6/15/2009

O exemplo

Nas cerimónias comemorativas do passado dia 10 de Junho, António Barreto falou, e bem, sobre o valor do exemplo dado à sociedade por pessoas íntegras. Se esse exemplo provier da elite, seja ela governamental, científica, clerical, judicial, médica ou outra, tanto mais importante. Os melhores exemplos vêm de cima. Embora com um sentido ligeiramente diferente, Escrivá, o fundador da Opus Dei, disse com alguma justificação: "Os intelectuais são como os cumes cobertos de neve. Quando a neve derrete, as águas correm para os vales e fertilizam-nos."
Ainda há dias, ou aqui neste mesmo local ou em comentário ao único blog que leio regularmente – o http://jametinhasditos.blogspot.com - eu falava do valor do exemplo. Contudo, é bom que tenhamos em mente que o exemplo não é condição necessária e suficiente para que todos o sigam. Se assim fosse, essa seria a solução mágica para tudo. Contudo, ele é imensamente importante na educação das pessoas e no paradigma que se cria para a sociedade.
Fundamental é que interiorizemos que "comportamento gera comportamento". Quem é amável para com outra pessoa recebe na generalidade um tratamento agradável por parte dessa pessoa. Mais: a amabilidade do tratamento tende a ser simpaticamente contagiosa, pelo que o (nosso) interlocutor será, em princípio, amável para com uma terceira pessoa.
Todavia, o que serve para o bem é igualmente válido para o mal. Assim "violência gera violência". Com ganhos para quem?
O pior de tudo, creio eu, é a hipocrisia de pregar uma coisa e fazer outra. Talleyrand (1754-1838) legou-nos uma reflexão importante nesta linha: "As palavras são usadas para dissimular o pensamento." Este é o típico exemplo cínico. Assim também a langue de bois, como os franceses lhe chamam, ou o orwelliano newspeak, são exemplos porventura convenientes para quem os utiliza mas perniciosos para a sociedade em geral. Não são transparentes nem leais. O falante dispara palavras codificadas, que no fundo fazem o newspeak ser algo semelhante à reflexão de Talleyrand.
Uma vez, já há largos anos, alguém comentou para mim com grande convicção interior: "Quem me deve que pague, a quem eu devo que espere!" Achei a frase um horror e recordo-me de ter protestado vivamente com a pessoa em questão. Verifiquei depois que, afinal, a expressão era de uso mais ou menos corrente. Péssima. Não é assim que se conquista a confiança das pessoas, e a confiança é algo vital numa sociedade sã. Embora nunca se consiga atingir o ideal de uma sociedade totalmente sã, logo que se alcance uma maioria de cidadãos que possuam uma mente sadia e traduzam em actos coadunantes o seu pensar, o número de peças podres da sociedade tenderá a diminuir. É o efeito bandwagon. Convém não esquecer, porém, que este também funciona inversamente.
O respeito pelos outros – algo essencial em quem pretende ser respeitado – manifesta-se de milhentas maneiras: no profissionalismo com que se exerce uma determinada ocupação, na pontualidade, no uso da verdade, na transparência e lealdade do trato, na prontidão com que se paga uma dívida, nas desculpas que se apresentam por um erro cometido, etc.
Este é todo um conjunto de práticas que contrastam com o que se ouve por muito lado. E o que é que se ouve? Coisas como "Isto aqui agora é a ver quem rouba mais!", "Os governantes são todos uma cambada. Em vez de nos governarem, governam-se a si próprios!", ou "Deus disse-nos para sermos bons, não nos disse para sermos parvos". Esta última frase é típica daquele que se escuda no erro do outro e faz o mesmo, crendo que o facto de ter o flanco protegido por outra pessoa que cometeu a mesma falta deixa de o incluir no grupo das maçãs podres do cesto. Além disso, muito convenientemente para si mesmo, a pessoa que usa esta frase subalterniza o que Cristo disse para se agarrar àquilo que ele não disse! Vai até aqui a auto-desculpa do homem!
O bom exemplo é primordial. Se um ministro fala ao povo na necessidade absoluta que o país tem de efectuar uma redução das suas despesas e depois encomenda um avião particular para as suas próprias funções, perde automaticamente todo o crédito. Se um governante anuncia uma subida de impostos inadiável e apregoa o mesmo apertar de cinto à população, e depois se vem a saber que esse governante não aperta o cinto porque usa suspensórios, a sua credibilidade fica obviamente abalada. É que, como atrás se recorda, o exemplo que vem de cima é muito mais importante do que o da arraia-miúda.
No dia-a-dia das nossas vidas, será importante devolver a tempo e horas um livro, um CD ou um DVD que se recebeu emprestado? É. No futebol ou em qualquer outro desporto em que haja contacto físico, será importante ajudar o adversário sobre o qual cometemos falta a levantar-se? É. No que respeita a impostos a pagar ao Estado, é importante ser cumpridor e verdadeiro? É. Quem pergunta "Porquê?" relativamente a estes três casos – meros exemplos de uma plêiade de exemplos possíveis – carece urgentemente de rever o seu posicionamento quanto aos seus deveres.
Em sociedades mais sãs do que a nossa, que as há, questões como estas não se levantam prioritariamente porque a maioria da população as cumpre. Noutras, piores do que a nossa, que também as há, questões deste tipo apenas causam sorrisos: a árvore está contaminada da copa à raiz.
Um professor que exija trabalho dos seus alunos tem que, ele próprio, trabalhar. Ser rigoroso para com os outros e desleixado para consigo próprio é um mau exemplo. Qualquer líder tem mais deveres do que direitos – conceito que muitos chefes terão grande dificuldade em engolir. No entanto, é fácil compreender porquê.
O caso da propaganda política em tempo de campanhas eleitorais é sintomático do estilo de Talleyrand. Sabendo que o voto do pobre conta tanto como o do rico e constatando que há mais pobres do que ricos, eis todos os candidatos, mesmo os da direita, a fazerem propaganda típica de esquerda. Depois, uma vez legitimados, fazem o que Juan Perón magistralmente resumiu: "A política é como um violino. Começamos por pegar-lhe com a mão esquerda para depois tocarmos a melodia com a direita."
O importante para que a situação se vá invertendo com o tempo é conseguir que haja um escol que induza a boas práticas, que faça público reconhecimento de alguns erros se os tiver cometido, que os professores nas escolas tenham boa conduta e penalizem severamente casos de fraude dos seus alunos através de cábulas e outros processos, que os ministros apanhados em suspeita de falta grave se demitam imediatamente para que a justiça os possa julgar. A questão centra-se numa ordem numérica: quantos mais indivíduos com poucos valores válidos houver numa sociedade, tanto melhor aqueles que não possuem quaisquer valores se sentem. Inversamente, quando o número de pessoas íntegras, que dão o bom exemplo, supera os 60 ou 70 por cento, tanto pior se sentem aqueles que não possuem quaisquer valores. No primeiro caso, a justiça funciona necessariamente mal porque ela própria estará em minoria e evita ferir susceptibilidades que, afinal, são maioritárias; no segundo caso, pode e deverá funcionar muito melhor, sem constrangimentos de vulto.
A terminar por ora este assunto que carece de longo debate - seguido de acção - , uma clássica frase de Winston Churchill a propósito da falta de valores de algumas elites: If gold rust, what shall iron do? (Se é o próprio ouro a ganhar ferrugem, o que se pode esperar do ferro?)

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