, vamos encontrando em múltiplas reuniões. O regulamento diz uma coisa, mas "este regulamento já deveria ter sido alterado". É assim que se actua frequentemente quando uma pessoa "que interessa" sairia prejudicada pelo cumprimento cabal do regulamento. Mas depois, como passar isso para a acta? É fácil, e há muito que existe fórmula apropriada: "A título excepcional, o Conselho determinou que..." É a autonomia local a vigorar sobre a lei geral. Espera-se que ninguém conteste. Afinal, todos votaram a favor, ou houve pelo menos uma larga maioria.
A título excepcional se vão fazendo favores sobre favores. São, no fundo, as cunhas ou, como agora se diz, as informalidades. Quando mudam os presidentes, os conselhos ou as administrações, talvez seja melhor não mexer nesses assuntos. "O que lá vai, lá vai. Não estamos cá para remexer no passado, mas sim para pensar no futuro!"
Porém, a coisa fez-se. E quando surge um caso semelhante, às vezes o precedente é mais importante que o presidente.

2/25/2006

Quantidade e qualidade

Num artigo inserido no Público, a professora Maria do Carmo Vieira afirma que hoje em dia existe um número descomunal de disciplinas no ensino básico: quinze! Aos miúdos fica assim negado o direito ao seu tempo livre e igualmente ao seu tempo de estudo.
Embora não conhecendo o assunto suficientemente bem, não posso deixar de ficar surpreendido com o número de disciplinas. Quinze!
Este facto trouxe-me à mente, por contraste, um dos dias mais felizes da minha vida. Tinha dez anos. Tendo feito a instrução primária na província, prestei provas de admissão aos liceus em Lisboa. Para continuação dos meus estudos, fui para Paço d'Arcos, onde poderia ficar em casa de uns tios. Iria fazer os meus primeiros dois anos do liceu com uma professora particular exactamente em Paço d'Arcos. A referida senhora dirigia um orfanato em Lisboa e preparava para o 1º e 2º anos na sua própria casa. Tinha grupos reduzidos de alunos, oito ou nove. No primeiro dia, apresentei-me, com toda a timidez de provinciano. Foi aí que, após a natural apresentação, a professora anunciou que as aulas do 1º Ano eram só da parte da manhã - rejubilei! - e... dia sim, dia não. Saltei! No meu regresso a casa, nem queria acreditar! (Só no 2º Ano é que as aulas seriam diárias, mas igualmente numa parte do dia.)
Tínhamos trabalhos de casa regulares, a aprendizagem foi excelente, passámos todos no 2º Ano e eu até dispensei das orais, com média de 16. Entretanto, os meus tempos livres foram fenomenais. Fiz bons amigos e passei um tempo que já na altura eu considerava estupendo. É por tudo isto que me surpreende - e faz imensa pena - que no ensino básico o número total de disciplinas seja de quinze! E tempo livre para a miudagem?

2/24/2006

Fitas

Leio no último número de uma conhecida revista americana que, sob o ponto de vista cultural, a América sempre tendeu para o provincianismo e pouco mais olha do que para o seu próprio umbigo. Esta frase vem a propósito da passagem de filmes estrangeiros nos Estados Unidos, que é muito reduzida - tanto no cinema como na televisão. Ler legendas é antiquado e fastidioso para a esmagadora maioria das pessoas. Como exemplo quantificado, veja-se que uma das maiores empresas americanas de DVDs envia diariamente qualquer coisa como 1,4 milhões de unidades para os seus clientes. Dessa impressionante quantidade, só 5,5 por cento são filmes estrangeiros.
Um outro exemplo interessante é-nos dado pela "generosidade" da Academia que atribui os Óscares. Cada país estrangeiro pode submeter apenas um filme a concurso! Imagine-se, diz o autor do artigo, se cada estúdio americano não pudesse submeter mais do que um filme para os Óscares. Curiosamente, na secção de películas não-nacionais, têm sido os filmes franceses e os italianos os maiores ganhadores de prémios, porque os seus júris estão bem instruídos para escolherem filmes que não sejam demasiado estrangeiros para os americanos!

