9/15/2005

Uma questão de contexto - II

Com a resposta do próprio Bernardo Soares à pergunta, fica esclarecida de vez a autoria do pensamento pouco nacionalista referido no texto. E, como é evidente, a frase que antecedia esta tirada é "Minha pátria é a língua portuguesa." Tudo isto e muito mais publicado no nº 3 de Descobrimento. Revista de Cultura, em 1931 e incluído posteriormente no Livro do Desassossego. O curioso é que só o nacionalismo da frase que inclui a língua é exaltado e tem sido levado ao paroxismo e o restante que imediatamente se lhe segue não é sequer mencionado. São curiosas, aliás, as citações mais frequentes da obra de Fernando Pessoa, personagem original, da qual Bernardo Soares é apenas uma das Pessoas (razão tem Saramago quando chama ao notável escritor português Fernando Pessoas). Da produção literária pessoana se poderá dizer o que jocosamente é referido a propósito de uma das mais famosas tragédias de Shakespeare: "Hamlet é uma boa peça, com o senão de conter demasiadas citações." Das citações de F.P. que a cada passo encontramos, destacam-se, por serem sobejamente conhecidas, "Deus quer, o homem sonha, a obra nasce", "Tudo vale a pena se a alma não é pequena", "Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal", "O poeta é um fingidor...", "Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor", "Todas as cartas de amor são ridículas"; "Navegar é preciso" e "Minha pátria é a língua portuguesa".
Quando Pessoa diz que a sua pátria é a língua portuguesa, ele está a reduzir-se imensamente, já que o seu domínio do inglês -- em grande parte derivado da sua permanência e dos seus estudos na África do Sul, prosseguidos com múltiplas leituras -- era suficiente para que escrevesse e publicasse mais do que um título em língua inglesa. Fluente era igualmente no francês. Mas "minha pátria é a língua portuguesa" é frase dita muito sentidamente por Pessoa. Lembra-nos que, afinal, era a língua que mais amava, onde melhor exprimia o seu mundo. Tudo muito próximo da tirada de Wittgenstein: "As fronteiras da minha língua significam as fronteiras do meu mundo." (Die Grenzen meiner Sprache bedeuten die Grenzen meiner Welt.)
Como se notará, as citações pessoanas mais conhecidas, acima mencionadas, são nomeadamente aquelas que levantam o ego nacional. É assim, através da manipulação -- lembrança de uns passos, esquecimento de outros -- que se criam mitos. Falha-se a verdade, mas, como irónica e certeiramente o próprio Pessoa dizia, "As massas odeiam a verdade, conduzem-se por mentiras. Quem quiser conduzi-las, terá que mentir-lhes delirantemente, e fá-lo-á com tanto mais êxito quanto mais mentir e se compenetrar da verdade da mentira que criou."
E há tantas coisas assim. Bastará recordar o que disseram vários poetas ingleses, como Robert Southey e Lord Byron, sobre a portuguesíssima Sintra -- o "glorious Eden" tantas vezes citado --, a que no entanto foi acrescentado pelos seus cantores britânicos um enorme desgosto por terra assim tão bela ser pertença dos portugueses, povo que não a merecia. Esta última parte é censurada, evidentemente, tal como a tirada anti-patriótica do Pessoa.
É assim que temos inicialmente um texto e, depois, todo o contexto que fica fora do texto.

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