(Atrevo-me hoje a registar aqui dois textos, escritos há longos, longos anos, durante o período da guerra de África. Local: Angola.)
Quipedro, 25 de Março de 19..
"Cartas para namoradas levo-as aqui, no bolso da camisa. Bem junto ao coração!" Foi assim, jovialmente, que o alferes miliciano cuja companhia vim render a Quipedro aceitou a minha carta para pôr no correio em Luanda. E lá partiu, juntamente com o seu longo combóio de viaturas, ao lado do motorista num jipe que se embrenhou pela noite dentro e estrada fora rumo a uma Luanda que dista mais de 400 kms.
O mato tem destas coisas. Aqui em Quipedro, onde existem apenas as casas que são ocupadas pelos militares, não há posto de correio. Espera-se que venha uma avioneta trazer mantimentos, a qual depois levará a correspondência, ou então aproveita-se uma raríssima boleia por estrada de alguns dos poucos militares que por aqui se aventuram. É que a estrada é perigosa. Do alto das árvores que a flanqueiam ou de um morro próximo têm sido bastantes os ataques. Daí que nunca haja viaturas isoladas a fazer o caminho.
A vida continuou normalmente depois que as tropas rendidas por nós partiram. Os dias passaram. Chegou entretanto a notícia via rádio militar que a coluna dos nossos colegas tinha sido atacada. Havia um morto a registar. Foi notícia, mas tudo passou, a vida continuou a correr.
Hoje, porém, o choque foi terrível. Entregaram-me, juntamente com um embrulho de revistas alemãs como sempre enviado pelo meu bom amigo Klaus, um envelope de avião escrito pelo meu próprio punho. Vinha todo manchado de sangue. Era a carta para a namorada. O meu colega alferes oferecera-se de muito bom grado para me levar a carta, mas toda a sua simpatia e alegria naturais tinham sido cortadas cerce por um único tiro que uma nativo inimigo disparara. Os faróis acesos do jipe tinham denunciado claramente a posição do alferes. A bala acertara-lhe em cheio no coração e dera-lhe morte imediata. A visão da carta ensanguentada não me sai da cabeça. A linha da vida, tão ténue! Vou queimar o envelope, sem o abrir, e não vou mencionar o caso para Lisboa. Quanto ao meu colega, só sei que se chamava Luiz. Conhecemo-nos muito pouco tempo. Contudo, atendera o meu pedido como se fosse um amigo do coração!
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