2/22/2006

Mais do mesmo

Já vão perto de quarenta anos desde que uma conversa com alguém que eu mal conhecia, a bordo de um autocarro de turismo, me deu uma sacudidela. A pessoa em questão era uma senhora amante de viagens, culta e com alguma sobranceria intelectual. Tinha estado em Israel havia pouco tempo. Descrevia-me o país de modo maravilhado. Quando lhe coloquei a questão de o Estado de Israel representar a ocupação de um território que era ocupado por outras pessoas, ignorou o argumento com uma resposta sincera, mas que me siderou: "Outrora, os judeus viveram naquela área. Havia de ver a diferença entre os palestinianos e os israelitas. O que os israelitas conseguiram fazer daquele território é fantástico. Os campos, o desenvolvimento que se vê por todo o lado, os projectos. São uma raça superior. Nunca os muçulmanos lhes chegam sequer aos calcanhares!" Quando lhe disse que o argumento era perigoso, entre outros aspectos porque, na mesma base, qualquer antigo ocupante mais civilizado podia reivindicar os seus direitos históricos e invadir um território soberano, a minha companheira de viagem despachou-me com a minha juventude e inexperiência. A senhora contava com umas três décadas a mais do que eu. Não contestei mais, até para que todos nos déssemos bem durante o périplo turístico, o que veio de facto a suceder.
Nesta altura, noto da parte de muitas outras pessoas que escrevem na Net ou na imprensa a mesma agressividade na política mundial: os fins justificam os meios. Um tanto na mesma linha, escrevia há dias o director de um conhecido jornal diário que "discutir se os cruzados foram menos ou mais sanguinários quando conquistaram Antioquia do que Mahmed II quando entrou em Constantinopla é um exercício relativamente fútil. No fim, contam os resultados, e os resultados medem-se pelo que são hoje capazes de oferecer as diferentes culturas e civilizações como padrões de vida e convivência." Isto cheira-me um pouco ao "Fim da História" de Fukuyama. O nosso padrão é o melhor, logo podemos e devemos impô-lo aos outros. Se os outros são muçulmanos e possuem as mais ricas jazidas de petróleo do mundo, que são vitais para nós, tanto pior para eles se não concordarem connosco. Vamos a eles!
Quando eu estava no liceu, os rapazes mais velhos e maiores que queriam desafiar os mais novos molhavam um dos dedos com saliva e esfregavam esse dedo na cara dum dos mais pequenos. É evidente que, dada a estatura maior do provocador, muitas vezes a potencial vítima limitava-se a virar as costas e ir-se embora. Pois até isso poderia causar a ira do grandalhão. Várias bulhas começavam assim.
No final, o provocador lavaria as suas mãos da culpa dizendo que o outro não aceitou aquele gesto de pura brincadeira. Ele tinha-lhe batido, afinal, por falta de sentido de humor do outro.
O lobo e o cordeiro, não é? Já vimos este filme em qualquer lado.

2/15/2006

Respondendo ao repto do António "venham de lá poetas do vasto mundo", trago um poema de Alda Lara. Para quem a não conhece, é uma poetisa angolana, nascida em Benguela, que morreu em 1962 com 31 anos. Tendo tirado o curso de medicina nas universidades da então Metrópole (Lisboa e Coimbra), Alda Lara descreve como ninguém a saudade que sentia da sua mãe África, enquanto estudante universitária ultramarina. A sua poesia está toda compilada num livro intitulado "Poemas", que o seu marido editou já depois da sua morte. Tem vários poemas muito conhecidos, porque foram musicados (Meu bergantim, Testamento, Mãe negra), mas hoje proponho estoutro, que se chama "Herança" e foi escrito em 1950:

Meu filho:
que os teus braços sejam longos
como a minha esperança
nos longos dias...
e o teu corpo, que antevejo,
venha flexível e liso,
como a justiça que desejo...
Que os teus olhos nasçam poços
onde repouse p'ra sempre
a paz do tempo todo,
e o teu peito seja
tão grande e tão profundo,
que lhe possa confiar o mundo...



