12/29/2010
Zero por cento
Se eu tivesse que fazer um resumo do ano de 2010 que agora finda, diria que a grande questão foi a de nele se ter vivido antecipadamente 2011, que ainda não começou. Depois de alternadas ondas bipolares de euforia e depressão, entrou-se num negativismo de medo, de forças anónimas que nos querem destruir, de salários que vão baixar, de pensões de reforma que vão descer, de impostos que vão aumentar, de serviços sociais que vão desaparecer ou serão severamente limitados. Estamos a viver dois anos num e, como a tendência é negativa, isso é tudo menos bom. Se a tendência fosse para antegozar uma melhoria, viver dois anos num seria naturalmente bem diferente!
Neste domínio, não posso deixar de considerar como muito interessante e comercialmente um trunfo de mão-cheia aquilo que a cadeia Pingo Doce decidiu prometer: não fazer reflectir sobre os clientes a elevação dos preços que seria natural dada a passagem do IVA de 21 para 23 por cento. Grande marketing! (Quem agora prometer o mesmo que o Pingo Doce já é apenas macaquinho de imitação, não apresenta qualquer novidade.) Através da não-evolução do preço, esta cadeia de supermercados procura obviamente um aumento do volume de vendas que irá compensar, e possivelmente até ultrapassar, o sacrifício monetário que a si mesma impôs.
É gratificante ver como a cadeia Pingo Doce trabalha bem, com gente profissionalmente muito competente. A imagem de marca funciona de forma tão correcta que acabou por destronar uma outra marca da mesma firma que era usada para os estabelecimentos de maiores dimensões: os Feira Nova.
Há anos que o Pingo Doce realiza óptimas campanhas e, o que é mais, sempre positivas. As receitas culinárias na televisão, que anunciam apetitosos pratos confeccionados com produtos que podem ser adquiridos "no sítio do costume", foram um esplêndido começo. Depois, a entrada fortíssima nos bairros citadinos trouxe o supermercado para o pé do residente; o acento q.b. nos produtos nacionais levantou o moral nacionalista nas compras; a venda de uma já considerável gama de produtos brancos com a marca Pingo Doce, sempre mais económicos, pretendeu mostrar que a empresa estava claramente do lado do cliente, posicionamento que culmina na presente campanha. No seu todo, trata-se de uma estratégia concebida e implementada de forma inteligente e bem estruturada. Tem de longe batido a concorrência, nomeadamente a de bairro.
Para um público mais elitista, digamos assim, a empresa criou a Fundação Francisco Manuel dos Santos, que não só fornece estatísticas o mais actualizadas possível sobre os dados do país (Pordata) nos campos da Saúde, Economia, Educação, etc., como também já conduziu à publicação de vários pequenos livros muito interessantes e instrutivos com estudos originais sobre a realidade portuguesa e não só. Estes livros, vendidos no espaço comercial a preços extremamente acessíveis, têm sido apresentados em espaço público pelos respectivos autores, acompanhados de debate moderado por pessoas de renome.
Por tudo isto e possivelmente muito mais que agora não me ocorre, torna-se sociologicamente muito curioso notar que a publicidade positiva confere bons dividendos e, em momentos de crise, é especialmente bem vinda. É certamente uma maneira de aliviar o stress com um pingo doce, numa altura em que o ano de 2011 que aí vem ameaça acarretar consigo pingos bem amargos.
12/28/2010
Autoridade
Recordo-me bem do que sucedeu quando as telenovelas brasileiras entraram em força no nosso país. Não estou a falar apenas daquele caso, poucos anos após o 25 de Abril, em que o Parlamento português interrompeu os seus trabalhos para que os deputados eleitos pela Nação pudessem acompanhar o desenlace de uma telenovela que estava realmente a entusiasmar os espectadores nacionais. Refiro-me a outros aspectos que me parecem, à la longue, bem mais importantes. Nomeadamente aquilo que me chamou a atenção e que várias vezes debati em inglês com alunas de um curso que eu então leccionava, todas elas com 18 anos ou mais, foi a duplicidade do discurso das pessoas.
Para entendermos melhor a questão, devemos recuar até 1974. Até então, e assim sucedia há várias décadas, a autoridade era um factor bem presente na sociedade portuguesa. Não se punha em questão, a não ser em casos excepcionais e nunca com a aprovação geral, a autoridade dos pais, a autoridade dos professores ou a autoridade do bispo. Quando Salazar se referiu ao Ultramar português nos anos 60, uma das suas frases mais marcantes foi "O Ultramar não se discute: cumpre-se." Era o dogma, tão frequente na prática da dominante Igreja Católica, a passar da religião para a política. As reguadas na escola primária eram aceites porque o professor lá sabia o que fazia. E se o pai dava umas boas palmadas no rapaz era porque ele as merecia. Não se admitia pôr em causa a autoridade do pai, a não ser que ele estivesse a agir sob a influência do vinho. Aí a questão mudava de figura e a vizinhança podia intervir, mas no restante a autoridade do pai era inquestionável. Também ela não se discutia. Dogmaticamente, cumpria-se.
A telenovela brasileira contribuiu, e de que maneira!, para mostrar que os ídolos têm pés de barro. O pai que parecia um poço de virtudes mas que, afinal, andava metido numas jogatanas que lhe rendiam bastante dinheiro por fora, o professor que mantinha um ar austero na sala de aula mas depois se juntava muitas vezes à noite com a amante, deixando a pobre da Dona Justina sozinha a fazer bordados para ajuda do orçamento familiar, o padre que se metia com mulheres casadas, tudo isso vinha ao de cima na telenovela "transmitida em horário nobre", isto é, a horas em que ainda podia ser vista por crianças e adolescentes. Via-se a conversa que os pais tinham com os filhos à mesa; posteriormente, no quarto, os pais voltavam a tocar no assunto, mas agora já sob uma perspectiva diferente, mostrando que afinal não tinham sido sinceros e verdadeiros para com os seus rebentos. Tudo isso e muito mais a câmara de filmar revelava. A porta do quarto que, na casa real, permanecia fechada era escancarada na telenovela. As expressões das "autoridades", as suas palavras, os seus gestos, tudo isso vinha com o cunho da genuína e vera verdade testemunhada que o espectador-voyeur bebia, extasiado. Deixava de acreditar naquela autoridade, como era evidente. Porém, era a autoridade no seu todo que ficava minada. Tudo era igualado na dúvida e, porque não dizê-lo, numa certa baixeza de dizer uma coisa em público e outra em privado. O mito quebrava-se. Agora cada um podia pensar pela sua cabeça. Qual respeito, qual carapuça!
As fugas de informação dos serviços secretos, das malas diplomáticas, dos intocáveis embaixadores, tal como reveladas pelos documentos divulgados pelo site Wikileaks, mostram-nos, afinal, algo muito idêntico, embora a uma outra escala. Não se pode acreditar na palavra dos políticos e dos homens de uma maneira geral – "só dantes é que a palavra de honra de uma pessoa tinha valor". Agora é tudo muito igual; talvez alguns se safem, mas são uma minoria. "O jornal disse isso ontem; não acredito que não seja verdade. Está escrito." "Talvez tenhas razão, mas o mais natural é que seja mais um caso de mentira mascarada de verdade. A informação agora não é interessante, mas sim interessada e interesseira. Acreditar neles para quê? Patranhas é o que eles inventam. Vais ver que daqui a uns meses vêm com outra verdade contrária à de hoje!"
E assim temos a dúvida instalada, a incerteza enraizada, a precariedade da verdade a entrar dentro de nós. "É o preço a pagar pela liberdade de pensamento e de expressão." Será?
Mas há uma pergunta que se impõe: aproveita a alguém este estado de coisas? A resposta parece-me óbvia. As situações, por muito estranhas que se mostrem, oferecem sempre a possibilidade de um lado negativo e outro positivo, o que não quer dizer que cada um dos lados tenha a mesma dimensão. No caso presente, este vazio de autoridade aproveita muito aos mais fortes. Quem é mais forte adora que não haja verdades categóricas. Se alguém disser, por exemplo, que a colocação de dinheiros privados em centros offshore representa uma falta de ética, qual é a autoridade – possivelmente ela também de certa forma comprometida com os ditos centros – que se atreve a ser peremptória na sua afirmação? Quem é o dono da verdade?, alguém perguntará.
Assim, os mais poderosos, impantes pela ausência de controle, continuarão a agir como até agora, isto é, a pagar os mínimos no seu país e a ficar isentos da sua contribuição para o bem-estar social: fazem tudo redundar em benefício do seu bem-estar pessoal. Este é um exemplo entre muitos. A liberalização ou, como os neoliberais preferem, a não-regulação, leva a extremos desta ordem. De facto, a alguém aproveita a situação. Daí que as diferenças entre ricos e pobres tendam cada vez mais a aumentar e não a diminuir. Daí as tensões sociais que se registam. Por outro lado, tornou-se penoso para a maioria das pessoas defender a necessidade de existência de autoridade. É que a conciliação entre liberdade e autoridade é tão difícil como a que existe entre liberdade e segurança. Onde é que se coloca a linha divisória que não se pode nem deve ultrapassar?
12/26/2010
Mandamentos
Após uma quadra essencialmente religiosa como é a do Natal, a que se junta a humana comunidade das famílias, pareceu-me interessante esta brevíssima reflexão:
Os Mandamentos da Lei de Deus são essencialmente um código de regras destinado a servir de guião espiritual para a conduta do homem. No mundo católico ocidental onde eles vigoram, os mandamentos, produto de cabeças pensantes que mostraram conhecer razoavelmente bem a natureza humana, são tratados como referência para a perfeição - sendo esta de antemão considerada inatingível, a não ser por alguns seres humanos altamente privilegiados e excepcionais, a quem a Igreja posteriormente designará como "santos".
Este decálogo de referência é notável sob muitos aspectos. Platónico na sua essência - mostrando o ideal, de que apenas nos aproximaremos ou afastaremos consoante os nossos actos e pensamentos - ele pode tornar-se num livro de contabilidade terrestre, com o nosso activo e passivo, com todo o deve e o haver. A grandeza do saldo é a indicação final da nossa conduta. Desse balanço resultará a decisão do Grande Juiz, que considerará o homem dentro do campo da excelência (céu), dentro da órbita do défice (inferno) ou num meio-termo sem contornos nítidos (purgatório).
Os Mandamentos valem muito como tratado de psicologia humana. Embora nunca se refiram ao homem como ser isolado - pelo menos Deus estará sempre presente - debruçam-se tanto sobre o pensamento e o sentir, que são porventura mais individuais, como sobre os actos, que afectam mais a sociedade. Entre um "amarás a Deus acima de todas as coisas" e um "não matarás" ou "não cometerás adultério" vai uma distância considerável; os dois últimos incidem claramente sobre o comportamento eventualmente pecaminoso do homem na sociedade.
