7/24/2005

Reciprocidade

Sucede a todos nós ficarmos na memória com factos que presenciámos na infância ou adolescência, passagens de livros ou cenas de filmes. Recordo-me da cena de uma bela película de René Clair, em que um rapaz de treze ou catorze anos entra numa cervejaria cheia de homens. Vê de súbito o seu boné ser-lhe retirado da cabeça por um engraçado. Num ápice, o boné está a ser lançado pelo ar para uma mesa onde estavam outros homens, perante o desespero do rapaz que corre a tentar apanhar o boné apenas para o ver voltear de mesa em mesa. A rabia faz todos aqueles homens gozarem como perdidos. Sucedem-se as gargalhadas. Até que, num dos volteios, de grupo em grupo e mesa em mesa, o boné escapa à mão de quem o devia agarrar. O boné entorna-lhe a caneca de cerveja, sobre a mesa e sobre si próprio. Aí, o homem que antes rira desbragadamente, manda "alto e pára o baile!" Cessa-lhe a gargalhada, solta-se-lhe a ira.
É óbvio que a cena me ficou gravada pela exploração que os mais fortes frequentemente fazem dos mais fracos. Pela troça que gostam de fazer, mas que não admitem em atitude recíproca.
Todo este arrazoado vem a propósito do ocidente e da China. A Europa, que sempre mandou e explorou os outros -- veja-se a colonização, que durante séculos levou à exploração de matérias-primas e depois à exportação de produtos e de modos culturais impostos aos territórios invadidos -- dá-se mal se agora a invadem com produtos que economicamente a prejudicam. São a mesma Europa e América que não hesitaram na deslocalização de fábricas para o país do rapaz do boné, na venda de maquinaria a bom preço e na invasão cultural por vários meios, que agora reagem. A situação recorda-me Portugal país-de-emigração a dar-se mal como país-de-imigração. Quem nunca se pôs na pele do outro, não sabe o que dói ser invadido e tratado como inferior. Vêm-me à memória, nem sei bem porquê, aquelas pessoas que, sem pensarem duas vezes, tratam indivíduos da sua idade por tu, mas não admitem tratamento recíproco.

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