2/07/2006

Desequilíbrio essencial

É relativamente frequente que na opinião que formamos sobre uma pessoa de que gostamos - por exemplo, um professor, um ministro, um jogador de futebol - notemos que "infelizmente" ele tem uns pequenos defeitos: olha demasiado para as mulheres, foi apanhado num escândalo amoroso, escreve bem mas bebe demais, etc. Ora o que sucede é que componentes desta ordem acabam por fazer parte fundamental do temperamento do professor, do ministro, ou do jogador. Aliás, são esses mesmos componentes que denotam o grau de vitalidade superior ao normal, que acaba por produzir a pessoa de rasgos notáveis que provocam a nossa admiração.
Não se pode pretender que um indivíduo que está no poder considere a ambição um defeito; se isso for verdade, enquanto estiver no poder não fará nada de notável. É absolutamente natural que quem demonstra grande energia para fazer coisas não possua outras qualidades que o seu admirador - com muito menos energia e capacidade realizadora - aprecia. Somos um todo, e não se pode pedir o desdobramento das partes, a pedido.
Este é um erro típico de pensamento e uma prova mais de que gostaríamos que os outros fossem talhados à nossa medida, para que nós também nos pudéssemos identificar com o seu poder. Consideremos, portanto, não só normal como inclusivamente salutar que o criativo possua em si um grau de desequilíbrio. O quadrado, que denuncia imediatamente os seus outros três lados pela medida de um, é algo que não funciona sob o ponto de vista de criatividade. Só o desequilíbrio - pela dor, por uma inteligência aguda, pelo stress de trabalho, pelo álcool, etc. - pode provocar actos criativos que depois os comuns, os quadrados, acabam por considerar mais ou menos geniais. É assim que os quadrados propõem nas Assembleias Municipais que nomes de poetas, de pintores e de músicos (artistas criadores de uma maneira geral) sejam dados às ruas da sua cidade ou vila. Para eles, reconhecer oficialmente o seu valor (geralmente após a morte) actua como compensação e como admissão involuntária da sua própria carência de genialidade.

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