Sob este aspecto, os Mandamentos podem proporcionar um óptimo ponto de partida para reflexões sobre a natureza humana. Quiçá a determinação mais difícil de atingir é a do "amarás o próximo como a ti mesmo". De facto, o homem, como ser, precisa de uma identificação. Não é apenas um nome diferente que o torna mais diverso dos seus semelhantes, ou ainda um bilhete de identidade. O homem aprende a conhecer-se em confronto com os outros que o rodeiam.
12/18/2010
Cinco URLs
Possivelmente alguns dos temas abaixo, a clicar, são já conhecidos de alguns, mas isso é algo que quase sempre sucede, portanto...
UMA BOA QUADRA NATALÍCIA!
Baptista Bastos (artigo sobre o Estado da Nação e o capitalismo)
Marcelo (alta comédia!)
ópera (canto no shopping)
Catedral (Catedral de Estrasburgo em 3D)
Xangai (filme presentemente a ser exibido no Pavilhão Português, a ver até ao fim)
12/12/2010
De Jacob a Diogo
"As palavras são como cómodas. Têm imensas gavetas e gavetões para abrir". Alexandre O’Neill tinha toda a razão ao reflectir desta maneira. Todos nós sabemos que as palavras têm vida própria, mudam de significado - às vezes até para o seu oposto - e apresentam uma evolução onde cabem as tais gavetas e os tais gavetões. Com nomes próprios podem igualmente suceder coisas estranhas.
Ainda hoje me lembro do dia, já há muitos anos, em que fiquei intrigado ao ouvir falar de Jacobeu a propósito das peregrinações a Santiago de Compostela. Porquê Jacobeu? Logo me explicaram: "É declarado Ano Jacobeu todo aquele em que o dia 25 de Julho, dia da Festa do Santo, coincide com um domingo." Aquilo que eu pretendia, porém, era saber por que razão se dizia Jacobeu. "Diz-se Jacobeu por causa de Santiago". Repita lá isso!?! Onde é que está a ligação entre a palavra Santiago e o termo Jacobeu? Só um milagre é que poderia fazer com que, etimologicamente, Jacobeu tenha alguma coisa a ver com Santiago.
Todavia, talvez eu estivesse enganado. Milagres desta ordem se calhar existem mesmo. Os nomes Tiago e Jaime derivam indirectamente do latim Iacobus. Este é, por sua vez, a latinização do nome hebraico Jacob. Ora, como Jacob é um personagem bíblico (foi o terceiro e último patriarca do povo judeu), o seu nome foi adoptado em vários países do Ocidente. De maneira uniforme? Nem pensar! Se nos lembrarmos que o canto do galo é ouvido como cócorocó em Portugal, côcoricô em França e cock-a-doodle-do em Inglaterra, passaremos a admirar-nos menos da estranha evolução do nome Jacob.
Os alemães mantiveram-se fiéis e conservaram Jakob, mas os ingleses tranformaram Jacob em James, enquanto os franceses enveredaram por uma via diferente e lhe chamaram Jacques. Na Península Ibérica as divergências não foram menores. Na zona da Catalunha, portanto na parte leste da Península, Jacob evoluiu para Jácome, Jaume e Jaime; em Castela, na Galiza e em Portugal, o nome evoluiu para Iago.
A figura santificada que hoje é denominada Santiago, em Compostela, na Galiza, provém de Iago. Esta é, portanto, uma forma abreviada de Jacob. O problema para nós, portugueses, é que mantivemos a forma Jacob, a qual pronunciamos Jacó (pelo menos antigamente, chamava-se popularmente Jacó aos papagaios, pelo seu nariz adunco à maneira dos judeus).
Se disséssemos Jácobe, tal como dizemos Jácome, já compreenderíamos melhor o Iago. Aliás, para o leitor de Shakespeare, Iago é um nome saliente e altamente vilão na peça Otelo, logo torna-se de certa maneira familiar. Mas o que sucede quando um homem chega à Galiza como Iago e o intitulam de Santo? Passa a Santo Iago, primeiro, e depois a Santiago, mais ou menos do mesmo modo que São Pelayo passou a Sampaio.
Já santificado, o nome Santiago passou da santidade para nome comum e dele despegou o –t- de Santo. Ficámos com Tiago em vez de Iago. Além disso, ficámos também com o nome Santiago. Entretanto, o Iago desapareceu destas bandas.
Já como nome independente, Tiago cedo criou o derivativo Diego, que se entende perfeitamente à luz da linguística (o –t- passa a –d- muito frequentemente, como em matéria>madeira, e a passagem da pronúncia –á- a –é- constitui uma evolução natural - os ardinas que apregoavam o Diário Popular, por exemplo, costumavam dizer Diério no seu pregão. O Diego foi ouvido como Diogo em português e assim se manteve até aos dias de hoje. Ficámos assim com Tiago e Diogo. A cidade de San Diego, na antiga Alta Califórnia do México e hoje nos Estados Unidos, e a capital do Chile, Santiago, mostram a importância do santo.
Em França, já vimos que a evolução redundou em Jacques. Assim, por exemplo as nossas deliciosas "vieirinhas" (a vieira é um dos símbolos de São Tiago quando arribou à Galiza), são em francês coquilles de Saint Jacques e em inglês Saint Jacques’ shells (os ingleses copiaram muita coisa da comida francesa, que era bem melhor do que a sua). Contudo, mesmo os franceses mantiveram o original Jacob, a par do Jacques muitíssimo mais comum. Daqui resultou por exemplo o Club des Jacobins, donde vieram os famosos jacobinos no tempo da Revolução Francesa. Algo confuso, não é?
Entramos em Inglaterra e as dúvidas avolumam-se. Então não existe o nome Tiago? É verdade há o Iago, mas este de transformado em tão grande vilão pelo velho Bill Shakespeare, não alcançou grande popularidade, o que é compreensível. Como se traduzem então para inglês os nomes Tiago e Diogo? James. Como??! Eu já sabia que o actual Thames (Tamisa) de Londres tinha em tempos muito remotos tido o mesmo nome do nosso romano e transmontano rio Tâmega, mas ver-me forçado a comparar esta passagem de Tâmega a Thames para explicar, de forma imperfeita, o Jacob para James, parece-me uma tarefa difícil. Difícil, ou não, é oficial. E a verdade é que há o exemplo catalão.
Por aqui me fico. Só um santo autêntico pode fazer milagres linguísticos deste estilo.
P.S. Entretanto, para aumentar um pouco a confusão, acrescente-se que Jacob, último patriarca dos judeus, viu mais tarde o seu nome transformado em... Israel! Na realidade, não sei de outro nome que tenha conhecido tantas aventuras e alterações como este. Um case study típico.
12/08/2010
Post número 1000
Depois desta magia toda, como que a ignoramos quando nos pomos a fazer contas pelos dedos das mãos, como fizemos quando éramos miúdos e como os miúdos de hoje ainda fazem. E é aí que, esvanecendo-se embora alguma magia, surge o sistema decimal, baseado na soma dos dedos das mãos. É prático. A brincar, a brincar, é um sistema que condiciona bastante o nosso conceito de numerologia. No casamento, comemoramos os 25 anos e, se lá chegarmos, os 50 ou mesmo os 75, celebramos os 100 anos da República, os 800 anos da Pátria.
Ia eu hoje a colocar um novo post neste blogue quando notei que a contagem feita automaticamente pelo computador me anunciava que o próximo seria o meu texto número mil. Não é nada de especial, como é óbvio; significa em primeiro lugar que já chateei um número considerável de pessoas com muita parra e pouca uva, embora eu tentasse o contrário. Como sucederá a toda a gente, os textos são-me ditados pela necessidade de desembaraço de uma ideia que me está a atafulhar o cérebro e a acastelar-se como nuvem cinzenta que precisa urgentemente de deitar chuva cá para baixo. Uma vez desembaraçada a cabeça, sinto-me mais liberto. Aos poucos, porém, lá se vai formando uma outra enxurrada de ideias desencontradas que precisam de alguma concatenação e, nomeadamente, ordem. Nesse aspecto, o blogue tem sido para mim uma óptima ferramenta.
Quando começou, este blogue era bem mais concorrido. As letras de A a Z não diziam apenas respeito à variedade de temas, mas também às diferentes mentalidades das pessoas que aqui colocavam as suas ideias. Circunstâncias várias, diferentes para cada um dos amigos que iniciaram este blogue, fizeram com que o seu número efectivo se reduzisse muito. O João Miguel (o João Ratão) mantém as suas brilhantes Sugestões, a Isabel (Ariadne) colabora com alguma assiduidade tanto nos posts como nos comentários, mas creio que os restantes, que continuam amigos, se transformaram em meros leitores. Quero aproveitar este meu post número 1000 para os incitar a regressar à situação de colaboradores efectivos. O AZ ganharia imenso com o seu regresso.
12/06/2010
Quem adivinha?
O nosso passado está cheio de beleza, de rasgos, mas tem-nos faltado, sobretudo no último século, um esforço menos brilhante mas mais tenaz, menos espectaculoso e com maior perspectiva (...). É essa a razão por que nós somos um povo eternamente saudoso, longe das realidades por termos, em certos momentos, vivido demasiado uma realidade heróica mas falsa.
Eis o segundo passo, em que o mesmo autor tira mais umas tantas ilacções sobre o povo português:
Excessivamente sentimental, com horror à disciplina, individualista sem dar por isso, falho de espírito de continuidade e de tenacidade na acção. A própria facilidade de compreensão, diminuindo-lhe a necessidade de esforço, leva-o a estudar todos os assuntos pela rama, a confiar demasiado na espontaneidade e brilho da sua inteligência.
Já agora, um pequeno teste e uma opinião: de quem são estes dois parágrafos? Embora escritos no passado, serão ainda relativamente válidos no presente?
12/02/2010
SAIAS
Devido a uma conversa muito recente, quando hoje de manhã tive que ir à Baixa aqui em Lisboa procurei descobrir qual seria aproximadamente a percentagem das mulheres que usavam saias. Viajei de metro, como habitualmente. Conforme seria previsível, cruzei-me com centenas de pessoas, tanto homens como mulheres. Os adolescentes que encontrei é que foram relativamente poucos, porque estariam nas suas escolas em aulas. Posso dizer que olhei com atenção. Querem crer que não encontrei uma única mulher de saias?! Entretanto, não me admirarei de todo se daqui a pouco voltar à rua e encontrar cinco ou seis – como frequentemente sucede quando procuramos impacientemente um lugar nas ruas para estacionar o carro e, depois de finalmente encontrarmos um, bem longe de casa, perto da nossa porta deparamos com um lugar vazio. Mas não misturemos os assuntos. As saias estarão mesmo fora de moda?
