Há dias passei os olhos pelo www.caffeeuropa.it . Estava quase a abandoná-lo quando deparei com um artigo em italiano, de nove páginas, intitulado: "Lisboa 1755: uma lição para reconstruir Nova Orleães." Para minha surpresa, o autor, Siegmund Ginzberg, estabelecia um paralelo entre 1755 e a recente catástrofe causada pelo furacão Katrina. Permito-me fazer um resumo da essência do artigo.
Segundo o autor, Lisboa, com o seu porto e suas fabulosas riquezas, desempenhava então um papel relevante no comércio entre o Mediterrâneo (e o Brasil) e a Inglaterra. Era para Portugal o que Nova Orleães, com o seu imenso porto de 200 quilómetros ao longo das margens do Mississipi, representa hoje para a economia americana. Em pleno século das luzes, a questão principal que se levantou aquando do cataclismo de Lisboa girou à volta da "justificação da vontade de Deus". Escreveram-se numerosos artigos e livros sobre o assunto, tendo pensadores tão conhecidos como Voltaire, Rousseau e Kant dado as suas opiniões sobre o terramoto. A "ira de Deus" foi tema forte, desenvolvido em Portugal especialmente pelo jesuíta italiano Malagrida. Notável orador, este jesuíta defendeu que as verdadeiras causas da destruição de casas, palácios, igrejas e conventos tinham sido os "abomináveis pecados" da cidade. A sua argumentação continha um óbvio ponto fraco: se Lisboa possuía tantos lugares religiosos e tantos homens e mulheres da Igreja, porque a teria Deus exactamente escolhido para fazer desabar a sua ira?
Pela Europa fora, esta argumentação cedo deu lugar a uma outra: o terrível desastre tinha sido apenas o prenúncio de outras catástrofes bem mais graves. "Quando calhará a nossa vez?", perguntavam, inquietos, os habitantes de cidades como Paris e Londres. Numa onda diferente expressaram-se outros, quiçá mais progressistas. Por exemplo, Rondet, um jansenista francês, escreveu uma obra de 700 páginas -- Réflexions sur le Désastre de Lisbonne -- com a finalidade de demonstrar que Deus tinha escolhido Lisboa para avisar toda a Europa que deveria abandonar a Inquisição e o extremismo religioso. Um exilado português convertido ao protestantismo, Cavaleiro de Oliveira, produziu vários escritos para denunciar a "diabólica, infernal e ridícula" adoração de imagens e relíquias de santos, o "odioso tribunal" da Inquisição e o tratamento particularmente brutal dado aos judeus no nosso país. Dirigiu mesmo cartas ao rei, pedindo o afastamento dos jesuítas. Em vão. Orelhas moucas foi o que o rei e a população fizeram. As relíquias de santos aumentaram, enquanto os milagres se multiplicaram, tal como as procissões.
O terramoto atingiu principalmente a parte baixa da cidade. Tal como em Nova Orleães, era lá que vivia grande parte da população pobre, embora naturalmente não junto aos edifícios do palácio da Ribeira. Como era o dia 1 de Novembro, as igrejas estavam cheias de fiéis. Tanto o maremoto que se seguiu aos abalos como também os incêndios que deflagraram, ajudados pelo vento forte que então se fazia sentir, causaram entre 10000 e 15000 mortos. Os pobres foram as principais vítimas. E os doentes. Quatrocentos pessoas hospitalizadas morreram carbonizadas no Hospital Real. A mais numerosa das comunidades estrangeiras, a britânica, teve 77 mortos. Entre os nobres e pessoas da alta houve cerca de vinte vítimas. Estes são números relativamente reduzidos. Os ricos viviam nas partes mais altas da cidade, tal como em Nova Orleães. A família real apressou-se a construir o seu palácio no alto da Ajuda. Cedo voltaram a existir em Lisboa festas palacianas, o que, aliás, mereceu palavras de censura por parte da Igreja. Em Nova Orleães, as notícias dizem-nos que várias piscinas das casas dos mais ricos voltaram a estar cheias.
Se todas as grandes catástrofes têm um personagem principal, no caso de Lisboa esse personagem foi o Marquês de Pombal. Tão importante foi na reconstrução da "baixa" que ainda hoje nos referimos ao seu estilo como "pombalino". Quando o rei, pouco experiente, perguntou ao Marquês o que deviam fazer perante aquela calamidade, o Marquês terá respondido: "Enterrar os mortos, cuidar dos vivos". Enquanto a Europa, atónita, discutia como interpretar a cólera divina, o Marquês chamou a si a situação. Foi rápido e decidido. A fim de evitar que alguma epidemia alastrasse, menos de 24 horas depois do terramoto propôs ao patriarca que se recolhessem todos os cadáveres em embarcações. Os corpos seriam lançados às águas no mar, depois de passada a barra do Tejo. Tudo foi feito com discrição. Sem hesitar, ordenou a requisição de todos os cereais dos arredores da cidade e mesmo dos navios ancorados no porto. Impôs controlo severíssimo sobre os presos. Mandou prestar a melhor atenção aos cuidados hospitalares. Assegurou a ordem pública. Em 4 de Novembro, 72 horas após o tremor de terra, já tinha obtido autorização para proceder à execução sumária de quem fosse apanhado a saquear casas ou a roubar. Fez erigir forcas em vários bairros da cidade. Garantiu a continuidade das transacções comerciais e financeiras. Fez com que as tipografias voltassem imediatamente a funcionar (precisava delas para os editais). A Gazeta de Lisboa, semanal, saiu pontualmente no dia 5 de Novembro, sem que tivesse tido interrupção de um só número.
Em suma, fez num número reduzido de horas, e com os meios de que dispunha no século XVIII, aquilo que em Nova Orleães, no século XXI, levou uma semana.
O artigo termina com a inevitável comparação com Bush. Como não quero bater mais no ceguinho do Bush, fico-me por aqui, mas registo este ponto de vista estrangeiro sobre a acção de um português.
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