12/30/2007

A ASAE pode ter muita razão, mas...

Da mesma forma que o canalizador polaco serviu de símbolo na querela da livre-circulação de serviços transfronteiriços na União Europeia, também o mundo das intervenções da ASAE ganhou um símbolo: as bolas-de-berlim. Porquê? "Porque agora já não podemos encontrar bolas-de-berlim nas praias. A ASAE cortou as pernas aos vendedores." As bolas-de-berlim não estiveram sozinhas, porém. "Rissóizinhos feitos em casa já não se podem vender em nenhum estabelecimento. Acabou-se o que era bom!" "Já lá vai o tempo dos bolos-rei com brinde. Que saudades!"
Ora bem. Parece que a ASAE se transformou no diabo que varre a sociedade portuguesa, multa e encerra estabelecimentos. Os esclarecimentos que encontramos na imprensa não são, no entanto, tão irracionais como se possa supor. Comecemos pelas bolas-de-berlim. Você gostaria de saber que algumas das ditas bolas - que podem ser aquelas que lhe vão parar à boca - foram feitas em deploráveis condições de higiene, com uso de óleos saturados, já impróprios para consumo? Não é provável que sim. Se as bolas-de-berlim forem fabricadas num estabelecimento devidamente licenciado e, portanto, inspeccionável, não há nenhuma razão para que não sejam vendidas nas praias ou em qualquer outro local.
O que se passa com os rissóis feitos em casa para venda num estabelecimento é muito semelhante. Que garantia existe de que os óleos com que eles são fritos ainda estão em bom estado? Não nos esqueçamos que quem os faz aumenta o seu lucro se tiver que mudar menos vezes o óleo, que é um produto caro. E quem diz rissóis, diz também empadas, pastéis de bacalhau e coisas semelhantes. Quem pode controlar a casa onde os rissóis são fabricados?
Os bolos-rei podem continuar a ter brindes; contudo, estes têm que se distinguir do bolo que se come, seja pela cor, pelo tamanho ou pela consistência. Colocar um pequeno coração com um alfinete como brinde pode não ser uma boa ideia. Se for ingerido, poderá provocar perfuração ou obstrução do aparelho digestivo.
Outras questões se levantam como o não-uso de galheteiros em restaurantes e o embrulhar em papel de jornal as castanhas assadas à venda na rua. Quanto ao azeite e vinagre, acho que foi uma boa ideia aplicar às garrafas em serviço num restaurante um sistema que foi, salvo erro, primeiramente usado nalgumas marcas de whisky: não há possibilidade de reenchimento da garrafa. Sabendo-se da longa e má tradição que temos em Portugal da mixórdia de azeites e óleos, a medida parece absolutamente correcta.
No que diz respeito ao material que serve para embrulhar as castanhas, há legislação que, razoavelmente, proíbe tanto o uso de papel já usado como o facto de esse papel conter desenhos, pinturas ou dizeres na parte que está em contacto com as castanhas. Qual é o mal?
Ao contrário do que corre populisticamente na Net, estas medidas não são incorrectas, tal como não foi incorrecto há anos proibir que os bolos de pastelaria fossem para as mesas, sendo depois recolhidos os que os clientes não queriam. Eu diria que o problema reside mais na falta de formação das pessoas que dirigem restaurantes e pastelarias do que propriamente nas medidas. Nessa carência de formação e na não-necessidade de quaisquer cursos para que alguém possa abrir um restaurante ou uma pastelaria reside um dos maiores problemas. Ainda por resolver.
Contudo, o problema tem uma outra faceta, a qual não é de maneira nenhuma para desprezar. De facto, muitos locais de Portugal, especialmente em pequenos povoados, ainda são muito antiquados. Porém, é o que temos. Eu diria que os cafés e lojas de mercearia que existem nessas povoações não oferecem as condições que os estritos regulamentos "europeus”"exigem. Ora, se uma entidade como a ASAE decide inspeccionar esses lugares com rigor, as coimas que irá aplicar serão tão elevadas que os proprietários se verão compelidos a fechar as suas portas. Os habitantes dos lugares ficarão sem a sua mais importante fonte de abastecimento de artigos de primeira necessidade ou sem o café local, ponto de reunião básico.
Assim, se não forem equacionados e devidamente acautelados estes inconvenientes, o serviço prestado pela ASAE acabará por ser mais nefasto do que positivo. As coimas aplicáveis nas zonas nobres de uma cidade como Lisboa não podem ser as mesmas que num modesto lugarejo do nosso interior cada vez mais desabitado. Caso não haja alguma ponderação e se avançar com um processo cego, a ASAE passará a ser um dos órgãos mais odiados pela população do país. Neste sentido, haverá certamente pontos da actual legislação que precisam de ser revistos, assim como o montante das respectivas penalizações para os prevaricadores.
Além disso, é claro que se estranha toda esta sanha persecutória por parte da ASAE. Se o seu objectivo é lutar pela saúde da população, por que razão o legislador não previu que fossem retirados, por exemplo, muitos dos produtos à venda que claramente provocam obesidade? (Sabe-se que, incrivelmente, dois terços das americanas, adultas, possuem excesso de peso ou são mesmo obesas, algo que não tem tendência para mudar nos anos mais próximos!) Interesses dos grandes em jogo? É, na verdade, mais fácil atingir os pequenos, que não têm força para fazer lobbying. Não me digam que qualquer dia não se vai poder comprar nas charcutarias fiambre, salame, mortadela, queijo, etc. sem ser em pacotes já embalados! Quem fica a ganhar? Quem fica a perder?