Admito que é perfeitamente racional que as mulheres usem calças nesta altura. Dado que a temperatura está baixa, as saias são com certeza menos quentes. Mas, caramba, costumávamos ver collants e coisas do género. Agora, não. Mesmo sexagenárias e heptagenárias não hesitam em usar calças de fazenda, sobre as quais cai um casaco comprido que poderá dar a ideia de roda de saia. Seja como for, é uma revolução silenciosa. E assim, com uma percentagem elevadíssima – como digo, o que eu vi foi cem por cento! – é de ficar estupefacto.
Não me esqueço da vez em que, pelos meados dos anos sessenta, entrei com uma amiga num café em Castelo de Vide. Hoje parecerá quase impossível de acreditar, mas os homens que eram os únicos ocupantes do café puseram-se a olhar: ela ia de calças. Aliás, nas ruas da vila as mulheres olhavam para ela da mesma forma. Não há dúvida de que a sociedade mudou mesmo muito! Então, e agora que fazer ao "lagarto pintado da saia da Carolina"? E aos rabos de saia? E, mais prosaicamente, aos cabides para saias?
Isto é conversa mole. Mulheres de saias voltarão a aparecer logo que regressem os raios de um sol mais quentinho. E reaparecerão igualmente os calções. Mas, seja como for, ir para a rua e não deparar nem com uma saia foi para mim algo verdadeiramente inédito.
11/29/2010
Wikileaks
"Estamos na era do conhecimento" é uma frase mais do que habitual dos grandes poderes. Porém, quando se trata de "conhecimento" deste tipo, ele é rejeitado como conhecimento a mais. Overdose. Defendem as nações mais poderosas que informações deste tipo podem fazer com que determinadas pessoas morram. Hipocrisia tremenda! Quantas não foram já mortas, inocentemente muitas vezes, através de planos sujos, urdidos desta forma ou outra semelhante? O que não gostam é de se verem sem máscara. O sorriso com que a reunião X terminou e aquele aperto-de-mão de 30 segundos para que todas as câmaras fotográficas e de filmar o apanhem, são substituídos posteriormente pelo relatório diplomático que, sendo expressão mais autêntica e menos hipócrita daquilo que os intervenientes efectivamente pensam, desdiz muito daquilo que os citados aperto-de-mão e o sorriso aparentam.
O tempo – os tais cinquenta anos – fazem com que muito seja escondido e passe a ser basicamente matéria de estudo de historiadores. Aqui, o tempo é o real e a verdade sobe à superfície. Democracia? Transparência? Quem mais usa estas palavras é quem mais precisa de atrás delas se ocultar.
Assange, o fundador da Wikileaks, é um homem a abater. É essencial que estas fugas acabem. "Em nome da liberdade e do sadio relacionamento entre as nações deste nosso mundo globalizado", dirão por correio transportado em mala diplomática os Estados Unidos, a Arábia Saudita, a China e tutti quanti. Quem duvida?
11/24/2010
Breves considerandos sobre a greve
Pessoalmente, defendo dois conceitos básicos: a liberdade e a responsabilidade individuais. Que não existe responsabilidade sem liberdade parece-me evidente: a alguém que é coagido a praticar determinado acto sob pena de tortura ou mesmo de morte não pode ser assacada a mesma responsabilidade que a outrem que pratique esse mesmo acto de livre vontade.
Os sindicatos são organizações de defesa dos interesses dos trabalhadores e justificam-se amplamente pela força que representam. A união faz a força, como todos sabemos, enquanto que a falta de união implica fraqueza a todos os níveis. Por esta razão, dividir para reinar é uma clássica estratégia da classe com poder, que assim melhor domina as massas em núcleos de importância muito mais reduzida do que em grandes grupos.
Os sindicatos vivem da livre associação dos seus membros, que pagarão as devidas cotas. Os fundos dos sindicatos deverão cobrir as eventuais despesas incorridas pelos seus associados. Assim, se um trabalhador sindicalizado perde o salário correspondente a um dia de trabalho, esse dinheiro deverá naturalmente ser coberto pelo sindicato. Isto é verdade tanto para o sector público como para o sector privado. Quando a greve é organizada pelos sindicatos, deverá ser este o modus operandi. Quando a greve é selvagem, a responsabilidade é totalmente dos grevistas.
Os sindicatos estão frequentemente contra as entidades patronais, sejam elas o Estado ou as administrações de empresas privadas, pela anotação dos nomes dos grevistas. Os restantes, se os houver, são depreciativamente apodados de fura-greves. Ora, são exactamente os grevistas que organizam piquetes à entrada de determinados edifícios de trabalhadores. Com que finalidade? É evidente que o seu objectivo é o de dissuadir os eventuais funcionários ou empregados de irem ocupar o seu local de trabalho. Se alguém resistir e forçar a entrada, entrará no núcleo desprezível dos fura-greves. Ora, estará correcto que quem critica o Estado por anotar o nome dos grevistas – ou, o que vem a dar no mesmo, o nome dos que compareceram no seu local de trabalho – impeça colegas de irem trabalhar? Em que medida é que os piquetes respeitam a liberdade de cada um? Em que medida pode o seu comportamento ser visto como democrático?
Muitos trabalhadores preferem ficar em casa para não terem futuros problemas com os seus colegas, embora a greve os prejudique materialmente. E por que razão pode a greve prejudicá-los materialmente? Porque o salário de um dia num dinheiro para sustento da família que já é escasso representa uma diferença considerável. E será que o sindicato não cobre esse prejuízo? Não, esse é o grande problema. Se o cobrisse, a questão não se levantaria da mesma forma. Mas por que motivo não pagam os sindicatos o dinheiro que os grevistas perdem? Pela simples razão de que há muitos mais grevistas do que pessoas sindicalizadas. É este, entre outros, o motivo por que os piquetes de greve existem.
O argumento de que o Estado ou as entidades patronais não deveriam deduzir o dinheiro dos grevistas não tem qualquer base de sustentação. Se os salários são baseados na produção dos funcionários ou dos empregados, salvo os casos de doença, parto, etc. devidamente previstos na legislação em vigor, nada pode forçar as entidades públicas ou privadas a não descontarem o não-trabalho num dia útil. Afinal, os protestos e as marchas de reivindicações podem ser igualmente organizados a um domingo, dia em que a percentagem de pessoas a trabalhar é muitíssimo menor.
Na greve geral de hoje, é natural que haja muitas vozes a protestar contra a situação. Quem é que gosta de não ter emprego? Quem é que gosta de ver o seu salário ou a sua pensão diminuídos? Quem é que aprecia os cortes nos serviços da Segurança Social? Só os masoquistas, decerto. Mais: haverá muita gente que não participa nas manifestações a concordar com os slogans que lá são repetidos. Pois. Mas para que serve a presente greve? Para um desabafo geral de descontentamento. Que efeitos terá? O efeito das palavras. E para o Governo? Sentirá o descontentamento, como é natural, mas já teve o Orçamento para o ano que vem aprovado pelo Parlamento… No fundo, financeiramente acabará por ficar parcialmente contente com a poupança de um dia de trabalho que os grevistas da Função Pública e das empresas públicas lhe oferecem. Para um Estado que está com problemas de liquidez, todo o dinheiro é pouco. Contudo, é óbvio que esta parcela de poupança é pequeníssima face à enorme perda de produção nacional que uma paralisação causada por greve ou por outra qualquer circunstância sempre acarreta. É mais uma machadada no PIB.
Para não divagar mais, concluo, frisando basicamente três pontos:
1. Os piquetes de greve ensombram, e muito, a acção dos grevistas. Deveriam, por uma questão de credibilidade das organizações, ser banidos pelas direcções sindicais.
2. Os sindicatos deveriam cobrir as despesas em que os seus associados incorrem, nomeadamente as indemnizações correspondentes à perda de um ou mais dias de trabalho.
3. Num regime democrático, as eleições são possivelmente o local mais apropriado para manifestações de descontentamento deste tipo. O voto em branco é uma das soluções, desde que ele conte efectivamente para a distribuição dos lugares no Parlamento. Este é um assunto que abordarei em ocasião mais oportuna.
Agradeço comentários, porque admito perfeitamente que não esteja a ver correctamente esta questão.
11/21/2010
A diluição da responsabilidade
O elogio e a censura actuam em palcos opostos. Contudo, são ambos tão característicos da natureza humana que não é de todo despropositado pô-los a actuar no mesmo palco. Há coisas em que são semelhantes. Por exemplo: "Elogiar toda a gente é não elogiar ninguém", lembrava o velho Samuel Johnson; censurar toda a gente é não censurar ninguém, dirá o senso comum. Seja num, seja no outro caso, dilui-se o elogio, dilui-se a censura.
Já cá voltaremos. Nalgumas festas de aniversário, causa-me sempre espanto ver que o aniversariante, após a entoação em conjunto pelos seus familiares e amigos do Parabéns a você!, bate palmas tal como os outros. Está a bater palmas a quem? A si próprio? Seria um gesto de puro narcisismo que me custa a admitir. Inclino-me generosamente a pensar que é mais um reflexo pavloviano desencadeado pelo verso final do Parabéns! Como está habituado a ir a outras festas de aniversário e a bater palmas no final, na sua própria festinha acaba por fazer o mesmo. Se fosse um acto narcisista, seria grave; assim, pode causar algum espanto, mas... Aliás, festa é festa!
Goethe, por seu lado, fez-nos notar uma outra grande verdade sobre as louvações: "Quem elogia coloca-se ao mesmo nível das pessoas cujo elogio faz". Nem mais. Aliás, muito bom orador entrecorta o seu discurso com um elogio a A ou a B, com isso recebendo uma calorosa salva de palmas, ou então no final das suas palavras pede um forte aplauso para uma determinada pessoa ou grupo, com isso recebendo a ovação global para o seu discurso, que assim termina em glória.
E a censura, vulgarmente chamada "crítica"? Essa tem características algo diferentes. Enquanto que no elogio existe um contentamento comum ao elogiador e ao elogiado, a censura termina com dois humores bem diversos: o bem-estar de quem censura e o mal-estar de quem é censurado. O amor-próprio, tanto de um como do outro, é posto à prova: o de um para se congratular a si mesmo pela sua franqueza e coragem, o do outro para se defender da melhor maneira que puder daquilo que lhe é apontado, mostrando assim igualmente a sua coragem, mas também a sua inteligência.
Dado que tanto o elogio como a censura fazem desde o início dos tempos parte da natureza humana no seu relacionamento com o "outro", são conhecidas numerosas maneiras que possibilitam a quem é censurado escapar a situações embaraçosas. "Sacudir a água do capote" é a expressão que o povo há muito arranjou para este conjunto de soluções escapatórias. É que quando se sacode a água do capote, este pode parecer que, afinal, nem molhado foi. Está sequinho, genuíno e virgem como tudo o que é virginal e puro. A mais comum das maneiras de sacudir a água do capote é através da mentira ou da inverdade, atribuindo determinado facto a outra pessoa ou, mais inteligentemente, a todo um conjunto de circunstâncias que lembram a ira dos deuses e que provocaram, por razões complexas e difíceis de entender, a situação embaraçosa a que se chegou e pela qual agora se é criticado.
