A conhecida reflexão de Dante "Gosto tanto de duvidar como de saber" demonstra uma saudável vitalidade e uma apetência pelo que, não sendo certo, é mesmo assim gostosamente aceite. A era da incerteza, como Galbraith lhe chamou, é um tempo de mudanças substanciais, que retiram o tapete da estabilidade às instituições e, consequentemente, às pessoas que nelas laboram e delas dependem. Os exemplos destas mudanças são às centenas. Vejamos apenas dois.
Imagine que você se estabeleceu há uns 25 anos com uma loja de fotografias e artigos afins. Prosperou. Ultimamente, porém, já começa a duvidar do seu negócio. Os rolos que os seus clientes lhe traziam para revelação e cópias são em número cada vez mais reduzido. Paradoxalmente, os seus clientes tiram agora muitas fotografias mais do que no passado. O problema é que as máquinas digitais, entretanto introduzidas no mercado a preços acessíveis, juntamente com os telemóveis com câmara incorporada, fizeram a diferença. Muitos dos seus anteriores clientes guardam agora as suas pastas de fotografias não nos álbuns que você mantém em stock mas sim em computadores. Intercambiam-nas frequentemente com familiares e amigos. Entretanto, o que é que passa pelo seu estabelecimento comercial? Nada, ou apenas algo residual. Valerá a pena apetrechar-se com todo o novo equipamento que as modernas tecnologias requerem? Haverá mercado para isso? Você tem capital disponível? A incerteza instala-se.
Um outro exemplo na mesma linha aborda a questão da entidade conhecida por Correios. É inquestionável que hoje se comunica mais do que antigamente. Contudo, a carta, o postal e o telegrama têm um peso proporcionalmente muito inferior ao de outros tempos. Porquê? Um número já muito significativo de pessoas comunica por mensagens de telemóvel e por correio electrónico. Se formos a um posto dos Correios em Lisboa, deparamos maioritariamente com pessoas de idade, pouco letradas, que ali vão efectuar -- com apoio dos solícitos funcionários -- os seus pagamentos de facturas de serviços tais como a electricidade, o gás, a água e os telefones, porque não se sentem capazes de o fazer sozinhas através do Multibanco, que é, afinal, um autobanco. Entretanto, os Correios tentaram adaptar-se. Hoje vendem vários produtos, de livros a T-shirts e serviços financeiros populares. Compreensivelmente, o número de funcionários dos Correios, que dantes se cifrava em mais de três dezenas de milhar pelo país inteiro, terá diminuído hoje para pouco mais de metade.
Mas as coisas não foram mais ou menos sempre assim? Vejamos exemplos mais antigos. Quando os muçulmanos eram donos desta cidade de Lisboa, os corpos das pessoas que morriam eram expostos no alto das muralhas do castelo, onde eram abutricamente devorados por corvos. Devido a esse facto, abundavam os corvos pela cidade. O negócio corria-lhes bem. Tinham-se tornado parte do quadro permanente dos funcionários públicos da autarquia. Com o advento dos cristãos e consequente enterramento dos corpos, os corvos viram o seu número reduzir, passaram a um quadro temporário que se extinguia com a sua morte e entraram em crise. Alguns emigraram, enquanto os remanescentes encontraram emprego no sector privado, dando caça aos ratos que infestavam casas e ruas pouco sujeitas a lavagens. Porque um mal nunca vem só, com as viagens de exploração marítima dos portugueses iniciou-se a importação de gatos do Médio Oriente. Hoje em dia não há corvos na cidade, a não ser no brasão de armas de S. Vicente, o santo padroeiro. Este episódio é geralmente conhecido por "crise corvina" e deixou os pobres corvos de outras paragens de luto carregado para todo o sempre. Mas não deviam, porque alguns que emigraram são tão felizes como os reis necrófagos da Lisboa de antanho.
Uma história mais recente leva-nos ao princípio do século passado, altura em que cavalos, machos, mulas e burros abundavam nas ruas de Lisboa. Esses animais, que contavam então com pleno emprego, viram entretanto aparecer um meio de transporte que, embora de preço muito mais elevado, os substituía: o automóvel. Este terá sido assim designado porque era um transporte que se movia pelos seus próprios meios, sem necessitar de um animal que o puxasse. Juntamente com o eléctrico, que transportava pessoas colectivamente, o automóvel foi gradualmente tornando obsoletos os cavalos citadinos. Estes passaram a incorporar, apenas nominalmente, a força do motor dos automóveis -- medida em número de cavalos --, tal como a potência das lâmpadas tinha recebido a equivalência da força iluminante de um determinado número de velas. A redução do número de cavalos em Lisboa foi festejada pelos citadinos: finalmente desapareciam as imundas bostas com que os animais imodestamente pretendiam fertilizar os pavimentos, juntamente com urina, tudo a atrair moscas e a exalar um nauseabundo odor. Por ironia das coisas, com o evoluir do tempo já passámos a culpar o automóvel por poluir a cidade. Ele, que foi saudado como o transporte limpo por excelência! Tudo muda. De facto.
A profissão dos barbeiros foi, entre muitas outras, poderosamente afectada pela entrada das gilettes e pelo menos tempo disponível das pessoas. Homens deixaram de ir ao barbeiro mais próximo fazer a barba e dar dois dedos de conversa. Hoje os homens vão de facto ao cabeleireiro, mas continuam a chamar-lhe "barbearia" para se distinguirem das mulheres. Entretanto, em vários países da Europa já há mais de meio século que a instituição do Damen- und Herrenfriseur é conhecida. Ela também uma adaptação.
Este arrazoado todo serve para provar -- se é que isto carecia de demonstração -- que as transformações são de todos os tempos e pelos tempos fora hão-de continuar. Erradas estão as pessoas que se amedrontam com tudo o que mexe. Certas estão aquelas que, melhor ou pior, se vão adaptando aos novos tempos. Ficar especado na gare a ver partir o comboio que se pretendia apanhar não é a mais agradável das sensações. A não ser que estejamos a falar de masoquistas!
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