O Evangelho dos Blogues, segundo Pacheco Pereira

Um longo artigo de Pacheco Pereira no Público de hoje diz, a dada altura: "O que se passa é que esse verdadeiro mostruário em linha, feito de mil egos à solta, revela mesmo a nossa pobreza, a nossa rudeza, a falta de independência face aos poderosos, grandes, pequenos e médios, os péssimos hábitos de pensar, a falta de estudos e trabalho, de leitura e de "mundo" que caracterizam o nosso Portugalinho. Nem podia ser de outra maneira." (Lembra o estilo do Vasco Pulido Valente!) Mais à frente, afirma: "Sem reflexão crítica sobre o próprio meio, sobre o meio em Portugal, que introduza critérios de qualidade e exigência que os blogues são lestos a exigir a outros mas não a aplicar a si próprios, os blogues serão apenas mais uma câmara de ressonância da nossa vida cívica."
É-se preso por ter cão, e também por não ter o dito. Será que ajuda alguma coisa falar assim dos blogues portugueses, ou é apenas para denegrir o panorama? Será que não teremos aqui um caso de participação razoável da sociedade portuguesa? Será que a necessidade de pensar, de concatenar ideias e expressá-las de forma acessível não conta? Seria melhor ficarmos mudos, sem usar a escrita? Valeria mais ventilarmos as nossas ideias apenas num café?
Creio que a afirmação de que os bloggers não gostam de ser contraditados não corresponde totalmente à verdade. Por meu lado, já várias vezes aprendi variadíssimas coisas através dos comentários e fui corrigido. Gostei. Recordo-me, por exemplo, que há mais ou menos um ano levantei a questão dos indultos pelo Presidente da República e aprendi (com gosto) várias coisas que desconhecia com quem sabia mais do que eu sobre o assunto. Além disso, os blogs são informativos em muitos aspectos. Se os bloguistas portugueses são assim tão maus, por que razão existirão já firmas comerciais - a começar por alguns media – que incluem blogues nos seus sites da Web? Não é deitando abaixo o "Portugalinho" que se faz desaparecer o diminutivo do nome e se põe Portugal a mexer!

12/28/2007

Byblos

Possivelmente escrevo para quem já visitou a Byblos, a nova livraria de Lisboa, mas quero de qualquer forma saudar aqui no blog o seu aparecimento. Auto-intitulada a maior livraria do país em termos de área, algo de que não duvido por um segundo, a Byblos está longe de ser uma livraria comum. Os livros estão cuidadosamente divididos por secções, existe um enorme espaço para andar, ver e escolher, há diversos locais onde nos podemos sentar e calmamente folhear um livro, e existem diversos computadores à disposição dos clientes, que podem consultar o acervo de livros, DVDs, CDs, playstations, etc. e o respectivo preço (há sempre 10 por cento de desconto sobre o preço habitual). Esteticamente é um local muito interessante e confortável, com dois pisos muito amplos ligados por escadas rolantes. O bar serve refeições a preços acessíveis.
Encontrei um único senão: o acesso. Fica a dois passos do CC Amoreiras, é verdade, mas como a Byblos não é servida pelo Metro, só se nos oferece a alternativa do autocarro ou do automóvel. Parquear um automóvel por aqueles sítios não é tarefa fácil, embora existam estacionamentos pagos, a começar pelo do próprio Centro Amoreiras.
Para quem se lembra da pequena maravilha que foi a primeira Buchholz na Avenida da Liberdade, livraria que depois passou para a Duque de Palmela e teve os problemas que se conhecem, aqui está uma prenda natalícia que se espera fique por longos anos na nossa cidade.

12/23/2007

Boas Festas

Aos colegas e amigos do "azweblog", votos de Festas Felizes e de boas entradas em 2008.

12/22/2007

Cisão da Bélgica à vista?


Ponha a sua imaginação a funcionar e, tendo como base numerosas declarações públicas feitas pelo Presidente do Governo Regional da Madeira, considere a hipótese de ele ter congeminado uma lei, devidamente aprovada pelo Parlamento regional, que determinaria que nenhum cidadão nascido fora da Região ou sem parentesco directo a nativos da ilha pudesse adquirir terrenos públicos. Por outras palavras, terrenos das autarquias ou do próprio Governo Regional só poderiam ser vendidos a “madeirenses”. Concebe esta hipótese?
Se sim, está a ir longe de mais. A. J. Jardim já tomou múltiplas atitudes pró-Madeira, mas esta ainda não e, possivelmente, nunca pensará em tal. Já o mesmo não se pode dizer de um senhor belga chamado Tim Vandenput, que é presidente do município de Hoeilaart, uma cidade relativamente pequena que não fica longe de Bruxelas. Vandenput, flamengo até à medula, determinou que o potencial comprador de terrenos públicos na área da sua autarquia tem de fazer prova da sua fluência na língua flamenga. Se não, não! "Esta é uma região da Flandres e é como tal que queremos que se mantenha!"
Dificilmente se arranjaria uma história mais simbólica do que esta para vincar a profunda aversão que muitos flamengos nutrem pelos habitantes da Bélgica francófona. Ao contrário de Portugal, que é o país mais antigo da Europa com as mesmas fronteiras, a Bélgica data apenas de 1830. A parte belga de língua francesa já foi em tempos muito próspera, mas presentemente está a ser largamente "subsidiada" pela Flandres. Calcula-se que os trabalhadores flamengos contribuem anualmente com cerca de 3000 dólares para cada valão, o que causa naturais ressentimentos. Este é um exemplo verídico e flagrante da importância da língua (e não só) na formação de uma comunidade. Note-se que o Presidente do partido mais votado nas últimas eleições belgas considerou a Bélgica um acidente da história, sem real valor intrínseco, e ousou dizer que "os franceses" eram demasiado estúpidos para aprender o flamengo.
É verdade que o país continua a funcionar e que acabou de ser atamancado um governo temporário, mas não se vê solução à vista. Teremos possivelmente mais um desmembramento, tal como ocorreu com a Checoeslováquia. Pode parecer estranho à primeira vista que, numa altura em que a União Europeia já congrega 27 nações, haja esta cisão em potência. A História continua a mostrar-nos que problemas relativos às raízes culturais dos povos se tornam explosivas quando agregadas a questões económicas. Ainda por cima no país que tem como capital a cidade de Bruxelas, onde está sedeada uma parte substancial do aparelho político e administrativo da União Europeia!

