7/30/2005

Lotarias ou lutarias?

Será difícil obter uma forma que revele de maneira mais nítida a mentalidade portuguesa do que a recente capa de um diário nacional. Vinte e duas personagens mediáticas foram inquiridas sobre a sua reacção a um eventual ganho de mais de 113 milhões de euros no concurso Euromilhões. Os portugueses são de há muito vistos como um povo que procura obter o máximo, trabalhando o mínimo. É neste sentido que a referida capa acerta na mouche. Nenhuma das personalidades convidadas a dar a sua opinião se esquivou a dar o seu alvitre relativamente ao uso que daria a tanto dinheiro caído assim do céu. Dinheiro obtido sem que o contemplado tenha tido praticamente que mexer uma palha.
Dizem as estatísticas que os portugueses, apesar de serem apenas cerca de 10 milhões, apostam mais do que qualquer um dos outros oito países do Euromilhões. Desde Outubro de 2004, os nossos compatriotas já terão colocado apostas no valor de 626 milhões de euros. Este número não pode deixar de ser considerado extraordinário se for comparado com o de países como a França (573 milhões), a Espanha (530) e o Reino Unido (160 milhões). A Suiça não apostou mais do que 105 milhões, a Áustria 85 e a Irlanda 25 milhões. São números que dão que pensar. A cultura, a religião e a desigualdade social produzem estes resultados. Eis um bom tema para os sociólogos.
Sortes deste tipo são o sonho de muitos portugueses: ter a benesse dos deuses para não ter que se preocupar com o trabalho. A prová-lo está o número de vezes que o tema "reforma" é abordado entre trabalhadores, nomeadamente os mais citadinos. O diálogo contém quase invariavelmente esta linha: "A mim ainda faltam X anos! Tomara que a reforma viesse já amanhã!" A reforma é vista por inúmeros portugueses como o paraíso. Entretanto, todo o longo período que foi ou é preciso percorrer até alcançar esse visionado paraíso surge como o purgatório. Não admirará, portanto, que tão pouca gente se sinta realmente motivada para o trabalho. Não surpreenderá, igualmente, que a produtividade seja tão baixa.
Esta é uma doença seriíssima da sociedade portuguesa. Infelizmente, tem vindo a agravar-se. A conversa sobre os "nossos" direitos prevalece, vezes sem conta, sobre o tema dos deveres. É como que para compensar os longos tempos em que outros intervenientes da sociedade tiveram maioritariamente deveres e usufruíram de bem poucos direitos.
Não é nada fácil sairmos do buraco em que a sociedade se encontra. Sabemos, no entanto, que o exemplo tem de vir de cima -- da camada social que ocupa lugares de relevo, por riqueza, por poder político e por poder intelectual. Sem esse exemplo, muito pouco se poderá fazer. Ora, essa é a agravante desta doença: os potenciais intervenientes da mudança não mostram qualquer intenção de o fazer.
Temos um país que consegue a triste proeza de ser ainda mais assimétrico na distribuição da riqueza do que o é na forma como a população se distribui entre o litoral e o interior. Os níveis de injustiça social são inadmissíveis numa nação que, desde a sua adesão à CEE há praticamente vinte anos, recebeu, per capita, mais fundos do que qualquer outro dos restantes membros. Ocorre-nos aqui o clássico ditado: "Quem parte, reparte, e não fica com a maior parte, ou é tolo ou não tem arte." Ora, quem recebeu e repartiu teve de facto arte de bem distribuir. Escolheu os do seu clube, aqueles que mais tinham. Fundos europeus, que se esperava chegassem não só para atenuar as diferenças de Portugal em relação à Europa como para esbater os desníveis dentro do próprio país, contribuíram, contrariamente, para aprofundar este desnível nacional e, quanto à aproximação com as restantes nações europeias, para nos distanciarmos em vez de nos avizinharmos. Esta é uma verdade evidente, que os números não deixam negar. Entretanto, símbolos ostensivos de riqueza, como o número de carros de altíssimo preço que são vendidos em Portugal, mostram, se outros indicadores não fossem suficientes, para atestar que, como um conhecido ditado nos ensina, "os rios correm para o mar". Mais dinheiro para quem já o tem, desvirtuando não só a intenção de quem enviou os fundos como deixando também mais desprotegida uma parte significativa da população.
O quarto jackpot de Portugal -- o de Bruxelas, depois do da Índia, do Brasil e o de África -- poderia ter trazido enormes benefícios, mas acabou por levar o país a, mais uma vez, singrar a senda do dinheiro fácil, caído do céu. Cada vez se torna mais difícil endireitar a sombra desta vara torta. Em vez de democracia, temos de certo modo uma plutocracia, constituída pelos diferentes poderes acima indicados -- os mesmos que poderiam e deveriam dar o exemplo de responsabilidade, contenção de custos, fiscalidade mais directa e ajustada. Mas a vida é assim. Como diria um amigo meu, não desanimemos. Lutemos. A esperança não pode morrer.

Sem comentários:

Enviar um comentário