Sob o ponto de vista político, em regimes ditatoriais é relativamente fácil atribuir as culpas por uma situação pouco ou nada confortável a reais ou imaginários inimigos externos que, em tenebroso conluio, terão provocado o statu quo actual. A oposição não pode falar: não lhe é dada voz para o fazer.
Em regimes democráticos, a situação é diferente. Todos podem falar. Então, o melhor método para sacudir a água do capote parece ser o de diluir as responsabilidades. Quem são os culpados da incómoda situação, para além do evidente complot da estrangeirada que, neste mundo globalizado, tem um enorme poder sobre nós? Os culpados somos nós todos. Todos, sem excepção. E não se admite que uns sejam mais ou menos do que outros. A culpa recai sobre todos nós. Uniformemente. Como é óbvio através de um exemplo fácil como o do café, o qual ficará tanto menos forte quanto mais água se lhe juntar, também aqui quantos mais arcarem com a culpa, tanto menor será a responsabilidade de cada um. E como não podemos contar com o bíblico bode expiatório (foto) que depois desaparece no deserto com todos os pecados do mundo, cada um arca com a sua quota-parte de responsabilidade, sendo implicitamente levado a pensar que, ao culpar os outros, está a culpar-se a si próprio, pelo que provavelmente o melhor é ficar calado.
A diluição da responsabilidade passa por aqui. Lembra um inteligente slogan formulado pelos ricos americanos há já umas boas décadas: "Os pobres não invejam os ricos; querem apenas ser tão ricos como eles." Se não o conseguem, de quem é a culpa? Dos pobres, de quem havia de ser?
11/19/2010
Questões de concorrência
Leio a notícia no jornal, que me faz pensar logo noutros exemplos. A notícia é simples. Diz, no título, que a Irlanda se recusa a mexer na taxa de IRC (sobre as empresas) em troca de eventual ajuda financeira. A pergunta coloca-se desde logo: o que tem a ver a taxa de IRC da Irlanda com o auxílio financeiro a eventualmente prestar pelos países da União Europeia àquele país? Talvez tenha. A taxa irlandesa de IRC é apenas de 12,5 por cento e tem sido crucial para atrair empresas estrangeiras. É uma taxa consideravelmente baixa (embora tenha havido frequentes variações na taxa portuguesa homóloga, creio que ela se situa nos 25 por cento). É óbvio que um imposto mais baixo atrai mais capitais. Por outras palavras, se pusermos em questão a atracção de investimentos em Portugal em comparação com a Irlanda, verificaremos que esta se encontra numa situação privilegiada.
Contudo, quando se debate ou negoceia um investimento estrangeiro de forte volume, os governos fazem o mesmo que os bancos: oferecem taxas mais favoráveis a quem traz mais vantagens. No caso da banca, a quem depositar mais dinheiro. No caso dos governos, a quem trouxer maior investimento para o país e prometa criar um maior número de empregos. É frequente que exista um tax holiday de um determinado período de tempo, i.e. um período de total isenção de IRC, que acaba por compensar a taxa em princípio mais elevada. Uma alternativa é a concessão de largos subsídios a esses investidores.
Ora, no caso da Irlanda, os seus 12,5 por cento são regularmente criticados por vários países da União Europeia, designadamente a Alemanha, o Reino Unido e a Áustria. Qual é o nome que estes países dão aos 12,5 por cento irlandeses? Chamam-lhe "concorrência desleal no mercado interno comunitário". Apetece por vezes dizer: olha quem fala! Pois não é verdade que cada um dos países utiliza para si truques que não são tão visíveis mas que acabam por ser tão eficazes como uma taxa reduzida? Seja como for, à Alemanha e ao Reino Unido causa engulhos o facto de a Irlanda praticar a taxa de 12,5 por cento, na medida em que as suas são mais elevadas e portanto ambos os países ficam a perder nesse domínio. E como eles vão entrar no bail-out salvador da Irlanda...
Esta é uma história que me traz à memória o caso da abolição da escravatura. Tal como os portugueses e outros povos, os ingleses praticaram largamente o transporte de escravos. No seu caso, para a América, para ilhas como a Jamaica e outros locais. Os escravos constituíam mão-de-obra quase gratuita. Os seus custos eram muito inferiores aos praticados na Inglaterra, por exemplo, com mão-de-obra branca. Com a Revolução Industrial, a que se juntou a Revolução Agrária e a consequente menor necessidade de pessoas para o labor nas fábricas e nos campos, os ingleses começaram a precisar menos de escravos – apenas nas suas colónias. Só que algumas destas colónias, como foi o caso dos Estados Unidos, se tornaram independentes, pelo que deixaram de ser um problema inglês. Aí, a poderosa Inglaterra decidiu abolir a escravatura no início do século XIX. Porém, ficava com um problema: se os outros países directamente concorrentes continuassem a praticar a escravatura, esses países passariam a auferir de uma importante vantagem competitiva: conseguiriam matérias-primas como o açúcar, o cacau, o algodão, a preços mais baixos do que os seus. Para que isto não sucedesse, a Inglaterra exerceu forte pressão sobre os países seus aliados para que terminassem a escravatura. Portugal esteve incluído nesse grupo.
Aqueles que leram o romance Equador ou viram a série televisiva com o mesmo nome lembram-se de que a questão à volta da colónia portuguesa de S. Tomé era exactamente essa: os ingleses da Cadbury queriam à viva força que a escravatura terminasse para que os portugueses não usufruíssem de vantagem na venda do seu chocolate ou cacau. É evidente que o que salientavam eram os direitos humanos, mas isto é o que sempre se faz em casos como este: invocam-se razões nobres para colher benefícios materiais concretos. Além disso, podiam exercer a referida pressão porque eram mais fortes, possuíam uma armada fortíssima e tinham a possibilidade real de exercer acções extremas de retaliação.
Este problema, que é do passado, traz à baila um outro, que é muito actual: a desvalorização que cada país tenta fazer da sua moeda para que as suas exportações aumentem. Portugal, por exemplo, teria outra capacidade de aumentar as suas exportações se pudesse desvalorizar unilateralmente o euro, o que se sabe ser impossível. Em crises anteriores – e não foram poucas -, Portugal recorreu sempre à desvalorização da sua moeda. Embora estivesse a retirar poder de compra aos portugueses, que no entanto não viam alteração numérica nos seus cheques e apenas sentiam a diferença no seu poder aquisitivo, os sucessivos Governos propalavam invariavelmente as vantagens da medida: aumento das exportações, aumento do número de turistas estrangeiros e da respectiva receita turística.
Presentemente, assistimos no mundo à existência de vários potentados de grandes dimensões, como os Estados Unidos da América, a China, a União Europeia, a Índia, que procuram exportar e se queixam de concorrência desleal através da moeda. A guerra cambial entre os EUA e a China já dura há anos, com os EUA a fazerem pressão sobre o governo chinês para que valorize a sua moeda, que estará com um valor abaixo do seu valor real. O problema não é, porém, tão simples como isso, e possivelmente está longe de ser a panaceia para os restantes males, como a história económica tem demonstrado em casos anteriores. A China só valorizará a sua moeda quando souber que a Índia, a Coreia, o Vietname, a Indonésia, etc. irão fazer o mesmo; caso contrário, fica a perder e os investimentos estrangeiros poderão encaminhar-se mais para os países seus concorrentes. E quem gosta de perder?
Afinal, somos todos bons quando não nos tocam no bolso. Se o fizerem, protestamos. À mesa, a tomarmos as nossas refeições, é possível que façamos exactamente o mesmo com a comida. Se virmos alguém a servir-se muito substancialmente da travessa que contém comidinha que adoramos, franzimos o sobrolho ou protestamos mesmo em voz alta. Diremos qualquer coisa como: "Estás-te a servir tanto, com medo que a comida acabe?" Na realidade, nós é que estamos com medo de que a comida não vá chegar em doses tão substanciais para nós. É sempre assim. Um problema que parece complexo como o do IRC da Irlanda, ou o do cacau de S. Tomé, ou o da escravatura versus a sua abolição, ou o da valorização/desvalorização da moeda, reduz-se muito à escala do comer à mesa, um acto diário o mais simples e comum possível. Já agora, se não gostarmos do prato de que o outro se está a servir abundantemente e por esse motivo tivermos especialmente para nós um bifinho com batatas fritas, até poderemos censurar quem faz o reparo crítico: "Tu é que estás com medo que a comida não chegue! E nunca te ensinaram que é feio olhar para o prato dos outros?!" É a nobreza do nosso gesto em todo o seu esplendor. Pudera! Quem está de fora é sempre bonzinho.
11/17/2010
NATO e armamento
Não me esqueço de uma realidade que não tem que ver apenas com a NATO, mas com o mundo em geral. A afirmação seguinte vem de um conhecido médico português: "Estamos num mundo em que os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que deveriam zelar e velar mais do que quaisquer outros pela paz e pela segurança, são os maiores produtores e vendedores de armas." George Steiner referiu-se-lhes de forma directa e brutal: "Os maiores criminosos de guerra desde Hitler são os vendedores de armas, os países que as vendem."
11/14/2010
Desemprego
Ouvi uma vez um homem de quarenta e tal anos, desempregado e com pouca esperança de voltar a arranjar emprego na sua terra, onde vivia com mulher e dois filhos, dizer em voz baixa: "O dia-a-dia de um desempregado é como estar preso em liberdade." Impressionou-me muito a frase e a forma como sincera e lancinante como foi dita. Mas não discordei.
Calcula-se, dizia Fernando Dacosta em 2003, "que de cada cinco crianças que nascem hoje, três jamais irão arranjar emprego. O trabalho que se desenvolverá é o trabalho para os pobres, para os jovens, para os imigrantes, para os de meia-idade e meia-indiferenciação, gerando-se situações comparáveis às do século XIX. É a miséria que se mundializa, não é a riqueza." Talvez sejam palavras demasiado pessimistas, mas são pelo menos produto daquilo que tem vindo a suceder em resultado da transferência maciça de empregos do hemisfério norte para o hemisfério sul, basicamente em resultado dos custos de produção, que na Ásia são substancialmente inferiores, como todos sabemos. O que qualquer negociante fundamentalmente pretende é ganhar dinheiro. Ora, conseguir comprar a preços da China e lograr vender a preços da Europa representa uma maquia muito considerável de margem de lucro – que possivelmente será depois encaminhada para uma conta num centro offshore.
Do regozijo do negociante ao desespero do desempregado ocidental vai um abismo de distância. Contudo, pode suceder que ambos vivam na mesma cidade e passem um pelo outro sem se conhecerem. Pensando bem, é de crer que nem um nem outro gostassem de travar conhecimento entre si.
