2/14/2006

Terça-Feira

"Começo a ler, mas cansa-me o que inda não li.
Quero pensar, mas dói-me o que irei concluir.
O sonho pesa-me antes de o ter. Sentir
É tudo uma coisa como qualquer coisa que já vi."

Do Pessoa que há em cada um de nós salta o eco desta sensação. Uma sensação de vazio, de cansaço, de nem perguntar se vale a pena. Tem-se a certeza, ou quase, de que amanhã, talvez daqui a minutos, a sensação vai passar, algo a descobrir iluminará o nosso interesse, um plano a realizar fará de colina que dê vontade de subir. Mas até que esse interesse chegue, que vazio grande, que sentimento de inutilidade, de transitório e efémero. É terça-feira, mas que importa, poderia ser quinta ou sábado e as coisas não se alterariam. Todo o mundo que nos rodeia, e isso inclui o tempo, depende de nós, é o nosso mundo e o nosso tempo.
Por uma nesga dos estores que não ouso abrir por causa do sol vejo uma tira de mar, muito cheio de reflexos e agitado junto à margem como se se irritasse de chegar ao fim. Mas é um fim que ele recupera sem cessar, espumoso e barulhento: um barulho fundo e não de fábrica, um ressoar que lembra o telúrico e a terra em que ele assenta.
O mar não pensa, porque hei-de eu pensar? Não sei às vezes se quero pensar, se prefiro sentir o vazio absoluto, como quando fechamos os olhos de cansaço total, revirando-nos sobre nós mesmos num torvelinho indescritivelmente envolvente.
Reler os poetas é como analisar o processo da nossa própria dinâmica, aquilo que devimos. Há vinte anos, aquele poema era para nós o mais importante; hoje ele é relativamente banal. Aquilo que nos toca é uma outra ideia. Os sublinhados nas linhas dos versos ou à margem, que bem que eles nos informam sobre os nossos sentimentos, a nossa essência - à data da leitura. Às vezes é com um sorriso que deparamos com um sublinhado antigo: como mudámos, como aquilo parece agora trivial. Depois vem frequentemente um travo de saudade, uma inocência perdida, os olhos do tigre a substituirem blakeanamente os do cordeiro.
Releio Pessoa com prazer:

"És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo.
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva."

Pela mesma tira aberta do estore olho o mar e continuo a ouvir o seu som cavo e profundo. Só aparentemente se altera, um pouco como as grandes verdades.

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