Origem das Palavras - BLOG

De há poucos anos a esta parte, "blog" tornou-se uma palavra bastante frequente no nosso vocabulário. O português já adoptou a sua forma própria - blogue - e, ao falarmos em "bloguistas", muita gente entenderá. Que a palavra é de origem anglo-saxónica é fácil de depreender, mas o que significa, na realidade? Todos os que estamos neste espaço sabemos que um blog funciona como um diário de bordo, registando as coisas mais importantes que vão sucedendo no dia-a-dia. Qualquer dicionário de inglês nos dirá que "log" é madeira retirada do tronco de uma árvore. E o que tem isto a ver com blog? Tem alguma coisa, realmente.
Entre os séculos XV e XVII, a velocidade de um navio era determinada através da flutuação de um madeiro com um sistema de medição. A isto chamava-se "log". O registo da velocidade a que a embarcação seguia era feito num "log-book", palavra que foi depois convertida em "ship's log" (diário de bordo). Daqui passou ao seu significado de "log" (diário) de qualquer viagem. Como verbo inglês, "to log" significa registar ou inscrever, como se vê no exemplo "The police log everyone and everything that comes in and out of here." Daqui provêm igualmente o "log in" (registo de entrada) e o "log out" (registo de saída), tão usados em computadores.
Dentro da worldwideweb (www), o "log" foi precedido do "b" de "web" e produziu "blog", um diário na Net.

2/14/2006

Terça-Feira

"Começo a ler, mas cansa-me o que inda não li.
Quero pensar, mas dói-me o que irei concluir.
O sonho pesa-me antes de o ter. Sentir
É tudo uma coisa como qualquer coisa que já vi."

Do Pessoa que há em cada um de nós salta o eco desta sensação. Uma sensação de vazio, de cansaço, de nem perguntar se vale a pena. Tem-se a certeza, ou quase, de que amanhã, talvez daqui a minutos, a sensação vai passar, algo a descobrir iluminará o nosso interesse, um plano a realizar fará de colina que dê vontade de subir. Mas até que esse interesse chegue, que vazio grande, que sentimento de inutilidade, de transitório e efémero. É terça-feira, mas que importa, poderia ser quinta ou sábado e as coisas não se alterariam. Todo o mundo que nos rodeia, e isso inclui o tempo, depende de nós, é o nosso mundo e o nosso tempo.
Por uma nesga dos estores que não ouso abrir por causa do sol vejo uma tira de mar, muito cheio de reflexos e agitado junto à margem como se se irritasse de chegar ao fim. Mas é um fim que ele recupera sem cessar, espumoso e barulhento: um barulho fundo e não de fábrica, um ressoar que lembra o telúrico e a terra em que ele assenta.
O mar não pensa, porque hei-de eu pensar? Não sei às vezes se quero pensar, se prefiro sentir o vazio absoluto, como quando fechamos os olhos de cansaço total, revirando-nos sobre nós mesmos num torvelinho indescritivelmente envolvente.
Reler os poetas é como analisar o processo da nossa própria dinâmica, aquilo que devimos. Há vinte anos, aquele poema era para nós o mais importante; hoje ele é relativamente banal. Aquilo que nos toca é uma outra ideia. Os sublinhados nas linhas dos versos ou à margem, que bem que eles nos informam sobre os nossos sentimentos, a nossa essência - à data da leitura. Às vezes é com um sorriso que deparamos com um sublinhado antigo: como mudámos, como aquilo parece agora trivial. Depois vem frequentemente um travo de saudade, uma inocência perdida, os olhos do tigre a substituirem blakeanamente os do cordeiro.
Releio Pessoa com prazer:

"És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo.
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva."

Pela mesma tira aberta do estore olho o mar e continuo a ouvir o seu som cavo e profundo. Só aparentemente se altera, um pouco como as grandes verdades.