11/10/2010
A Fotografia
Por vezes há casos em que ao chegarmos perto de um monumento importante, que já vimos variadíssimas vezes reproduzido em livros, revistas e jornais, não temos já aquela sensação de estar a descobrir seja o que for porque, no fundo, aquele objecto nos é tão familiar que agora estamos apenas ali perto dele. A magia desapareceu. O déjà vu é real.
Noutros casos, porém, existem surpresas verdadeiras. Há poucos dias, deparei no jornal com a comparação entre uma fotografia antiga de um determinado monumento e o seu aspecto moderno. Saber já eu sabia que ao velho monumento tinham sido dados vários tratos de polé: tinha servido para armazenar artigos vários, entre os quais parece que munições, e tinha inclusivamente servido durante algum tempo como matadouro. Devo em princípio acreditar, porque quem escreve tem a obrigação de referir a documentação na qual se baseou para fazer as suas afirmações. Mas, apesar dessas explicações e desse lamentável mau uso, não somos geralmente capazes de imaginar o aspecto real que o monumento em questão teria tido nesses tempos recuados.
Eis que agora me chega esta foto, para mim inédita. Surpreendeu-me, de facto. Dificilmente imaginaria o monumento assim. A fotografia que aqui reproduzo, tirada do jornal, é naturalmente a preto e branco, e foi feita em 1869 por um fotógrafo francês de nome J. Laurent. Se quem está a ler estas linhas não viu o jornal em questão, é capaz de descobrir qual é o monumento que lá se esconde?
11/09/2010
Schadenfreude e Fair-Play
Ora, no passado fim-de-semana futebolístico havia um jogo-grande ao domingo e um outro, menor mas também importante, na segunda-feira. A rivalidade entre o Norte e o Sul acendeu-se com o combate dos dois chefes: o campeão habitual, que é o FC Porto, e o campeão actual, que é o Benfica. Um jogo desta ordem é sempre um tira-teimas para ver quem é o melhor. As duas cidades maiores do país estão em compita também: Lisboa versus Porto. Os resultados costumam ser equilibrados. Neste domingo, contudo, não houve qualquer equilíbrio. Sem apelo nem agravo, os do Porto infligiram cinco golos aos benfiquistas, que ficaram a zero.
É aqui que vem a Schadenfreude, uma daquelas poucas palavras alemãs que passaram para o vocabulário internacional. Schadenfreude significa o regozijo que alguém sente perante o desaire de um rival ou inimigo. Os sportinguistas embandeiraram em arco e na segunda-feira de manhã cumprimentaram os seus colegas benfiquistas com o habitual aperto-de-mão, desta vez maldosamente enfeitado com as palavras “Mais cinco!” e um risinho malandro ao estilo do Muttley.
À noite o Sporting jogava para chegar ao segundo lugar. Contra uma equipa do Norte, i.e. tratava-se de mais um Norte-Sul. Jogado em casa do Sporting. Os adeptos sportinguistas vibraram com o seu primeiro golo, que suscitou algumas dúvidas perante a possibilidade de partir de um fora-de-jogo. Foi dado o benefício da dúvida ao atacante. O Sporting até jogava bem. A outra equipa, vimaranense, parecia algo desnorteada. E mais desnorteada decerto ficou quando surgiu o segundo golo do Sporting, conseguido através de um canto directo que, porém, não fez a bola entrar na baliza. Foi um falso golo. Mas como o árbitro o validou, passou a contar. Os vimaranenses protestaram com razão e levaram cartões amarelos.
Descansaram os sportinguistas na segunda parte. Eis senão quando entra um novo jogador para os nortenhos. A equipa visitante empertiga-se. Estão motivados para pelo menos vingar a injustiça daquele falso golo. Há entretanto um jogador sportinguista que pontapeia um adversário e é justamente expulso. De súbito, não só há alma nova na equipa visitante como o desnorte acaba por atacar a equipa do Sul que, por sua própria culpa, joga apenas com dez. E, num curtíssimo espaço de tempo, os visitantes marcam três golos. Vencem a partida.
A Schadenfreude sentida pelos sportinguistas na véspera transforma-se em monco caído, mas para os mais desportistas a existência de um golo injustamente validado contra os visitantes também tinha caído muito mal. Esses aceitaram a derrota com outra atitude, aquela que diz que o fair-play é uma coisa linda mas tem um pequeno senão: é preciso perder para o mostrar. Tiveram ocasião para o fazer.
Além disso, todos puderam ver uma, duas, três, quatro vezes o treinador da equipa do Sporting atrapalhado, com um tique que possivelmente lhe vem de miúdo: colocar o dedo entre os lábios e o nariz, quase como se fosse a chuchar. Também ele ficou com boas razões para o fazer.
11/05/2010
Gestão opaca e ruinosa
Perante a placa, não demorou muito a aparecer um interessado, residente numa povoação das proximidades. Essa pessoa era o capitalista-financiador de uma sociedade de dois, em que o outro era o empreiteiro-construtor. A sociedade tinha também o seu próprio advogado.
Por sugestão dos promitentes compradores, logo os dois advogados se puseram em contacto. Conversaram e acabaram por entender-se. A senhora vendeu a sua velha residência pelo "preço possível", de facto baixíssimo em termos de mercado mas "muito razoável", segundo o seu advogado. O sócio capitalista arranjou maneira de indirectamente pagar ao advogado da senhora a quantia substancial que lhe tinha sido prometida. A senhora, enganada quanto ao montante justo, foi viver para o seu apartamento em Lisboa, com uns poucos milhares mais na sua conta bancária. Segundo o advogado, a sua cliente ficou contente por se ver finalmente livre da casa, à qual não vinha já durante o Inverno por causa do reumático que lhe afectava os ossos.
Ficaram todos satisfeitos? Aparentemente, sim. Mas só por logro. Se tivesse sabido da negociata entre ambos os advogados e os compradores e da falta de lealdade que esse negócio envolveu, a senhora teria ficado zangadíssima e deixaria de acreditar na seriedade das pessoas. Acho que nunca veio a saber. Faleceu há cerca de 15 anos. Esta história, que me foi contada pelo construtor depois de ter vendido todos os 13 apartamentos e os quatro estabelecimentos comerciais que conseguiu construir no local, nada tem de ficção. É cem por cento verídica.
E vem agora a propósito de quê? Pois vem a propósito da gestão danosa da venda da propriedade, tal como foi feita pelo advogado da senhora. Prejudicou a sua cliente. Dir-me-ão: há tantos casos assim! É verdade. Infelizmente. Mas ele foi desleal.
Vamos agora imaginar que em vez da senhora temos o Estado português. Como todos sabemos, o Estado entrega àqueles que o governam a gestão dos seus bens, dos seus negócios e, de uma maneira geral, toda a sua actividade. Num regime democrático como o nosso, os governantes são eleitos pelo povo. O povo, que é trabalhador e contribuinte do Estado através dos impostos que lhe fazem pagar, confere-lhes legitimidade através do seu voto. Esperam os eleitores que os gestores da coisa pública procedam sempre de forma honesta, como aliás se comprometem a fazer quando assinam o livro de tomada oficial de posse na Presidência da República. O juramento que têm obrigatoriamente de prestar é simples: "Juro por minha honra que cumprirei com lealdade as funções que me são confiadas."
A lealdade perante os contribuintes implica necessariamente transparência nos actos e prestação de contas fiáveis. Exceptuam-se os casos reservados, como os relacionados com serviços secretos. Ora, as revelações que vêm continuamente surgindo sobre as contas públicas nacionais têm deixado o país boquiaberto. Como é possível que nenhuma mensagem de alerta tivesse sido lançada anteriormente pelo Governo? Como se justifica a manutenção do clássico cenário róseo, em que tudo está no melhor dos mundos? Em que medida é que isso não prejudicou o país?
Foi nos finais do passado mês de Outubro publicado no Porto um livro curioso, que já tive ocasião de folhear. Intitula-se Como o Estado Gasta o Nosso Dinheiro. O seu autor é um ex-juiz do Tribunal de Contas (TC), Carlos Moreno. Destaco aquilo que para o jornal Público, que entrevistou o autor, parece igualmente ser o mais importante: as chamadas "parcerias público-privadas" (PPP). Já todos ouvimos falar destas parcerias, fosse a propósito da gestão do hospital Amadora-Sintra, fosse da construção da Ponte Vasco da Gama, fosse ainda das famosas SCUT. Há 18 anos que se praticam estas parcerias, que são, como seria previsível, objecto de um contrato firmado entre o Estado e o consórcio privado que avança com o dinheiro. Digamos que o Governo, ansioso por mostrar obra feita e podendo lançar mão de fundos europeus, sente que não possui a disponibilidade financeira para avançar sozinho com o projecto e recorre a instituições privadas. A questão que se coloca aqui é se o Governo acautela suficientemente bem os interesses do Estado ou se, pelo contrário, não zela esses interesses como deveria.
Segundo Carlos Moreno, os sucessivos governos que ao longo de quase duas décadas têm entrado nestas PPP não têm acautelado da maneira mais correcta nem mais transparente os superiores interesses da Nação. Existirão, como é normal, casos mais escandalosos e outros mais aceitáveis, mas fica-se a saber que, na generalidade, os bancos financiadores exigem taxas cada vez mais elevadas de remuneração e só aceitam financiar PPP quando o sector público assume riscos que na figura original eram típicos do parceiro privado. Se o Estado satisfizer as condições propostas, a banca prefere aplicar os seus fundos disponíveis em PPP que são garantidas pelo Estado a canalizá-las para a economia das PME e das famílias. Não se poderá dizer que a culpa seja de assacar à banca, que faz o seu melhor para garantir bons réditos para os seus accionistas. Afinal, desempenha o seu papel. O que não se pode admitir é que o Estado embarque em aventuras que resultem em custos elevados para os contribuintes, actuais e futuros, e com isso permita lucros igualmente elevados para os privados financiadores.
Somos informados pelo Dr. Carlos Moreno que o Estado tem recorrido desde o início destas PPP a consultores externos, pagos a peso de ouro. Antes de afirmar que presentemente o Estado já possui técnicos reputados em várias instituições, como por exemplo na unidade de PPP da Parpública, lembra que a experiência adquirida por esses consultores externos acaba por não ficar no Estado e, pelo contrário, se queda no sector privado. À custa dos contribuintes, como é evidente.
Quanto às SCUT, os contratos leoninos são os feitos pelas instituições financiadoras. Sem riscos. Mesmo que não haja o movimento que cálculos optimistas previam, as entidades privadas negoceiam contratualmente uma taxa fixa independente do tráfego que se registe.
A concluir, Carlos Moreno salienta aquilo com que não posso deixar de concordar em absoluto: "A palavra responsabilidade é inerente a quem exerce cargos em representação do contribuinte e a quem gere um bem escasso como é o dinheiro. Quem exerce esses cargos tem a obrigação indeclinável de contar a verdade com transparência. Não deve apenas apresentar o resultado contabilístico de uma gestão. Tem de dizer o que se gastou, por que se gastou, quanto é que se vai gastar, quanto é que vai custar. E não basta dizê-lo com frases de retórica política, mas com explicações acessíveis ao cidadão médio, que é quem paga a grande factura do despesismo do Estado."
