10/05/2005

As tetas da vaca

A vaca do Estado, de tetas mais úberes do que qualquer outra no país mas também com o maior número de filhos dependentes, pasta no vasto prado dos impostos que outrem que não os impostores semeiam diariamente. O prado viçoso poderia contribuir para que a vaca desse mais leite para a sociedade no seu todo, mas a vista de tetas tão cheias do precioso líquido aguça a cobiça e eis uns tantos que, à socapa, retiram delas o mais que podem.
Foi há relativamente poucos anos que, numa entrevista a dois advogados franceses do foro criminal, li o que um deles, Maxime Delhomme, respondia ao jornalista: "É um mito o advogado que permite ao criminoso escapar. Se isso acontece, é porque o Ministério Público não fez o seu trabalho." Quer dizer: mesmo sabendo que alguém, acusado de um crime, não está inocente, o advogado defende-o e, se o indivíduo for inocentado, a culpa recai toda sobre o Ministério Público, que "não fez o seu trabalho". Há tempos, um outro advogado, neste caso português, afirmava a Maria João Seixas: "Não tenho nenhuma ideologia do crime. É-me igual a defesa de um homicida, de um pedófilo ou de umas ofensas corporais. Não ponho em nenhum destes, ou de outros exemplos, quaisquer calores especiais."
Como cidadão comum, que propugna a defesa do bem na sociedade, causa-me alguma perplexidade ouvir estas opiniões. Eu sei que um advogado (ad + vox) é alguém que empresta a sua voz na defesa de uma causa e, neste sentido, tanto pode defender o algoz como a vítima. Mas há algo de mercenarismo que me repugna nesta possibilidade de defesa, a sério, tanto de um caso como do seu oposto.
A propósito dos privilégios que ao longo dos anos foram sendo alcançados por grupos profissionais como os dos juízes, dos militares e dos professores, Vital Moreira, outro homem de leis, afirma num recente artigo que "a captura do Estado pelos corpos profissionais de elite do sector público é resultado, antes de tudo, da fraqueza daquele." Voltamos à mesma história da culpabilização inicial do Ministério Público, aqui transformada em "Estado", que não terá feito bem o seu trabalho. Ora, quem está neste Estado? Políticos, muitos deles advogados. Logo, para esses advogados -- e para outros igualmente, porque não? -- jogar para um lado ou para outro é sempre possível, apesar do juramento de fidelidade prestado em Belém perante o Presidente da República e as câmaras de televisão.
E é aqui que caio num outro caso, dado à luz também recentemente: o da empresa Eurominas, que, tendo recebido do Estado terrenos a preço simbólico na Península de Setúbal para neles se instalar, a dada altura descontinuou a sua actividade regular. O Estado, correctamente, exigiu que os terrenos lhe fossem devolvidos nos exactos termos em que tinham sido cedidos à empresa. As benfeitorias entretanto realizadas reverteriam a favor do Estado. Ao que os media narram, a situação arrastou-se por vários anos, com a Eurominas a não querer devolver os terrenos de mão beijada e a pedir indemnizações, as quais lhe eram recusadas pelo Estado e pelos tribunais. Eis que, entretanto, advogados que já estiveram ao serviço do Estado mas que agora têm a Eurominas como cliente, conseguem que esta receba -- mais uma vez da úbere mas já mirrante teta da vaquinha estatal -- uma indemnização choruda.
De quem é a culpa? Da falta de ética dos advogados que interferiram no assunto, tal como no propalado caso dos sobreiros que envolveu o CDS no anterior governo, ou da inépcia do Estado em defender os interesses gerais da Nação? Será aqui que entroncam os "homens de confiança", que se são da confiança de uns é porque não são da confiança de todos? Assim, a culpa, se é que existe, tende a deslocar-se de pessoas com rosto para um Estado sem rosto. Ou seja: dilui-se. O passo seguinte é afirmar que "quem tem a culpa é o povo que elege os políticos!" Pronto. Está tudo dito. É como querer acusar Deus de ter criado o mal no mundo, porque, se não tivesse criado o homem, esse mal não existiria.
Entretanto, as tetas da vaca vão ficando mais flácidas e vazias, e o prado, menos verdejante, ressente-se da seca.

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