10/04/2004

Lei do Arrendamento Urbano - II

À primeira vista, o Hélder tem razão (ver comentário a "Lei do Arrendamento Urbano"). Só que justiça e injustiça são conceitos que contêm muito de subjectivo. Considerar injusta a discriminação de inquilinos é uma opinião perfeitamente defensável: um bem ou um serviço têm em princípio o mesmo custo para todos, independentemente de quem os adquire ou utiliza. Por esse motivo, o tarifário de reparação de um automóvel, por exemplo, assume o mesmo valor para um pobre, um rico, uma pessoa idosa ou um jovem.
Já há largas décadas, porém, que a habitação é vista entre nós como algo à parte. Se essa óptica está certa ou errada é um julgamento subjectivo. Uma coisa é certa, todavia: foi o Estado quem elaborou e aprovou as leis do arrendamento, não os inquilinos. Os construtores estão naturalmente há muito informados da legislação, embora muitos proprietários tenham sido apanhados de surpresa com algumas medidas pós-25 de Abril de 74.
Bem ou mal, a sociedade portuguesa tem considerado ser a idade de 65 anos o limiar da reforma (possível) de uma pessoa. (Poderia ser 70 ou mesmo 75 anos.) A reforma é vista como o período em que uma pessoa cessa a sua actividade laboral remunerada. Por este motivo, e devido à existência de cerca de 17 por cento de reformados que são votantes, existem descontos em vários tipos de transporte, entradas em museus, férias, remunerações especiais em certos tipos de contas bancárias, etc.
Como o Estado -- bem ou mal -- tem tutelado o mercado da habitação, o Governo determinou no presente projecto de lei que não poderia abandonar essa tutela, pois a liberalização total das rendas acarretaria uma forte probabilidade de criar condições para derrube do próprio Governo. Esta mesma mensagem foi, aliás, transmitida aos representantes dos senhorios que, embora pretendessem uma maior desregulamentação, compreenderam o cenário.
Embora tenha colocado as pessoas com mais de 65 anos num lugar à parte, o Governo não as considerou cegamente. Dividiu-as em dois grupos, consoante os seus rendimentos. Isto significa que o grupo com maiores rendimentos verá as suas rendas aumentadas substancialmente, embora não liberalizadas.
A habitação é referida na Constituição Portuguesa -- bem ou mal -- como um direito. Os automóveis não são nela expressamente referidos, nem os iates, os produtos alimentares, nem tão pouco as viagens. A habitação representa, de facto, algo particular. Por isso, o direito de propriedade dos senhorios é -- tem sido -- condicionado de várias formas. É óbvio que a situação das rendas é difícil de gerir e terá sempre duas perspectivas: a dos proprietários e a dos inquilinos. O caso apresentado -- um inquilino de 78 anos e outro de 60 a pagarem rendas bem distintas por um bem semelhante -- seria ainda mais chocante se as suas idades fossem respectivamente de 65 e de 63. Contudo, "a prazo estaremos todos mortos", como Keynes gostava de lembrar. O inquilino de 78 anos, que não continuará a pagar 25 contos mensais mas talvez 80 ou 90 se tiver rendimento superior a cinco salários mínimos, não terá decerto muitos anos de vida. A sua casa ficará devoluta e passará a ser regida pelas leis do mercado. O inquilino de 60 anos está possivelmente activo no seu emprego e vai ter de cortar nalgumas das suas despesas ou recorrer a economias que entretanto se espera tenha feito. Pessoalmente, discordo da liberalização total da renda e advogo a existência de um tecto (baseado num múltiplo da renda actual).
Infeliz ou felizmente, um dos grandes problemas de quem governa -- seja uma empresa, uma instituição, uma autarquia ou um país -- é a sua impossibilidade de fazer tabula rasa do que encontrou. Existe toda uma realidade que vem de trás, recheada por vezes de marcos culturais com os quais não se concorda. É a vida!

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