12/19/2007

Dois breves apontamentos

1. O meu amigo T. von Holst acaba de me enviar um apontamento do correspondente da BBC, Mark Doyle, que esteve presente aquando da recente assinatura do Tratado de Lisboa. Ele intitula-o, sem crítica, Sócrates-speak: "The Summit ended, as do most meetings of this sort, with smiling photocalls. The Portuguese Prime Minister, Jose Socrates, gave an extraordinary closing speech which spoke about bridges being built, steps forward being taken, and visions being pursued. He went off on such an oratorical flight, in fact, that I became mesmerised by the beauty of the Portuguese language and the elegance of his delivery. I was so bewitched that I didn't register any concrete points in the speech at all. Perhaps there weren't any. But it certainly sounded good."

2. Na imprensa de hoje, os construtores do nosso imobiliário respondem às polémicas declarações sobre a corrupção do sector proferidas por Van Zeller, responsável da CIP, há umas semanas atrás. Afirmam, pela voz de Reis Campos, presidente da FEPICOP, que "fraude e evasão fiscal são problemas transversais a todos os sectores." Logo…
Este é o tipo de argumentação que ouvi há um ano ou dois um bem-humorado ex-governante russo referir num ciclo de conferências da Gulbenkian: "Se digo a alguém que o que está a fazer não me parece correcto, recebo como resposta que aquilo não é nada comparado com o que o fulano tal e tal faz." É isto: uns desculpam-se com os outros. O problema é que, como têm razão, mostram à evidência a profundidade e extensão das raízes da corrupção.

12/18/2007

Auscultadores nos ouvidos

Ainda se lembram deles? Os walkmans já terão cerca de 30 anos e, quando surgiram, representaram um novo conceito: o de ouvir música de forma estritamente individual. Os japoneses criadores dessa nova tecnologia perguntaram-se se a moda iria pegar. Pegou, e de que maneira! Estava-se já num tempo de individualismo, que aparelhos como o walkman vieram aumentar. A rádio que se ouvia em conjunto - ao serão, é possível que ainda haja quem se recorde! -, e posteriormente a televisão que se via juntamente com a família e os amigos, tendem francamente a desaparecer como emissores para plateias familiares. Com a difusão de aparelhos de TV e os seus múltiplos canais, os leitores de DVD, os mini-centros de música onde se ouve o posto ou o CD favorito, é decerto mais frequente encontrar vários aparelhos em cada casa do que apenas um. Isto significa que, mesmo no seu quarto, no quarto ao lado, na sala comum ou na cozinha, cada um pode ver o programa de televisão que mais lhe agrada, sem ter que partilhar com outra pessoa ou impor os seus gostos a outrem.
Os ipods vieram permitir a existência de uma biblioteca musical num pequeno espaço. Auscultadores enchem a cabeça de quem ouve com músicas favoritas. Se dantes se dizia, Out of sight, out of mind, agora a tendência clara é para Out of hearing, out of thinking.
Para mim foi normal, mas ao mesmo tempo curioso, ver ontem no metro que passava pela Cidade Universitária uma moça chegar sorrateiramente junto de uma amiga, certamente colega de faculdade, que estava a ouvir música com um auscultador. “Posso ouvir um bocadinho?” E, com um gesto rápido, sacou-lhe o auscultador do ouvido e colocou-o no seu. Music sharing. Porque não? Sempre é melhor que pedir uma fumaça ou uma passa.

