Há uns dez anos, pensei que seria interessante verificar quais eram as fichas que me tinham cabido em sorte na antiga PIDE. Como todo e qualquer cidadão português com mais de 50 anos tem fortes razões para fazer, desloquei-me à Torre do Tombo. Uns meses depois, informaram-me que tinha os documentos à minha disposição para consulta. Tive acesso a 13 fichas, das quais pedi fotocópia. (Existia ainda um boletim com mais informações, mas esse, como me disseram, só por alturas de 2025 estará disponível.) Desta história interessa-me realçar a frase dactilografada numa das fichas por um arguto agente, que indagou a determinada altura junto de pessoas que tinham sido minhas vizinhas sobre a natureza do meu comportamento. Em face das respostas que obteve, escreveu no seu relatório: "Tem bom comportamento mural."
A ortografia da frase, brilhante, levou-me não só a pensar na iliteracia de muitas das pessoas que nos podiam muito bem tramar a vida, mas também na diferença que existe entre "mural" e "moral". De uma penada, o agente tinha informado os seus superiores que eu não costumava escrever nos muros citadinos. Decerto que eles entenderam de maneira diferente, até porque a frase era uma das consideradas de chapa.
Uma simples letra pode, como neste caso, alterar significativamente o significado das coisas. Pode ser interessante praticar este jogo durante uns dois ou três minutos. Aqui vos deixo alguns exemplos.
Já repararam como o "elefante", através de uma simples alteração do "f" pelo "g", fica "elegante"? Já notaram a acentuada diferença que existe entre a masculinidade do "rio" e a feminilidade da "ria"? Já imaginaram um porto como uma porta? Alguma vez associaram o sol ao sal e ao sul? O que é que o raio terá a ver com a raia? Em que medida pode uma escolha constituir um escolho? O que é que o sino tem a ver com a nossa sina? Será que quem paga sisa mostra pouco siso? Será que a morte, que sabemos ser forte, tem bom porte, vem do norte e, a certa altura, nos faz a corte? Porque tenta a tonta tinta levar-nos a escrever mais? Porque é que os putos são bem-vindos na escola e as putas não? Porque é que um jogador cheio de gula faz gala em marcar um golo para depois cantar de galo?
O jogo é infindo. Quem continua um pouco mais?
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