2/13/2006

"O Barbas"

Quando, em 1755, o terramoto e o maremoto que lhe esteve associado destruíram o Paço Real, na Baixa junto ao Tejo, a família real apressou-se a mudar para um local mais seguro. O Alto da Ajuda foi escolhido para a construção de um palácio de madeira, com receio de que a pedra pudesse matar alguém num cataclisma similar. Algo ironicamente, alguns anos depois, não foi um tremor de terra mas sim um incêndio que provocou a destruição da "Real Barraca". O local era, no entanto, esplêndido. Ainda com dinheiros vindos do Brasil, o tesouro real abalançou-se a construir um palácio composto por três partes, com um belo jardim em frente ao corpo central. Os tempos não corriam de feição, porém, e as invasões francesas, a fuga do rei para o Brasil, carência de dinheiro nos cofres e a posterior perda do Brasil levaram a que apenas uma das três partes previstas fosse construída, assim como o jardim. Nela acabou por ir habitar, mais tarde, um rei que era Almirante e que adorava navegar. D. Luís tinha do seu palácio uma bela vista sobre o Tejo, que conduzia directamente ao mar, ali tão perto.
Esta breve introdução serve apenas para lembrar que as belas vistas sobre o Tejo sempre foram muito apetecidas. Não é verdade que o antigo paço se situava na alcáçova do Castelo hoje denominado de S. Jorge? Lisboa, cidade de umas originais sete colinas à maneira de Roma e da antiga Constantinopla (Istambul), tem hoje muito mais do que essas sete colinas. A Ajuda está integrada na cidade. Igualmente o Alto de Santo Amaro, não muito distante, faz parte integrante da capital.

Este Alto de Santo Amaro já foi escolhido em tempos para a construção do belo Palácio Val Flor, hoje transformado em unidade hoteleira de luxo. Foi também nesse Alto de Santo Amaro que, na década de 40 do século passado, a Câmara Municipal de Lisboa adquiriu uns terrenos, onde foi construído um esplêndido estabelecimento de ensino secundário: o liceu D. João de Castro.
Ligam-me óptimas memórias a esse liceu, onde estudei. Aliás, recordo-me de dizer a colegas meus, naqueles intervalos em que podíamos gozar de um belo sol ao mesmo tempo que nos divertíamos cá fora, que iríamos ter saudades daquele tempo. Estava com o Luís Lingnau da Silveira, o Beça Múrias, o Morais Sarmento, o Luís Pazos Alonso, o Artur Portela e uns tantos outros. O ensino público era bastante considerado, a escola tinha óptimos docentes. Lembro-me de a minha turma ter tido a primeiríssima aula que o Augusto Abelaira deu, tão recentemente saído da Faculdade e com ar tão de miúdo que o contínuo, agastado, o mandou levantar-se da carteira do professor porque "o senhor doutor deve estar quase a chegar".
Pois bem. "O Barbas", como familiarmente lhe chamávamos por homenagem às venerandas barbas de Dom João de Castro, vai deixar de ser escola secundária. Docentes e estudantes já foram informados. Os estudantes vão ser encaminhados para um outro estabelecimento, com fracas condições para os albergar. Mas vão possivelmente estudar mais, distraídos que não ficam pelo belo cenário que do local se desfruta. Esse cenário está destinado a outros mais afluentes usufrutuários, num futuro mais ou menos próximo. Vendo bem, está-se ali a desperdiçar com meia-dúzia de jovens uma esplêndida oportunidade. A educação, a tal da paixão e dos discursos inflamados, tem de compreender que há que ceder quando outros valores mais altos se alevantam.

2/10/2006

União Utérica

Nunca ninguém ouviu o mês de Fevereiro protestar por ter apenas 28 dias. Embora fosse já de facto o mês mais curto, ele não se lamentou quando a vaidade de Augusto levou o Senado romano a ordenar que se retirasse um dia a Fevereiro para que Agosto não fosse mais curto do que o mês anterior, dedicado a Júlio César.
Em termos de maternidade, uma parte do Alentejo está em vias de se tornar o nosso Fevereiro. Dado o número reduzido de partos (cerca de 700) que anualmente se registam em Portalegre e Elvas, o número de obstetras - 12 - dos hospitais destas cidades é considerado excessivo. Por razões económicas, está a ser aventada pelo Ministério da Saúde a hipótese de as parturientes daquelas cidades e terras limítrofes terem os seus filhos... no Hospital Infanta Cristina, em Badajoz. Os bebés lá nascidos continuarão a ser portugueses, apesar de verem a luz pela primeira vez em terras de Espanha.
Fevereiro não protestou. E o Alentejo tem alguma coisa a dizer? Cada vez mais se entende "Ó Elvas, ó Elvas, Badajoz à vista!"