12/17/2007

Verso e reverso


Imagine que, num exame de História, lhe pedem para responder a uma pergunta sobre as grandes linhas do Renascimento nos séculos XV e XVI. O mais natural é que na sua resposta se refira a um vasto movimento cultural que marca o fim da convencionada Idade Média, com o despertar na Europa de um entusiasmo pelos estudos clássicos, um renovada afirmação do papel que está reservado ao homem na Terra, a redescoberta da ciência, e a importância das viagens marítimas de descobrimento no aparecimento de uma enorme curiosidade relativamente ao mundo. Após escrever sobre tudo isto, deter-se-á. Colocará um ponto final.
Deveria, no entanto, ter parado aí? Montaigne, que viveu no século XVI e foi, portanto, testemunha da sociedade desse tempo, escreveu: "Tudo rui à nossa volta, em todos os grandes Estados, seja de cristandade, seja em outras partes. Olhai, e encontrareis uma evidente ameaça de mudança e ruína." A que se devia este posicionamento preocupado de Montaigne? Ao desmoronamento de antigas crenças e concepções, "que davam ao homem a certeza do seu saber e segurança no que fazia. O século XVI desmoronou tudo: a unidade política, religiosa e espiritual da Europa; a certeza da ciência e da fé; a autoridade da Bíblia; o prestígio da Igreja e do Estado."
Daqui terá nascido, como sabemos, um vasto período de cepticismo que levou a duas vias: uma de profunda reanálise da sociedade e do conhecimento em Inglaterra e França, nomeadamente com Bacon e Descartes. A outra que conduziu, inversamente, ao arreigamento de antigas mentalidades, intransigentemente apegadas à cultura anterior. É, afinal, este o processo da Reforma (protestante) em países como a Inglaterra, a Holanda, em vários Estados da futura Alemanha, na Suiça, etc. e da Contra-Reforma da Igreja católica, em nações como a Espanha e Portugal, com profundos efeitos até aos nossos dias - até porque as viagens de descoberta e conquista levaram os povos ibéricos a obter o domínio de toda a América Latina, deixando para a cultura cristã predominantemente de raiz protestante a América do Norte.
O que pretendo fazer aqui, de forma necessariamente breve devido aos constrangimentos impostos pelo blogue, é uma sumária comparação entre essa situação do passado e o actual estado do mundo, naquilo a que se convencionou chamar "globalização". Tal como Montaigne o foi no século XVI, nós estamos a ser testemunhas de uma enorme agitação e mesmo revolução. Aliás, não somos apenas testemunhas. Somos participantes.
Geralmente quem fala sobre a globalização exalta as suas potencialidades. Mas é difícil de escamotear o facto de que a incerteza reina e a relativa segurança das décadas que antecederam os dias de hoje tem vindo a diluir-se. Ressurgem conceitos que se poderiam julgar definitivamente ultrapassados, como a precariedade do trabalho, a desumanização das relações laborais, a mentalidade que vira costas ao social para embarcar furiosamente no lucro puro e duro.
Será que o conceito de globalização ocorre pela primeira vez? Então, e a actividade de séculos dos portugueses nos mares da Índia, da China e do Japão? E as armadas espanholas que transportavam enormes quantidades de mercadorias, de ouro a prata, de especiarias a cerâmica, entre as Filipinas e a América Latina e a Europa? E a grandiosa frota holandesa, que ia tão longe que precisou de criar um crucial entreposto na ponta de África onde Atlântico e Índico confluem, que depois se transformou na África do Sul mas que entretanto permitiu que se fizessem com notável sucesso viagens a Ceilão e à Indonésia? E que dizer da mais poderosa de todas as frotas comerciais e de guerra - a britânica - que formou variadíssimos empórios comerciais, logrou impor-se em todo o vasto continente indiano, vergou o poderio chinês, entrou pela Nigéria dentro e tornou viável a colónia que mais tarde se haveria de transformar nos Estados Unidos da América? Esta globalização que hoje vivemos é, apenas, mais uma globalização. Certamente diferente das outras pelos meios tecnológicos que utiliza, mas tão ou mais exploradora do homem do que todas as outras.
Entretanto, porque terminaram as globalizações anteriores? Porque eram ciclos e não processos lineares que se pudessem estender indefinidamente. Porque as questões em jogo não permitiam continuar o processo da mesma forma. Daí resultaram nuns casos meras querelas, noutros conflitos em maior escala e, em certas conjunturas, sanguinolentas guerras entre as nações colonialistas europeias promotoras dessa globalização.
Não creio que estejamos presentemente à beira de uma guerra, mas é curioso ver como as nações se agregam em blocos para assim se tornarem mais poderosas. Sob o ponto de vista militar, EUA e Rússia continuam a ser os países mais poderosos num mundo global que está muito longe de ser um vastíssimo estado de direito, pelo que, quer queiramos quer não, a derradeira divisa continua a ser might is right (o poder está na força). Daí que ameaças verbais contem pouco contra o real poder das armas. Já nos teremos esquecido de factos ainda recentes como os bombardeamentos de Belgrado, Bagdade e Beirute, todos por aviões ocidentais? O que puderam as populações de Beirute, Bagdade e Belgrado fazer contra as bombas despejadas do ar?
Ameaças fortes, tais como desequilíbrios sérios nas moedas, valorizações e desvalorizações substanciais a fomentarem desemprego e descida do nível de vida, largos movimentos migratórios, elevados preços de matérias-primas e especulação financeira de grande gabarito podem, a prazo indeterminado, conduzir a conflitos bélicos de pequena, média ou grande envergadura. Tudo é uma incógnita. É por isso que convém recordar as palavras de Montaigne sobre o seu tempo. Tanto a (boa) globalização como o seu reverso são factos a tomar em linha de conta.

Nota: As linhas entre aspas foram retiradas de uma conferência de Manuel Cícero, a que assisti na Gulbenkian há uns meses.

12/14/2007

Ainda o acordo ortográfico

Sinto que já não deveria voltar neste blogue ao tema do acordo ortográfico. Há uma boa razão: não suscitou qualquer comentário. Mesmo assim, não me conformo, repetindo embora algumas das minhas ideias-chave. A primeira é que não sou de maneira nenhuma contra mudanças, desde que elas façam sentido e tenham lógica no contexto de uma determinada sociedade e língua. A segunda, também básica, é que não entendo por que razão sociedades diferentes que tiveram a sua evolução própria e são hoje, politicamente, nações independentes, hão-de querer unificar a sua ortografia, se a sua maneira de pronunciar as palavras é por vezes bem diferente. Haverá sempre alguém a ser forçado, e nada justifica isso. Parece que só a parte comercial é que interessa. Até nisto, Santo Deus! A língua, seja na sua forma oral, seja na escrita, não é algo em que se possa mexer como se manipula um produto!
No outro dia, calhei ter ao pé de mim uma edição datada de 1820 de uma obra do Padre António Vieira. Tirei, de propósito, algumas notas. Naquela altura, escreviam-se muitas consoantes duplas que mais tarde se verificou serem desnecessárias, v.g. accender, appetite, aquelle, intelligencia, annos, elle, nellas, soccorro, efficaz, occulto, succede, supponho; ditongos nasais que pareceriam muito esquisitos hoje: satisfaçaõ, naõ, irmaõ, irmãa, maõ, lãa, ladroens, varoens, Capitaens; não se acentuavam palavras nitidamente esdrúxulas como temerario, prudencia, misericordia, lisongeas, materia e Alfandega; muitas palavras graves eram desnecessariamente acentuadas, v.g. pódem, Angòla, cautélas, tomára, óvos, póde, démos; a 3ª pessoa do plural dos verbos no indicativo presente era muito estranha, como se pode ver em trabalhaõ (trabalham), entendaõ, saibaõ, etc.
Ora bem, tudo isto foi corrigido, felizmente. Hoje a língua portuguesa está melhor graficamente, mais rápida na escrita e mais lógica. Não achei mal uma das últimas mudanças que se fizeram, que foi retirar a acentuação nos advérbios de modo (terminados em –mente, como somente, tecnicamente, etc.) Não estou em desacordo com alterações que estejam de acordo com a nossa pronúncia e sejam passíveis de simplificação reflectida e lógica.
Estou, no entanto, totalmente em desacordo com o facto de termos ou que puxar por outros países ou andar a reboque deles. Se o tempo do colonialismo acabou, não se diga uma coisa e faça-se outra. Não temos rigorosamente nada a ver com a grafia do português que se fala no Brasil. Nem devemos tentar mudar a ortografia usada pelos brasileiros nem eles a nossa. Idem para os angolanos e moçambicanos. Os países independentes tomam o rumo que querem. Ponto final.
Repare-se no exemplo dado pelo inglês do Reino Unido e pelo inglês dos Estados Unidos, que, naturalmente, faz com que os nossos computadores estejam equipados com um inglês UK e um inglês USA. O mesmo poderá suceder, se é que não sucede já - e com naturalidade - entre o português de Portugal e o português do Brasil. Quando leio um livro brasileiro, noto logo nas primeiras linhas que está escrito em português do Brasil. Tudo bem. Sigo em frente. Quando um brasileiro lê um livro de um autor português, repara imediatamente que existem diferenças substanciais, e que estas estão longe de se resumir a ortografia. Isto está correcto e é normal. É a evolução natural das sociedades e das línguas. Para quê alterar o que está bem? Colonialismo no sentido inverso? Se quem anda a tratar desta errada uniformidade ortográfica fosse plantar batatas, seria bem melhor! Talvez ao andar de cabeça baixa para plantar as ditas percebesse melhor a dimensão do problema.