Gostei de ver a postura de Carlos Moreno, assim como tenho apreciado ao longo dos anos a postura do Prof. Oliveira Martins, Presidente do TC. Carlos Moreno tem 70 anos. Jubilou-se no presente ano de 2010. Trabalhou para o Estado durante 44 anos. Foi o primeiro juiz português a integrar o Tribunal de Contas Europeu. Assinou mais de cem relatórios de auditoria, analisou os grandes contratos de empreitadas de obras públicas e grandes eventos nacionais.
Sabendo-se da promiscuidade que existe entre os sectores públicos e privados, não raramente com antigos governantes a desempenharem funções na administração de importantes empresas privadas, é bom que nos questionemos em que medida a lealdade jurada está sempre presente. Onde está a lealdade primeira: à nação, ao partido, a amigos do partido? Ou, num jogo de palavras que já repeti várias vezes: qual é a ética praticada? A ética de valores ou a ética de favores?
Embora estejamos num caso de "depois da casa arrombada, trancas à porta", em sinal de protesto exijamos mais. E, quanto a votar, poderemos sempre votar de forma a não legitimar quem não nos merece confiança. Mas este será tema de um outro post, em ocasião mais oportuna.
10/31/2010
A técnica do assobio
Esta chega-nos do mundo do desporto, mais nomeadamente do futebol, e não deixa de me lembrar uma canção do Sérgio Godinho. Num jogo recente entre o Copenhaga e o campeoníssimo Barcelona, eis que um avançado brasileiro, de nome César Santin, da equipa dinamarquesa se encontra isolado, frente a frente apenas com José Pinto, o guarda-redes do Barça. Pode muito bem ser golo. Em princípio vai ser mesmo golo. As bancadas alvoroçam-se. Eis senão quando, para surpresa geral, o habilidoso avançado brasileiro pára. Estaca ao ouvir o apito do árbitro e, obedientemente, desinteressa-se do lance. Não marcou golo, como é evidente.
O problema é que o árbitro não tinha apitado. O jogador estava em posição perfeitamente legal. Teria sido um apito vindo das longínquas bancadas? Também não, garante o avançado. Querem lá ver que foi o malandro do guarda-redes catalão a imitar fonicamente o árbitro?!
Nem mais! O guardião do Barcelona imita com a boca o apito do árbitro na perfeição e o resultado está à vista.
A marosca só foi descoberta graças à gravação feita por um canal televisivo. O guarda-redes acabou por ser punido com dois jogos de suspensão pela UEFA. O bom do José justificou-se dizendo que costuma comunicar com os colegas através de assobios. Curiosamente, numa das ilhas montanhosas espanholas havia outrora o costume de comunicar à distância através de assobios. Não me digam que o malandro ainda é descendente desses antigos ilhéus!
"Cuidado, ó Casimiro, cuidado com as imitações!"
10/26/2010
O metro-padrão do Museu de Sèvres
Da lembrança do conhecimento obrigatório deste facto passo frequentemente na minha ideia ao metro-padrão em que muitos de nós nos transformamos. Tornamo-nos, com frequência maior do que a desejável, o metro-padrão de pessoas que connosco convivem. Vejamos alguns casos.
Os meninos e meninas têm que aprender-com-facilidade na escola aquilo que o professor de Matemática explica porque, na opinião do professor, a matemática é a coisa mais fácil do mundo. O professor, que se vê como padrão dos meninos e meninas que tem à sua frente, esquece que na sua carreira até à licença ministerial que lhe foi dada para ser professor, deixou de lado disciplinas para ele pouco interessantes: Português, Inglês, História, Física, Química, Geografia, Filosofia. Para ele, a Matemática sempre foi a disciplina favorita. Para os alunos da sua aula a Matemática deve ser – tem de ser - também a disciplina favorita. Por que razão não lhe passa sequer pela cabeça que ele próprio rejeitou um número grande das disciplinas que frequentou nos seus estudos? Porque ele é o metro-padrão.
Noutro exemplo, a criança que está algo afogueada pela temperatura, tem que vestir uma camisola por causa do frio – assim disse a avó, que, com os seus 75 anos, sabe decerto mais do que a criança. O sentimento de frio que prevalece é o dela, não o da criança. Ela é o metro-padrão.
Os índios não têm alma, disseram os conquistadores espanhóis das Américas. Também os escravos negros africanos não têm alma, confirmaram os exploradores portugueses. Todos precisam de ser salvos, disseram os brancos colonizadores e traficantes. A Igreja, na sua generalidade, não discordou. Eles eram a autoridade, o metro-padrão, quem ousava discuti-los?
Na mesma linha, são as patroas que sabem, melhor do que as suas empregadas, o que estas pensam. E ensinam-nas a pensar pelo seu metro-padrão.
Na guerra, os mortos do nosso lado contam muito mais do que os do lado do inimigo. Nós é que sabemos. Os nossos mortos têm nome, idade, rosto. Do outro lado há apenas números, quando os há (basicamente para exaltar a nossa vitória).
Os nossos sentimentos, como portugueses, são muito especiais. Por exemplo, só nós é que sabemos o verdadeiro sentido de saudade, sentimento que até não existirá noutras culturas. Somos nós que o dizemos.
A dor que nós sentimos é imensurável, muito maior que a dos outros.
Uma mãe europeia tem um amor incomensuravelmente maior pelos filhos do que uma negra africana, que deixa as suas crianças andarem à solta, ao Deus-dará. Assim o diz a mãe branca, nascida na Europa.
A importância do desabamento do tecto da mina que matou 436 chineses é menor do que a morte daqueles noivos espanhóis, acabadinhos de casar, que ao chocarerm contra um poste na auto-estrada viram o seu carro incendiar-se. Morreram carbonizados. São os leitores da revista que o afirmam. Eles são o metro-padrão.
Afinal, quem mede isto tudo? Qual é o metro-padrão que mede com precisão todos estes casos? Ah, o amor-próprio, a cultura nacional, a visão obliqua, a eubjectividade a prevalecer sobre a objectividade!
Quando voltar a Paris, hei-de ir ao Museu de Sèvres. Quero parar em frente da barra do metro-padrão que serve (ou serviu durante mais de um século*) objectivamente de medida para os metros de todo o mundo. Quero ficar a observá-lo durante largos minutos, tal como faço perante um quadro que me fale à alma. Quero ver com os meus próprios olhos o metro que é, afinal, o padrão-medida de tantas coisas humanas.
*P. S. Em 1983, portanto já há 27 anos, na sequência da Teoria da Relatividade Restrita de Einstein, o metro deixou de ser a barra padrão existente no Museu de Sèvres para ser uma unidade de distância que se define como “o comprimento da trajectória percorrida no vácuo pela luz durante um intervalo de tempo que corresponde à fracção 1/299792458 de segundo.”
Podem ter mudado a definição de metro-padrão, mas cada um de nós, em maior ou menor percentagem, continua a ver-se como metro-padrão relativamente à humanidade.
10/24/2010
O estabelecimento da Inquisição em Portugal, segundo Voltaire
Mas vamos à história da burla relativa ao estabelecimento da Inquisição no nosso país. É curiosa.
O dominicano Luís de Paramo viveu no século XVI e descreveu com a maior ingenuidade num dos seus livros como a Inquisição foi estabelecida em Portugal. Quatro outros historiadores estão perfeitamente de acordo com ele. Eis o que nos relatam.
No começo do século XV, o Papa Bonifácio IX enviara como delegados irmãos pregadores que, em Portugal, iam de cidade em cidade queimando os heréticos, os muçulmanos e os judeus; eram, todavia, ambulantes, e os próprios monarcas chegaram a queixar-se dos seus vexames. O Papa Clemente VII quis dar-lhes um estabelecimento fixo em Portugal, como já tinham em Aragão e Castela. Devido a dificuldades entre a corte de Roma e a de Lisboa, azedaram-se os ânimos, a Inquisição sofria e não se estabelecia convenientemente.
Em 1539, apareceu em Lisboa um legatário do Papa que viera, dizia ele, para estabelecer a Santa Inquisição sobre fundamentos inabaláveis. Trouxe ao rei Dom João III cartas do Papa Paulo III. Tinha outras cartas de Roma para os principais funcionários da Corte; as suas credenciais de legatário estavam devidamente seladas e assinadas; exibiu os poderes mais amplos para criar um Grande Inquisidor e todos os juízes do Santo Ofício. Tratava-se de um malandrim chamado Saavedra, que sabia imitar todas as caligrafias, fabricar e apôr falsos selos e sinetes. Aprendera este mister em Roma e aperfeiçoara-se em Sevilha, donde chegara com dois outros intrujões. O seu séquito, composto por mais de 120 lacaios, era magnífico. Para cobrir esta enorme despesa, Saavedra e os seus confidentes contraíram em Sevilha vultosos empréstimos em nome da câmara apostólica de Roma; tudo estava planeado com a mais espantosa das ardilezas.
O rei de Portugal começou por se admirar que o Papa lhe enviasse um legatário a latere sem o prevenir. O legatário retorquiu altivamente que em assunto tão premente como era o estabelecimento fixo da Inquisição, Sua Santidade não podia sofrer atrasos e que ao rei era concedida honra suficiente pelo facto de o primeiro correio que lhe trazia a notícia ser um delegado do Santo Padre. O rei não ousou replicar. Nesse mesmo dia, o legatário estabeleceu um Grande Inquisidor e mandou cobrar dízimos por toda a parte. Antes que a Corte pudesse receber respostas de Roma, já fizera queimar 200 pessoas e arrecadara uma larguíssima soma de dinheiro.
Entretanto, o marquês de Villanova, grande senhor espanhol a quem em Sevilha o legatário sacara empréstimos sobre documentos falsos, julgou oportuno fazer justiça pelas suas próprias mãos em vez de se ir intrometer com o intrujão em Lisboa. Aproveitando a ocasião em que legatário fazia uma viagem junto à fronteira com Espanha, o marquês caminhou ao seu encontro com cinquenta homens armados, raptou o Saavedra e levou-o para Madrid.
A intrujice foi em breve descoberta em Lisboa e o conselho de Madrid condenou o legatário Saavedra ao chicote e dez anos de galés; mas o mais admirável é que o Papa Paulo IV confirmou depois tudo o que fora estabelecido pelo intrujão. Ratificou com a plenitude do seu poder divino todas as pequenas irregularidades processuais e tornou sagrado o que fora puramente humano. Que importa o braço de que Deus se digna servir-se?