2/09/2006

Templários, judeus e muçulmanos

Os Cavaleiros do Templo, vulgo Templários, nasceram no tempo das Cruzadas, no final do século XI. O seu nome derivou do seu castelo-sede, construído sobre as ruínas do antigo templo de Salomão, em Jerusalém. Eram, no início, cavaleiros franceses que, ao entrarem para a Ordem com a nobre missão de protegerem os lugares santos onde Cristo nascera, se despojavam das suas terras, as quais ficavam a partir daí a pertencer à organização. Os Cavaleiros do Templo foram muito empreendedores e inovaram em vários aspectos. Graças à sua política e aos seus contactos entre o Médio Oriente e a Europa, depressa acumularam avultadas somas monetárias e uma área excepcional de terras. Foi este facto que, nos finais do século XIII e início do XIV, levou o rei de França, Filipe o Belo, cujos cofres estavam depauperados, a procurar derrubar os templários através de calúnias várias, quer baseadas em factos reais mas claramente empolados, quer forjadas para os desacreditar. As acusações incluíram eventuais alianças satânicas. A coroa queria apoderar-se da fortuna dos templários, o que em grande parte conseguiu. A Ordem acabou por ser extinta ou, em certos países, apenas transformada. O processo dos templários ficou célebre na história.
Quer em Espanha, no tempo dos Reis Católicos (finais do século XV), quer na Alemanha no século XX, os judeus foram perseguidos. Teoricamente, a questão do sangue impuro foi colocada em ambos os casos. Embora em contextos e proporções diferentes, tanto na Espanha como na Alemanha os judeus foram maltratados e mortos. Um outro ponto comum, decisivo: os judeus constituíam, regra geral, comunidades muito abastadas. Eram pessoas empreendedoras, faziam negócios lucrativos com facilidade e, como tal, conseguiram amealhar fortunas que outros cobiçaram. Tanto em Espanha como na Alemanha, os judeus viram os seus bens confiscados. A coroa espanhola do século XV e o regime de Hitler beneficiaram muito da fortuna acumulada pela comunidade judaica. Relativamente à Alemanha, ainda hoje existem processos a correr que obrigam à restituição de vários desses bens aos herdeiros dos despojados de então. Se não tivessem sido senhores de vastos bens, os judeus não teriam sido perseguidos como foram e não teriam sido alvo das calúnias que sobre eles lançaram.
Os muçulmanos em todo o mundo somam cerca de 1,2 biliões, mas só alguns são verdadeiramente importantes hoje em dia no que se refere ao "choque de civilizações". São aqueles que têm fortuna. Não feita à maneira dos templários ou dos judeus, mas acumulada em jazidas debaixo do seu solo. Em petróleo e em gás natural. O petróleo há muito que se tornou vital para o bem-estar social do ocidente. Fábricas, o que significa riqueza e empregos, e muito do que mexe à face da Terra no mundo ocidental apresenta uma larguíssima dependência de fontes energéticas. Bem mais de metade das reservas petrolíferas do mundo encontram-se no Médio Oriente dos muçulmanos. Entre os principais países produtores estão a Arábia Saudita, o Irão e o Iraque. A primeira, governada ditatorialmente, tem um bom relacionamento com o mundo ocidental. Igualmente outros territórios produtores de petróleo, como o Bahrein, Kuwait e o Qatar, mantêm boas relações com o ocidente. A grande questão coloca-se relativamente ao Iraque, já parcialmente ocupado por tropas ocidentais, e ao Irão. Graças aos significativos aumentos de preço do petróleo, o Irão possui hoje enormes reservas monetárias, com as quais pode fazer praticamente o que quiser. Significativamente, as nações do Médio Oriente que não colaborem com o poder ocidental, militar e economicamente mais forte, foram etiquetadas de Eixo do Mal pela administração americana, com razoável concordância da União Europeia.
Os factos à volta dos templários, dos judeus da Inquisição espanhola e da Alemanha de Hitler estão há muito enterrados. A história sobre os muçulmanos continua in the making.