12/11/2007

Discutindo a legalização da prostituição

Um artigo de Francisco Sarsfield Cabral (FSC) no Público de ontem referia-se a "uma anunciada petição ao Parlamento no sentido de legalizar a prostituição em Portugal". Já há muitos anos que leio com agrado os artigos assinados por FSC sobre economia. São equilibrados, informativos e colocam os pontos nos ii com a objectividade própria de um economista.
O artigo intitulado "Vender o corpo" não versa um assunto predominantemente económico, pois, nas palavras de FSC, "o cerne da questão - legalizar ou não a prostituição - é de natureza ética." E é aqui que, feliz ou infelizmente, entramos numa discussão tipo legalização do aborto, em que as opiniões se extremam. Creio que a habitual objectividade de FSC desaparece quando afirma, ao falar dos países escandinavos, da Holanda e da Alemanha, que nesta última "uma mulher desempregada que se recuse a ir para um bordel arrisca-se a perder o subsídio de desemprego." O que é isto?! Quem acredita que, num país como a Alemanha, se uma operária, uma secretária, uma gestora, uma professora perder o seu emprego, a Segurança Social lhe propuser ir para um bordel e ela recusar, perderá o direito ao subsídio atribuído a quem está desempregado?
Por este caminho fundamentalista, a discussão irá indubitavelmente descambar na falta de ética, o que, para um assunto confessadamente ético por natureza, não parece ser o melhor começo.

12/10/2007

Sobre a aprendizagem de línguas

"O síndroma do –s" (02/12) gerou algumas perguntas, a que tentarei dar resposta. Além dos comentários registados, recebi algumas questões que me foram colocadas por e-mail. Na suposição de que determinadas perguntas carecem de uma resposta que será eventualmente de interesse para mais leitores, permito-me responder com novo texto nesta parte principal do blog. Fica combinado que (1) voltarei ao síndroma do -s devido à questão do apóstrofo, (2) tratarei noutro post o assunto do a ou an em inglês antes de substantivo e, já a seguir, tentarei responder a uma questão mais genérica que me foi colocada por M. Alfacinha: porque é que, embora conheçamos as regras de uma língua estrangeira, continuamos por vezes a cometer erros?