10/22/2010
Banhos turcos
10/18/2010
Os e-mails coscuvilheiros
Neste momento em que se fala de crise e de medidas de austeridade a cada virar de esquina, surgem por todo o lado os juízes do povo. Estes são pessoas opiniosas, que se vêem bem no seu papel de denunciantes de injustiças. Por seu turno, estas são geralmente de ordem salarial. Como o e-mail, apesar de não ser anónimo, está apenas a passar informação colhida de fonte não assinada, quem passa a informação sente-se à vontade uma vez que não é o autor daquilo que a mensagem contém. Este aspecto é importante num país geralmente medroso e avesso ao risco, em que as pessoas por norma não gostam da polícia mas adoram ser, elas próprias, polícias. Por outro lado, desencadeia sentimentos de inveja que são inerentes à natureza humana. A menção de um salário muito elevado ou de pensões de reforma/aposentação de montantes igualmente elevados tem necessariamente de provocar a inveja de quem, em comparação, possui ou salários baixos ou pensões de aposentação mínimas. O injusto da questão, poder-se-á dizer, é que quem recebe ou recebeu salários mais baixos não pode aspirar a pensões muito elevadas. Aspirações reduzidas levam a remunerações igualmente reduzidas. Small pains, small gains. Lugares de grande responsabilidade ocupados por pessoas de reconhecida competência não causariam, em princípio, problemas de maior. O grande busílis reside no facto de muitos daqueles que auferem salários elevados não parecerem merecê-los, seja pelos erros gravosos que cometem e pelos quais não respondem, seja pela incompetência que muitas vezes demonstram e que os torna bons elementos do seu partido em termos de fidelidade e elementos fracos a nível de nação.
Num país como Portugal, que, não obstante os 36 anos da Revolução de Abril, mantém gritantes desigualdades em termos salariais e sociais, a revelação das remunerações auferidas por gestores públicos, assessores e políticos de vários quadrantes colhe muito mais do que noutros países de maior equilíbrio social. Por outro lado, acicata a demagogia e envieza juízos de apreciação, os quais tendem depois a nivelar todos os "privilegiados" pela mesma bitola. Nem sempre com justiça, diga-se.
Esta história de intercâmbio de mails é uma realidade com a qual qualquer governo democrático tem que se haver. Mesmo quando tenta esconder algo, há sempre um rabo de fora que, mais tarde ou mais cedo, aparece. Ora, a verdade é que este facto deveria levar os "privilegiados" a auto-corrigirem-se, mas quem é que gosta de hara-kiri? E quem começa? Porque hei-de de ser eu a começar e não ele ou ela? Neste jogo, que se desenrola numa altura em que as janelas estão escancaradas, quem duvida que os condomínios de segurança redobrada tendem a aumentar no nosso país? Será este o caminho certo?
Seja como for, é toda uma situação complexa que, em Portugal e certamente noutros lugares, transforma a Internet numa explosiva mistura de muro de lamentações e de livro de reclamações.
10/16/2010
Brincando com palavras
Faz-se uma ova
Faz-se um pato
Faz-se uma pata
Faz-se um rio
Faz-se uma ria
Faz-se este
Faz-se esta
Faz-se isto
Fascista.
10/13/2010
Um homem a abater
Uma vez, durante a guerra colonial em África, um grupo de soldados seguia comigo em coluna. A zona onde nos encontrávamos não tinha qualquer sanzala amiga. Estávamos numa terra de ninguém, com muitos nativos refugiados nas matas não muito longe dali. De súbito, um dos soldados divisou à distância um rapaz nativo que transportava qualquer coisa à cabeça. Sem pensar duas vezes, o soldado disparou, pelo que acabou aliás por ser repreendido. Imediatamente o nativo, que ainda por cima trazia uma camisa branca vestida e como tal se tornava um bom alvo, iniciou uma corrida louca aos ziguezagues até se internar no arvoredo mais ou menos denso que lhe ficava à esquerda. Não houve segundo tiro do soldado, felizmente, até porque fazer um morto naquele território seria péssima política militar. Capturar o rapaz, pelo contrário, poderia ser muito conveniente. O que me impressionou mais, admito, num caso que poderia ter sido grave e resultado numa morte, foi ter tido ocasião de acompanhar de longe os reflexos do fugitivo, a evitar com o corpo os eventuais efeitos de mais alguns tiros que, para bem de todos, não foram disparados. E assim o nativo logrou fugir.
Porquê esta história agora? Porque há muito que se vê em Portugal a cena de um homem a abater. Ao contrário do angolano, não transporta nada à cabeça e usa geralmente casaco por cima de uma camisa, que é ocasionalmente branca mas tambérm pode ser de cor. Há anos que disparam contra ele. Até ao momento, sempre em vão. Fintando os atiradores, ele sabe-se alvejado, mas com uma guinada para a esquerda e outra para a direita, e uma corrida mais veloz em frente também em ziguezague, logra escapar-se. Por que razão os tiros não o atingem está a tornar-se uma história nacional. Há até quem considere que ele combinou com alguns dos fornecedores de armas colocar a mira com um pequeno desvio, não detectável, para que mesmo o melhor atirador não lhe acerte. Entretanto, se bem que as balas não o derrubem, certamente que o cansam. Este cansaço pode ser aproveitado pelos que o têm debaixo de olho para um dia o apanharem distraído e o abaterem de vez.
Ou conseguirá ele virar o bico ao prego e pregar uma rasteira aos seus perseguidores? Já não estamos na tal guerra de África, mas continuamos em guerra. Acesa. Pelo poder. Que poder? perguntarão uns. Com que proveito? questionarão outros. Se calhar é por dúvidas deste tipo que a mão dos atiradores eventualmente lhes treme, para além da possibilidade de as armas terem sido manhosamente alteradas. E, com mãos trémulas, incertas quanto ao que fazer a seguir, não lhe acertam de certeza. Será a mão de Deus que o protege, será o Destino de que os portugueses tanto gostam, ou estaremos apenas em presença de uma obra do acaso? Seja como for, o homem a abater mantém-se vivo. Poderá estar abatido às vezes, mas isso será por outros motivos.
Como se pode fugir assim é extraordinário! Não são minutos, nem horas, nem meses. São anos de fugas e fintas. E eu a julgar, quando vi aquele nativo angolano a virtualmente ganhar em velocidade e em torsão de tronco e de pernas a muitos atletas profissionais, que já tinha visto tudo!
10/10/2010
A Clínica Optimista
Era uma má notícia. O Adriano Mesquita, velho colega da instrução primária, comunicava-me que o Antunes tinha morrido. Antunes, que Antunes? Ah, aquele que andou connosco na D. Maria das Dores da 1ª à 4ª classe e que tem um irmão gémeo? Esse mesmo. Espera lá, mas qual foi o Antunes que morreu? O António José ou o José António? Foi o António José. Estava com um problema no estômago já há algum tempo e tinha sido internado na Clínica Optimista, na Covilhã. Clínica Optimista? Nunca ouvi falar de uma clínica com esse nome. Olha que não é exactamente nova. Já existe há vários anos. Se não me engano, abriu em 2005. Por acaso até fui à inauguração. Gostava de saber se pensas ir ao funeral. Tenho o carro na oficina e precisava de uma boleia, caso tu vás. Não sei ainda se posso. Isto assim de chofre, sabes tão bem como eu que a gente não pode faltar ao trabalho quando quer. Pois é, mas era um tipo do nosso grupo. Temos que mostrar solidariedade. Sabes que sou tão beirão como tu e nisso de solidariedade ninguém me pede meças. O que não sei é se tenho possibilidade de faltar ao serviço. A que horas é o funeral? Amanhã às 4 da tarde. Vá lá que não é má hora. Vou tentar. Mas diz-me lá mais uma coisa para eu não ir totalmente em branco: há quanto tempo estava ele na clínica? Há uns seis meses pelo menos. E dizes tu que a clínica é optimista! E é! As cores das paredes, tanto no exterior como no interior, são alegres, os quartos têm bonecos sorridentes nas paredes, o pessoal de enfermagem é muito simpático e as notícias que te dão são sempre animadoras. Mesmo quando de facto não são? Suponho que sim. Sabes que o António José era casado com uma irmã da minha mulher, de modo que eu acabava por ter muito mais contacto com ele do que tu. E perguntávamos de vez em quando como é que ele ia. Que estava melhor. Noutra vez que liguei, disseram-me que ele estava mais gordinho (porque o Tó Zé tinha perdido muito peso), e que tinha melhorado bastante. O que eu esperava é que ele saísse da clínica todo refeito. E, de repente, o director mandou anunciar à família que ele tinha morrido. Parece que, afinal, está pele e osso. Era um cancro o que ele tinha no estômago. Então, e ninguém tinha informado que o Tó Zé tinha um cancro? Bem, de certeza que eles sabiam, mas as notícias que davam à minha mulher falavam sempre em melhoras. Foi uma surpresa para todos. Ouve lá: e a família não faz queixa do director da clínica?! Sabes como é, esta é uma teoria relativamente nova de que notícias boas, positivas, deixam a família mais sossegada. Escusam de se apoquentar. Quando o doente morrer, morreu. Têm é agora uma bela conta para pagar que vai deixar a viúva ainda mais de rastos. Linda história essa, ó Adriano. Então a coisa é assim. Especialidade da Covilhã, certamente. E eu a julgar que eles só tinham bons queijos. Com que então Optimista?! Se eu fosse à família do Tó Zé fazia uma espera ao director e dava-lhe um enxurro de porrada! A ver se ele não mudava imediatamente o nome da clínica! O certo é que amanhã lá tenho que ir! Não me calha nada a despesa extra de gasolina neste momento, mas o que tem de ser tem muita força. Vou-te buscar por volta do meio-dia.
10/08/2010
Esperança
Após longa ausência, volto a trazer poesia a este blogue. Nos tempos difíceis que vivemos é fundamental não perder a esperança. E que melhor incentivo ao ânimo e à coragem do que esta profissão de fé da grande Natália? :
CREIO NOS ANJOS QUE ANDAM PELO MUNDO
Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,
Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,
Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,
Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.
(Natália Correia)
10/06/2010
O contributo para a nossa felicidade
Porquê?
Na minha carreira pessoal de professor, recordo-me sempre do que se passava com os meus alunos, todos maiores de idade e na generalidade educados em famílias tradicionais e respeitadoras dos valores da Pátria. Quando eu lhes dava versões da História de Portugal algo diferentes das convencionais, não me chamavam mentiroso, mas desconfiavam do meu patriotismo, que para muitos era uma importante pedra de toque.
Ora, entre a visão patriótica, deliberadamente manipuladora de alguns factos, e a verdade documentada e objectiva pode existir um enorme abismo. O patriotismo torna-se, a certa altura, como um acto de fé, que não se explica racionalmente mas no qual se acredita piamente. E se a visão patriótica nos torna felizes, enquanto que uma outra, possivelmente mais verídica, nos esfria a alma, tem de compreender-se que a natureza humana, tão recheada de amor-próprio e adulante de si mesma, mantenha a primeira e despreze ou deliberadamente ignore a segunda.