2/07/2006

Desequilíbrio essencial

É relativamente frequente que na opinião que formamos sobre uma pessoa de que gostamos - por exemplo, um professor, um ministro, um jogador de futebol - notemos que "infelizmente" ele tem uns pequenos defeitos: olha demasiado para as mulheres, foi apanhado num escândalo amoroso, escreve bem mas bebe demais, etc. Ora o que sucede é que componentes desta ordem acabam por fazer parte fundamental do temperamento do professor, do ministro, ou do jogador. Aliás, são esses mesmos componentes que denotam o grau de vitalidade superior ao normal, que acaba por produzir a pessoa de rasgos notáveis que provocam a nossa admiração.
Não se pode pretender que um indivíduo que está no poder considere a ambição um defeito; se isso for verdade, enquanto estiver no poder não fará nada de notável. É absolutamente natural que quem demonstra grande energia para fazer coisas não possua outras qualidades que o seu admirador - com muito menos energia e capacidade realizadora - aprecia. Somos um todo, e não se pode pedir o desdobramento das partes, a pedido.
Este é um erro típico de pensamento e uma prova mais de que gostaríamos que os outros fossem talhados à nossa medida, para que nós também nos pudéssemos identificar com o seu poder. Consideremos, portanto, não só normal como inclusivamente salutar que o criativo possua em si um grau de desequilíbrio. O quadrado, que denuncia imediatamente os seus outros três lados pela medida de um, é algo que não funciona sob o ponto de vista de criatividade. Só o desequilíbrio - pela dor, por uma inteligência aguda, pelo stress de trabalho, pelo álcool, etc. - pode provocar actos criativos que depois os comuns, os quadrados, acabam por considerar mais ou menos geniais. É assim que os quadrados propõem nas Assembleias Municipais que nomes de poetas, de pintores e de músicos (artistas criadores de uma maneira geral) sejam dados às ruas da sua cidade ou vila. Para eles, reconhecer oficialmente o seu valor (geralmente após a morte) actua como compensação e como admissão involuntária da sua própria carência de genialidade.

2/05/2006

Fair play

Não é vulgar falar-se de futebol neste blog, mas quando se vê jogar com verdadeiro entusiasmo e real fair-play, como tem sido o caso da Taça das Nações Africanas, tem de escrever-se uma palavra. Os quartos-de-final entre os Camarões e a Costa do Marfim foram um verdadeiro deleite para todo o espectador que adora o fair-play. O jogo, que terminou 0-0 ao fim do tempo regulamentar, voltou a ficar empatado (1-1) no final da meia hora de prolongamento, pelo que houve que recorrer a grandes penalidades. Nenhum dos 11 jogadores de cada equipa, incluindo os guarda-redes, falhou. Quando se tornou obrigatório voltar ao número um dos marcadores de penaltis, aquele que é possivelmente o jogador mais cotado do torneio não conseguiu marcar. Do lado contrário, um jogador igualmente muito conhecido rematou certeiramente e deu a vitória ao seu país. A confraternização entre ambos os adversários foi notável. As atitudes éticas, de jogo viril mas limpo e de consideração pelo adversário que já se tinham visto durante o desafio, foram impecáveis. Jogadores que eram derrubados pelos seus opositores eram ajudados imediatamente a levantar-se por quem os tinha deitado ao chão. Um aperto de mão, uma palmada nas costas ou uma festa amiga na cabeça davam a sequência correcta. As ordens do árbitro não eram contestadas. Não se fizeram fitas na área para ludibriar quem dirigia a partida. Na altura da marcação das grandes penalidades, homens que até então tinham corrido quilómetros, ajoelharam-se em fila a pedir sorte ao seu Deus. Foi bom poder ver um jogo assim na televisão. África deu lição a muita Europa.