Todos sabemos que ensinar e aprender estão, pelo menos em princípio, intimamente ligados. A aprendizagem da língua materna é uma das primeiras actividades humanas. O ensino faz-se, regra geral, de pais para filhos. Mãe, pai, avós & Cª são exímios a ensinar e têm nos bebés atentos alunos, conquanto eles pareçam por vezes algo distraídos. Porque as crianças de berço nada sabem, os ensinantes martelam as palavras, como se estivessem a martelar as teclas de um piano. É uma técnica universal. Repetem as sílabas para que as palavras encaixem melhor no cérebro que se está a desenvolver. É dessas repetições que vem a palavra bebé, conjuntamente com mamã, papá, xixi, cocó, papa, teté, popó, e até o tau-tau. A criança vai absorvendo. Um dia acabará por substituir essas palavras por outras mais adultas, mas reservá-las-á no seu cérebro para falar mais tarde com os seus próprios filhos. Os exemplos acima são de substantivos, uma das partes mais simples da língua. Porém, quando uma criancinha começa a ter de construir frases, o caso muda de figura e torna-se mais complexo. A diferença nos verbos entre passado, presente e futuro implica desde logo a assimilação da noção de tempo, algo que não é intuitivo mas que a criança vai assimilando. Na realidade, vai assimilando tão bem que, pouco a pouco, vai apreendendo e construindo para si própria as regras básicas da (sua) língua. Os adultos vão continuando a falar com ela, e quanto mais o miúdo ou a miúda tiverem de compreender, tanto melhor se expressarão quando precisarem de o fazer. A criança criou, entretanto, o seu software linguístico baseado nos padrões de regularidade que foi captando. Previsivelmente, a mesma criança claudicará nas excepções. E não são tão poucas como isso. Um adulto já há muito que passou essa fase porque esteve exposto à língua durante muito mais tempo. Porém, é normalíssimo e até saudável que uma criança se engane nos tempos verbais e diga posi em vez de pus, di em lugar de dei, ou fazi querendo dizer fiz. São coisas que geralmente provocam o riso dos adultos, mas que não são mais do que o reflexo da apreensão da base da língua (ele pôs, logo eu posi; se eu vi, eu di; ela faz, logo eu fazi). Na mesma linha, é natural que as crianças falem em cãos e não digam logo cães. Aprenderam a regra do padrão normal por si próprias, e é agora que vão começar a lidar com as excepções, o que levará o seu tempo.
Ora, na aprendizagem de uma língua estrangeira, uma criança, um adolescente ou um adulto já tem normalmente que contar com o seu próprio substrato linguístico, por si criado e profundamente enraizado. Vamos supor que a língua estrangeira é o inglês. Para aprender de cor expressões como good morning, good night, thank you, good-bye, ou substantivos como school, book, pen, pencil, ball e coisas simples como estas, a criança não necessita de criar outro software, embora entenda que se trata de uma língua diferente da sua. Contudo, quando precisar de usar adjectivos e substantivos, formas verbais ou construir frases negativas ou interrogativas, aí tem mesmo que criar outro software na sua cabeça. Se as novas estruturas lhe forem explicadas de forma simples, em processo gradual e dando-lhe a possibilidade de ela própria começar a aplicar os conceitos, aprenderá com relativa facilidade. E quanto a fazer erros? Recordemos os exemplos dados, reais, de eu posi, eu di, eu já fazi, e outros, que a criança nunca ouviu da boca de um adulto mas que criou à sua maneira, dentro da regularidade padrão que ela própria edificou. Na aprendizagem da língua estrangeira, vai suceder praticamente o mesmo, mas com comparações diferentes: quanto maior for a diferença entre a estrutura da sua língua materna e a do idioma que está a aprender, tanto menos fácil em princípio se torna a aprendizagem.
Paremos aqui um pouco para lembrar que lembrar que, em português, formação é um vocábulo simples, o que normalmente não sucede em inglês. Para este conceito de formação, o inglês usa education and training, o que nos dá uma chave importante. Tomemos education como a explicação teórica e training como a prática. Os dois aspectos completam-se entre si. Quem raramente pratica uma língua tem, logicamente, mais probabilidade de cometer erros. Porquê? Porque não criou as rotinas suficientes. A criação de rotinas é essencial para que, com uma boa base teórica, que estabeleça uma diferença facilmente compreensível entre os dois tipos de software linguístico, o aluno deixe de pensar tanto na forma do que diz e passe a falar ou a escrever com maior fluência. Daí que seja muitíssimo importante, por exemplo, que nas aulas de língua inglesa se use apenas o inglês como idioma, reservando eventualmente o português para o mero significado de um substantivo, adjectivo ou verbo.
Ao longo da minha vida profissional, encontrei alguns óptimos professores de língua inglesa. Para a esmagadora maioria daqueles com quem trabalhei, o inglês era a língua materna. Pessoalmente, aprendi muito com eles, mas também notei que precisavam frequentemente de saber como explicar a estudantes portugueses determinadas questões. Nenhum deles, porém, fazia erros do género de I didn’t knew it, ou It’s twenty miles far from Lisbon ou It’s a five-stars hotel. Por seu lado, os professores portugueses eram geralmente muito bons, sabiam explicar bem, mas podiam de vez em quando ter um slip of the tongue do género de Did he said that?. Acontece a todos. No passado também me aconteceu a mim. É gravíssimo? Não, a não ser que seja frequente. Aí será realmente preciso corrigir urgentemente. Sabe-se a explicação, mas ainda não se conseguiu a automatização total. Eu diria que com a prática muitos dos erros serão eliminados, porque a componente training é essencial. Para adolescentes (e não só), os filmes são um óptimo complemento de aprendizagem, assim como a leitura de peças de teatro modernas (com um diálogo natural e, ainda por cima, escrito) e a participação em programas de intercâmbio como o Erasmus.
Já agora, convém que quem se põe a aprender uma língua não tenha a aspiração de ser cem por cento perfeito. É uma atitude que tende a causar inibição. No fundo, é preferível cometer um deslize linguístico com um sorriso do que falar de forma gramaticalmente correcta com uma cara-de-pau.

12/08/2007

Colonialismo - "Take" mil!




Como não poderia deixar de ser, a actual cimeira de Lisboa entre a Europa e a África levanta mais uma vez o clássico tema do colonialismo. Mugabe é certamente o líder mais contestado pelos europeus, muito possivelmente devido ao facto de, entre outros actos execráveis, ter retirado terras da posse das antigas famílias colonizadoras britânicas. A este propósito permito-me lembrar as palavras do antigo dirigente negro Jomo Kenyatta: "Quando os brancos chegaram a África, nós tínhamos as terras e eles a Bíblia. Ensinaram-nos a rezar de olhos fechados. Quando os abrimos, eles tinham as terras e nós a Bíblia."
Embora estes brancos não fossem portugueses mas sim britânicos – que portugueses poriam os nativos a ler a Bíblia? -, o problema põe-se sempre da mesma forma: a ocupação das terras. A terra sempre foi vista como mãe, e sagrada por isso. Não foi por mero acaso que no nosso país os judeus podiam entrar na finança e nas artes-e-ofícios, mas não eram autorizados a possuir terras.
Dir-se-á que o Zimbabue de hoje é muito menos rico do que foi aquando da colonização britânica. Quem duvida? No entanto, se o critério para a titularidade de uma terra é a produtividade que dela se obtém, ficaremos muitos de nós aqui em Portugal em maus lençóis. Aliás, essa é uma das justificações que há muitos anos ouço para a ocupação das terras da Palestina pelos israelitas. Bastará esse facto? Por extensão de raciocínio, os poços de petróleo no mundo passariam para a mão de quem melhor os explorasse. Seria, portanto, suficiente cortar as asas à educação dos terra-tenentes para que aparecesse alguém, estrangeiro mesmo, a proceder à respectiva ocupação - pela força das armas se necessário. Quanto ao direito internacional consagrado, bastaria não o cumprir.
Em minha opinião, se o Zimbabue não tivesse sido anteriormente a florescente Rodésia e as boas terras não tivessem pertencido a famílias brancas, o clamor contra Mugabe seria diferente. Sendo mau como governante, como vários dados estatísticos sobre o país amplamente demonstram, é possível que enfileire apenas numa galeria recheada de fracos governantes africanos. Entretanto, entende-se perfeitamente a atitude de ausência da cimeira por parte das autoridades britânicas. Se viessem, estariam em certa medida a endossar a política de Mugabe, o que irritaria sobremaneira os numerosos colonos brancos britânicos que se mantêm em países independentes que outrora fizeram parte do império de Sua Majestade e que contribuem fortemente para os contactos com a metrópole e respectivos negócios.
Hoje, junto ao Parque das Nações, houve pequenas mas ruidosas manifestações contra e pró-Mugabe. Deixo aqui duas das várias fotos que tirei. Cada um conclua o que quiser.