É claro que tudo isto tem o seu tempo. Uma visão patriótica constrói-se frequentemente através de uma memória que tanto serve para recordar como para esquecer. Ao ocultar determinados aspectos mais indecorosos para as nossas cores e ao realçar outros que nos são claramente favoráveis, a visão patriótica faz-nos sentir orgulhosos dos nossos antepassados e de pertencermos à mesma pátria daqueles que tanto se distinguiram. Indirectamente, deles possuiremos uma costela, que poderá a qualquer momento ser accionada.
Destruir esta óptica causa uma natural perturbação em quem a possui e provoca uma inclinação para destruir aquele que se apresenta como mensageiro de uma outra verdade. Este é um dos motivos pelos quais as novas verdades só vingam quando à sua volta existe o ambiente próprio para elas vingarem.
Relativamente a este assunto, vem-me quase sempre à mente um cidadão idoso e até simpático e afável que uma vez me interpelou após uma comunicação que apresentei num simpósio. Entre outras coisas que não foram minimamente contestadas, considerei como relevante na educação dos príncipes da denominada Ínclita Geração a influência da educação inglesa, fornecida por tutores da realeza de Inglaterra, especialmente vindos a Portugal a convite da Rainha, que era inglesa de nascimento (Filipa de Lencastre). Dessa educação, que terá permeado os infantes de ideias inovadoras em termos de horizontes e de ambição relativamente à tradicional cultura portuguesa, teria resultado o brilhantismo dessa geração (Infante D. Henrique, rei D. Duarte, Infante D. Pedro, D. Isabel de Borgonha, etc.). O cidadão idoso, que era um dos meus anfitriões, falou com voz de orgulho ferido. Atribuir uma parte importante das facetas dos príncipes ao lado materno, estrangeiro, parecia-lhe menos correcto. Por meu lado, eu tinha-me limitado a usar a voz da minha verdade, documentada. Aquele era um choque normal. Contudo, o meu ponto de vista não tinha, naquele contexto, qualquer possibilidade de vingar. Embora talvez tenha semeado algo diferente na mente de um outro espectador, decerto que a minha maior objectividade não contribuía para a felicidade da maioria.
Há verdades cuja aceitação ou rejeição dizem muito sobre a natureza da sociedade que as rejeita ou aceita. Na vida política do dia-a-dia, o contributo para a sua felicidade acaba por ser decisivo para numerosos eleitores. Estes tendem a perdoar eventuais faltas a um candidato que fez claramente obra mas de quem se diz que cometeu igualmente várias ilegalidades. Compreende-se: aquele candidato fez coisas que nos alegram. Contribuiu efectivamente para uma melhoria do concelho, da região, ou do país. Se esse candidato for condenado nos tribunais, isso significa apenas "mais uma condenação", o que não se traduz em algo de especialmente positivo para os eleitores. Estes sabem de muitas outras pessoas que, diz-se, cometeram vários actos ilegais e não foram minimamente punidos. É por isso que darmos o nosso voto ao candidato acusado é apostarmos na continuação do nosso bem-estar, que certamente preferimos ao acto eventual de uma justiça que, ela própria, está longe de ser justa para com todos.
No caso de Portugal, assim se entendem melhor as reeleições de Isaltino Morais e de Valentim Loureiro, por exemplo, de Alberto João Jardim e de José Sócrates. Porém, logo que a economia no local em que esse candidato vai a eleições comece a correr mal, com elevados níveis de desemprego, não se pode estranhar que, congruentemente, a sua faceta menos legal venha ao de cima e ele acabe por perder a reeleição. É a vida.
Dizia o candidato brasileiro Tiririca que o Brasil consigo "pior também não fica". É essa a tónica certa num país que tem atravessado um bom momento nestes últimos anos. Já não seria correcta se o país se estivesse a afundar, em vez de, felizmente, encontrar cada vez mais petróleo nos fundos da sua costa.
Ficam também claras, creio eu, pelo menos duas coisas: 1. Quem sabe por que razão vota num determinado candidato é o eleitor local e não as pessoas que vivem noutros lugares, inclusivamente no estrangeiro. Quando George W. Bush foi reeleito pelos americanos, a Europa perguntou-se por que motivo estariam os Estados Unidos a cometer tamanho erro. Muitos americanos, no entanto, que andavam a ser verdadeiramente manipulados e intoxicados por vários meios de comunicação, não tiveram dúvidas. Além disso, na altura da eleição havia apenas ameaças de má evolução da economia, e o 11 de Setembro ajudava o Presidente. Na mesma linha, também sempre que Alberto João Jardim é reeleito na Madeira, os portugueses do Continente perguntam-se: porquê? Os eleitores locais sabem-no melhor do que quem lá não vive. 2. Nem o Brasil nem Portugal são países muito rigorosos quanto aos valores que defendem. De verdadeiro puritanismo religioso há aqui muito pouco. "Deus disse-nos para sermos bons, mas não para sermos parvos" é o princípio geralmente seguido.
10/02/2010
Turista em Lisboa
Para atirar para trás das costas conversas sobre a crise e as politiquices do costume, vesti este fim-de-semana a pele de turista na (minha) cidade de Lisboa. O tempo continua magnífico e esta luminosidade, embora frequente entre nós, está longe de ser comum por essa Europa fora. Nos finais de Setembro e durante grande parte do mês de Outubro, Lisboa e o seu casario costumam adquirir uns tons especiais, que são uma maravilha para os olhos. Para todos os olhos que param para a admirar.
Uma primeira impressão foi a de que Lisboa está cheia de turistas estrangeiros. Espanhóis são em grande número, mas também italianos, suecos, holandeses, suíços, franceses, ingleses. Com a presença dos muitos imigrantes que cá vivem e trabalham, o cosmopolitismo da cidade aumentou enormemente. Por vezes é preciso escutarmos com atenção para ver que língua as pessoas perto de nós estão a usar. Eu não diria que o português se tornou língua rara por estas paragens, mas chega a ser já saudada com alguma satisfação pela alma lusa que percorre as ruas, anda no metro, salta para o autocarro ou mesmo para o eléctrico. A propósito, se o eléctrico for o 15, que percorre a zona ribeirinha até Algés, eu diria que ao fim-de-semana cerca de 50 por cento dos passageiros são estrangeiros. E se for o 28, que começa nos Prazeres e dá a volta pela Baixa e sobe as encostas do Castelo, atrevo-me a dizer que a percentagem é ainda superior.
Isto de transportes na cidade não é pura conversa. Para sermos turistas lisboetas mais a sério, devemos deixar o carro estacionado algures e não pensar nele uma única vez. Os transportes da cidade são muito razoáveis. Não só as estações do Metropolitano são quase todas muito apelativas, como também tanto os autocarros como a maioria dos eléctricos possuem ar condicionado e assentos confortáveis. A rede do Metro é já suficientemente ampla para nos levar rapidamente a diversos sítios, onde poderemos tomar outro meio de transporte ou deambular pelas ruas.
Algo que se nota ultimamente no turismo estrangeiro de Lisboa é uma forte dose de juventude. Digamos que todas as idades estão, naturalmente, representadas, mas a camada jovem parece-me sobressair. Os voos low cost contribuem poderosamente para isso. Mas não admira que haja tantos jovens. Tal como se oferece, com a sua variada vida nocturna contrabalançada com calma e sossego durante o dia, a sua cor e os seus altos e baixos de onde tão depressa se vê o rio como temos que adivinhá-lo, Lisboa tem um encanto muito próprio. Para a juventude, é especialmente atraente deixar-se perder num bairro pitoresco, escadinhas abaixo ou acima, ainda com um certo cheiro à vida do antigamente. Os mais idosos não se aventuram por esses lados, que as pernas já lhes pesam e as bengalas não dão muito jeito num empedrado como o das calçadas de Alfama ou vielas da Mouraria. Para os mais jovens, porém, é toda uma descoberta. A baixa criminalidade da cidade ajuda. E os costumes portugueses no geral. Não é por coincidência nem devido a cunhas que Lisboa acabou de conquistar ontem pela segunda vez consecutiva o título de Melhor Destino para City Breaks na Europa, numa cerimónia que decorreu na Turquia. Entre outros destinos nomeados estavam Londres, Madrid, Paris, Praga, Roma, Veneza, Istambul, Oslo e Tallin.
Também no dia de ontem, depois de uma breve saltada ao meu bem conhecido Parque das Nações com um passeio à beira-rio, fui visitar uma das várias exposições que celebram o centenário da República. Fui ver a Viajar, para ter uma ideia mais concreta de como o turismo atravessou estes últimos cem anos, com especial incidência nos seus primórdios. Sem ser uma exposição excelente, dá alguma informação. Realce-se o facto de serem oferecidos tantos dados informativos num espaço bastante exíguo (nada que se compare com o da Cordoaria). No regresso, por ruas animadas, uma paragem para um repousado batido na esplanada da Suiça, do lado da Praça da Figueira, e uma meia-de-leite com torrada para quem estava comigo. A encosta de casas do lado do Castelo recebia todo o sol do fim-de-tarde. A cidade mais tradicional era mais uma vez a grande artista de strip-tease que sempre foi: só a pouco-e-pouco é que se vai despindo e revelando. Arrelia e atrai o turista que, para a conhecer melhor, tem de ir vê-la de perto, mergulhar nela. A cidade não facilita. É exigente.
Entretanto havia música no Rossio. Perto de minha casa já está igualmente montado um enorme palco para a noite de 4 para 5 de Outubro. Aliás, a cidade está cheia de música, desde as estações do Metro até à rua.
Hoje, sábado, foi um dia obviamente diferente, mas com novas cenas de cidade. O amigo autor das Sugestões que este blog regularmente inclui escreveu-me a falar de uma regata de canoas no Tejo. E ainda de um concerto dado em frente ao Museu de Marinha pela Banda da Armada. Não resisti. Com a tarde ensolarada e uma temperatura amena, foi um prazer dar um salto à zona de Belém, onde havia centenas e centenas de pessoas. Imensos estrangeiros também. O Tejo estava lindo. As canoas que participaram na regata não têm, infelizmente, muita cor, mas estão aparentemente bem conservadas e com isso ofereceram um espectáculo atraente, até porque no mesmo Tejo velejavam vários barquinhos mais pequenos, creio que da classe Optimist, a cirandar por ali e a rasar as canoas que competiam em festa amigável incluída nas comemorações do 5 de Outubro.
O clima era de festa, a juventude imperava, embora junto à Banda da Armada houvesse muitos cabelos brancos, de saudade. Não se falava de coisas que fossem menos alegres, gozava-se o momento. O contrário seria ofender o óptimo clima e todo o ambiente de que desfrutávamos. Não ouvi ninguém discutir, mas vi crianças a correr e a andar de bicicleta, casais jovens a passearem bebés nos seus carrinhos, e também um ou outro casal de mais idade sentado a gozar o sol.
Lisboa ficou bem na fotografia. Passou no teste com nota elevada. Amanhã há mais.