Liberdade de imprensa e caricaturas religiosas

Apenas uns parágrafos dos muitos que se poderia escrever sobre o assunto. A publicação em forma caricatural de uma figura sagrada para os muçulmanos, feita por um jornal dinamarquês e reproduzida por outros do mundo ocidental, incendiou o mundo do Islão, que considera o facto uma verdadeira blasfémia e uma ofensa sem medida. Duas culturas diferentes como são, elas devem respeitar-se mutuamente. A linha divisória desse respeito tem de ser entendida.
O laicismo comum em nações ocidentais ainda hoje não é aceite por numerosas pessoas desse mesmos países. Vejam-se em Portugal os casos recentes da retirada dos crucifixos das escolas e da tentativa de casamento entre pessoas do mesmo sexo, a que se junta a questão da mais ampla legalização do aborto. A frase que muitos portugueses aprenderam a dizer no PREC - "A nossa liberdade termina onde começa a liberdade dos outros" - implica o respeito por esses outros, para que eles nos respeitem a nós próprios. (Comportamento gera comportamento.)
Uma figura divina é, por natureza, simbólica. Brincar com a fé dos outros é um jogo muito perigoso, como qualquer intelectual que procurou combater uma consciência enraizada na fé apenas com argumentos racionais já entendeu. Acrescem, no caso muçulmano, várias vertentes que o mundo ocidental, que apregoa viver na sociedade da informação, tinha obrigação de conhecer. Uma é que para os muçulmanos o direito civil não é separado do religioso. Outra é que, para a maioria dos muçulmanos, pertence-se primeiro à religião e só depois à pátria. Outra é que a reprodução da figura divina não é comum. Outra ainda é que, ao longo de séculos, o mundo ocidental tem colonizado várias nações muçulmanas, causando um óbvio sentimento de humilhação por parte das respectivas populações.
Em face destes factos, e dada a crença na superioridade da sua cultura e civilização por parte de um grande número de pessoas e nações ocidentais, que não pensam muito antes de invadir territórios soberanos, fazer a guerra e matar para conseguirem outros benefícios, será de estranhar a reacção do mundo muçulmano?

2/02/2006

O galhardete

Coloco hoje aqui uma pequena histórica, verídica, que se passou há muitos anos. Registei-a na altura e pesco-a agora, para entretenimento dos eventuais leitores do blog.