12/07/2007

Capítulo revisto

Em Abril do ano passado, referi aqui o problema de uma parte significativa da sociedade portuguesa - e, certamente, também de outras - relativo à dificuldade com que mulheres empregadas se deparam para ter filhos. Entre outros factores, pelo receio de perderem o seu lugar, essencial para o equilíbrio das contas do casal. No caso em questão, contei que a Leonor, uma simpática e eficiente funcionária do banco a que costumo ir, tinha 27 anos, estava casada havia três anos, morava do outro lado do Tejo, não tinha ainda filhos e, como me disse, "não sei como é que isso vai ser". E concluiu o seu raciocínio: "Não tenho tempo. Entro aqui todos os dias pouco depois das oito e chego de volta a casa às 8 da noite." O horário do banco era ultrapassado em muito, como é evidente, mas havia também o factor dos transportes.
Eu referia no post, algo azedamente, reconheço, que "é assim que a empresa espera que a sua funcionária corresponda, contribuindo com o seu quinhão de esforço para que o banco alcance os objectivos anuais que previamente definiu."
Já não vejo a Leonor há bastantes meses. Teria deixado a agência depois de lá ter trabalhado durante três anos? A boa notícia que me deram hoje é que ela está feliz, em casa e ainda em licença de parto, com a sua bebé. Por seu lado, o Banco portou-se bem e prometeu arranjar-lhe um lugar numa agência mais próximo de sua casa. Para mim foi uma excelente notícia de Natal, até porque é de algo natalício que se trata. All’s well that ends well.

12/06/2007

Afeganistão

Eu já sabia que o –tan (ou –tão, em português) que termina alguns nomes de países asiáticos significa "terra". Assim teremos, por exemplo, Cazaquistão (terra dos cazaques), Industão, Paquistão e Afeganistão. O que eu não sabia é que as exportações de ópio do Afeganistão somavam o equivalente a mais de metade do PIB lícito do país e constituíam 93% de todo o ópio que se consome no mundo. Graças a estes números, o Afeganistão tornou-se o maior produtor de narcóticos à escala mundial desde o período de ouro da China, neste mesmo domínio mas no século XIX.
Uma pergunta: não é no Afeganistão que estão tropas portuguesas?

12/04/2007

Mudanças

Para quem já pode falar de um relativamente longo curso de vida é, obviamente, mais visível a mudança das sociedades em determinados padrões. Atrevo-me a dizer que na sociedade portuguesa existem, para além de vários outros, uns tantos pontos em que são bem notórias alterações substanciais. Embora os factores que agora são predominantes sempre tivessem existido, o seu peso era claramente inferior ao dos seus contrários. Todos os itens que aponto têm alguma ligação entre si.
Uma das alterações mais significativas consistiu na passagem de uma sociedade prioritariamente do dever para uma outra primordialmente dos direitos. Onde outrora se falava de obrigações, hoje tende-se a invocar direitos. Este novo posicionamento retira prazer ao trabalho, que se continua a fazer mas mais esforçadamente, incentiva o pensamento em fins-de-semana, nas férias e na aposentação/reforma e, à escala nacional, conduz a menor rigor, maior facilitismo e produtividade mais baixa.
Directamente correlacionada está a redução da capacidade de sacrifício, como reflexo da glorificação do prazer. A sociedade de há umas décadas era mais resignada e arcava com o seu fardo como um dever natural. Com a diminuição do limiar de sofrimento, passou a existir uma insatisfação maior e um mais agudo sentimento de inveja perante os que se podem dar ao luxo de prazeres vários e excentricidades. Daqui resulta uma sociedade mais tumultuosa e menos contida.
Os valores éticos sofreram uma clara menorização, em parte como resultado da limitação da consciência do que é "pecado". A contrapor-se, surgiu a liberdade, o vale-quase-tudo. Aspectos religiosos, muito salientes em décadas anteriores, esvaneceram-se notoriamente. As filas que se registavam noutros tempos para a confissão dos pecados dos fiéis só muito esporadicamente poderão voltar a surgir. A existência de menos valores de referência leva a que, em caso de comportamentos duvidosos, a lei seja invocada por uns tantos como não infringida - o ónus da prova ficará a cargo do acusador -, relegando para segundo plano eventuais aspectos éticos.
Toda a transição do culto de um certo espartanismo, que anteriormente prevalecia, para uma ficcionada sociedade de bem-estar "romano" levou a que vários provérbios antigos passassem a ser ignorados. "No poupar é que está o ganho" constitui um bom exemplo, substituído gradualmente por algo não expresso mas materializado em "no gastar é que está o prazer da vida". Deste novo posicionamento resultou inicialmente uma taxa de poupança em forte diminuição que, posteriormente, se traduziu num acentuado endividamento das famílias.
No seu conjunto, estas são alterações muito profundas.