"Como é que ele irá reagir? Sabes que é um tipo duro, lá de Trás-os-Montes. Tanto lhe pode dar para uma grande gargalhada como para escaqueirar aquilo tudo!" O meu colega tinha alguma razão, mas eu confiava que o desfecho iria mais para a hipótese da gargalhada. O Major Botelho é um indivíduo curioso. Alto, bem entroncado, negras sobrancelhas espessas, cerca de cinquenta anos de idade e uma cultura castrense sobre os ombros, pode parecer à primeira vista um tiranozinho cruel como há tantos no Exército, mas tem por debaixo da camisa um coração que palpita. Quando há meses um sargento veio ter connosco à noite à sala dos oficiais a perguntar-lhe se podia levar uma manta a um soldado que estava de castigo numa cela a tiritar de frio, a primeira reacção do major foi tonitroante: "Mas ele julga que aquilo é um hotel ou quê?!" Após o silêncio que se seguiu, falou o homem: "Leva-lhe lá duas mantas, se não ele ainda apanha uma pneumonia. Hoje a temperatura não está nada meiga."
Estou aqui no Regimento de Infantaria 6 em Montes Burgos, ao pé da Senhora da Hora, juntamente com um colega também aspirante e com cerca de 100 soldados das Caldas da Rainha, o nosso Regimento. Dar a recruta no Porto é uma experiência interessante. Não só a cidade é muito diferente de Lisboa como também as gentes. Francamente, gosto.
Dentro de três semanas vamos de volta às Caldas e resolvemos entretanto oferecer um galhardete ao Major Botelho, comandante da nossa Companhia. O Paulino é um soldado fixe, que tem um irmão a trabalhar numa das fábricas de cerâmica das Caldas. Cotizámo-nos todos e encomendámos a prenda.
Foi há dias que a entreguei ao major. Pedi primeiro ao meu colega que formasse os dois pelotões na parte exterior do edifício da Companhia. Depois, dirigi-me ao gabinete onde sabia que o major se encontrava sozinho. Cumprimentei-o, abri um armário com umas cinco ou seis prateleiras que ele lá tem e, algo teatralmente, disse para ele: "Não cabe!" "O quê?", perguntou o major.
Foi aí que iniciei o meu discurso. A dois. Palavras simples de agradecimento pela hospitalidade e simpatia que tinham sido dispensadas aos soldados das Caldas, aos furriéis e aos oficiais. O major levantou-se, entretanto, como que perfilado. Senti que estava a despertar o militar dentro dele. Tínhamos todos, disse eu, pensado em oferecer-lhe algo que ficasse como recordação da nossa passagem pelo RI 6. Voltei ao armário e repeti: "É pena não caber. Mas espero que mesmo assim goste do galhardete que lhe trazemos."
Abri então a porta e fiz sinal para entrar a um soldado que estava do lado de fora, com o "galhardete" devidamente coberto por um lençol impecavelmente branco. "Põe aqui em cima da secretária do nosso major. Obrigado!" Quando o soldado saíu, rematei o discurso: "Somos das Caldas. Não podemos oferecer-lhe nada de mais genuíno. Faça favor de destapar."
Mesmo para um transmontano de cepa rija a visão foi brutal; um falo caldense de cinco litros - o máximo que fazem em tamanho - com prepúcio bem vermelho no topo e uma base testicular bastante alargada a contrabalançar os 50 ou 60 centímetros de altura da peça é algo que não se vê muitas vezes. O major ficou uns segundos sem fala. Perguntei-me como é que ele iria reagir. "Boa piada! Boa piada!" Nunca lhe tinha visto uma satisfação tão grande. Abraçou-me. "Você tem razão. Para ele caber no armário, vou ter que tirar pelo menos duas prateleiras!"
Informei-o de que tinha os pelotões formados lá fora; se o major quisesse passar revista e dirigir-lhes algumas palavras... Pôs o bivaque, verificou cuidadosamente que tinha todos os botões do blusão convenientemente abotoados, e saíu comigo. À voz do meu colega, os cem soldados das Caldas da Rainha puseram-se em sentido. O major olhou-os do alto da pequena escadaria da Companhia. Aflorou-lhe aos lábios um enorme sorriso. Cada um dos soldados ostentava garbosamente na lapela uma réplica miniatura do pénis de cerâmica que lhe tinha sido oferecido. A cena era hilariante, mas conseguiu-se manter a maior compenetração de todos. Coisas que só o regime da tropa consegue fazer.
O major passou revista à formação e depois dirigiu-lhes palavras bonitas. "Nunca mais vos vou esquecer, nem esquecer este dia. Quanto ao galhardete que me ofereceram e que vos agradeço muito, acompanhar-me-á se eu for transferido para outra unidade. Bem hajam!"
Soube hoje de alguns follow-ups da história. Primo: A primeira pessoa a quem o major mostrou o "galhardete" foi ao capelão do Regimento. Secundo: Os novos oficiais milicianos de Armas Pesadas que chegaram na semana passada aqui ao RI 6 tiveram que, de joelhos, prestar juramento de fidelidade ao canhão coberto pela bandeira portuguesa, que beijaram. O "canhão" era o galhardete caldense. Tertio: Sempre que algum recruta aborrece o major, ele manda-o ao sargento para que este lhe mostre "o pai da humanidade".
Acho que estivemos à altura do transmontanismo rude e genuíno do nosso major. E creio, firmemente, que quando ele disse que não nos ia esquecer, estava a ser sincero. Um choque daqueles não se leva todos os dias!