12/02/2007

O síndroma do -s




Pergunte-se a um professor de inglês se os seus alunos têm grandes dificuldades em aprender a língua. O mais natural é que ele (ou ela) diga que não. Mas acrescentará que existem alguns berbicachos. Talvez o mais importante destes seja a interferência do nosso –s. Poder-se-ia mesmo chamar-lhe o síndroma do –s. Porquê?
A resposta cabal seria longa, mas vou tentar sucintamente dar uma ideia. Calcula-se que um terço das dificuldades que os alunos denotam na aprendizagem de uma língua estrangeira derive de interferências da sua própria língua. É lógico que essas interferências existam. No que respeita à aprendizagem do inglês, o caso do –s é característico. Para um português, pensar em termos de –s final é pensar em plurais. Esqueçamos palavras de excepção como lápis e pires que, apesar de serem singulares, já contêm um –s. Pensemos antes em praticamente todas as outras, como livros, computadores, homens, mulheres, crianças, etc. É a ideia enraizada de que "um –s no fim da palavra é igual a plural" que nos leva a pensar que é assim em todas as línguas.
Porque haveria de ser? Na foto que acompanha este post, vemos o anúncio de quartos em vários idiomas. Tudo termina em –s, uma vez que falamos de quartos e não apenas de um quarto. Foi certamente isso que levou o bem-intencionado autor do letreiro a escrever erradamente Zimmers. De facto, quartos são, na língua alemã, Zimmer. Perguntar-se-á: então como se distingue um quarto de vários quartos? É fácil. Nos exemplos dados de lápis e pires, se falarmos em os lápis e os pires, sabemos que estamos a tratar de um plural. Em alemão, basta igualmente a mudança da palavra que antecede Zimmer para se compreender se é singular ou plural.
Ora, o inglês é uma língua originariamente germânica, se bem que a esmagadora maioria do seu vocabulário seja, felizmente para nós, de raiz latina. Daqui sucede que quando surgem palavras como man, woman, child, foot, mouse, etc., todas de origem germânica, haja uma enorme tendência para fazer erradamente o plural em mens, womens, childrens, feets e mouses. Difícil de corrigir? Não. Qualquer explicação simples como esta, conjugada com exercícios para a criação de rotinas, resultará.
Pior, muito pior, é o caso dos verbos. Quando se diz a um aluno que a terceira pessoa do singular do Indicativo Presente dos verbos termina em –s, ele aceita - que remédio! - mas a coisa custa-lhe um bocado a engolir, principalmente quando tem de aplicar. Para quem aprende, aquele –s é perfeitamente contra naturam. Ora, facilitará muito a missão do professor explicar que afinal aquele –s nada tem a ver com plural e que essa é a razão porque não tem significado de maior aplicá-lo num singular. De facto, quando o aluno tem que aprender que é he likes it em vez de he like it, ele olha algo de esguelha para a língua. Mas se se lhe disser que aquele –s até está lá, por assim dizer, para lhe facilitar a vida, ele fica mais receptivo. Na realidade, o actual –s que encontramos em praticamente todos os verbos (she loves it, he writes books, it looks fine) não passa de uma simplificação do antigo -th, que tem uma pronúncia aproximada do –s e, afortunadamente, evoluiu para este. Imagine-se a frase: What God giveth, He can take. Não será muito mais simples dizer What God gives, He can take? Se o inglês continuasse sempre com aquele –th, contaminar-nos-ia com a forma de falar tipo "sopinha de massa". Tenho por experiência própria que, perante esta explicação simples, o aluno apreende a ideia facilmente e, depois da prática que lhe vai naturalmente ser necessária, horrorizar-se-á até com aqueles colegas que dizem he speak, he read em vez de he speaks, he reads.
Esta arreliadora interferência do –s surge ainda noutros casos, de que mencionarei apenas mais dois ou três. Experimente-se pedir a alunos médios para dizer ou escrever em inglês algo como "as fábricas e os seus produtos". Garantidamente, alguns dirão the factories and its products. Quando se lhes chama a atenção para o uso não correcto de its, dirão "as fábricas não são pessoas, logo..." Logo, o quê? É verdade que its se emprega como possessivo de coisas. O problema é que estamos em presença de um plural (factories). Pois é, mas o problema reside exactamente no facto de que its também termina em –s, o tal que é característico do plural em português. É daqui que vem a interferenciazinha. Quando se pede aos alunos para usarem their, alguns a princípio até duvidam: afinal their é uma palavra que não termina em -s.
Então, e o que dizer da palavrinha inglesa this? É muito frequente que mesmo alunos razoáveis escrevam this things ou algo do género. Mas se pensarmos no "síndroma do -s", que coisa pode haver de mais natural? Embora this seja um singular (isto; este, esta), o facto de terminar em -s torna-o numa atracção quase fatal, que consiste em fazer coincidir o -s de things com o -s de this. De facto, a palavra correcta a usar - these - parece em princípio à nossa formatação cerebral pouco ajustada a um plural por não terminar em -s.
Precisamente pelo mesmo motivo, people é tratado por muitos estudantes de inglês como singular (falta-lhe o essezinho!) e news, apesar de singular, é uma palavra vista como plural. É claro que quanto mais cedo se alertar para esta tendência, explicando a sua etiologia, e praticar, tanto melhor. Caso contrário, teremos durante muito tempo estudantes a dizerem people is like this e what are the news? - em vez de people are like this e what's the news?
É assim, através das raízes lógicas que a língua materna forma no nosso cérebro que se dão muitas colisões na aprendizagem de línguas estrangeiras. Nada que não se resolva, mas convém alertar para estes factos e fazer incidência neles através de exercícios interessantes para que o problema tenha uma solução mais rápida.


P.S. Este é um modestíssimo contributo linguístico - elementar mas original - que dou aqui no blog. Se for do agrado de alguns leitores, prosseguirei de vez em quando com outros. Se ninguém se manifestar, este terá sido o último. Por razões óbvias.